sábado, 26 de agosto de 2023

No chat

 

Isabel Pires

Na sala de bate-papo virtual, os de sempre: Rainha de Copas, Gato Preto, Lourinha Gelada, Menino do Rio, Flor de Lis, Simplesmente Eu e, entrando agora, Rapunzel.

 

(Rapunzel – para todos) “Boa tarde”.

(Rainha de Copas, Gato Preto, Lourinha Gelada, Menino do Rio, Flor de Lis) “Boa tarde!”

(Menino do Rio) “Ih! Chegou a Rapunzel zel zel!!!!!......”

(Lourinha Gelada) “Liga não. Ele estava com saudade...”

(Rapunzel) “Pelo que vejo, Simplesmente Eu já está arrasando!”

(Rainha de Copas) “Leu? Mas você perdeu a parte das mônadas...”

(Rapunzel) “O quê?”

(Simplesmente Eu) “As mônadas de Leibinitz, minha cara!”

(Gato Preto) “Melhor se não tivessem cutucado a onça. Vai começar tudo de novo...”

(Rapunzel) “Mas eu quero saber!”

(Flor de Lis) “E por que se atrasou? O nosso bate-papo já começou há uma hora!...”

(Menino do Rio) “Que papo mais furado, essa filosofia de internautas! Alguém aí quer tomar uma Lourinha Gelada?....”

(Lourinha Gelada) “Epa! Tou quieta no meu canto!”

(Menino do Rio para Flor de Lis) “E você, minha Flor, que acha da ideia?”

(Rainha de Copas para Rapunzel) “Diz ele que os seres humanos são como caixinhas fechadas. Umas tais mônadas que não se comunicam umas com as outras.”

(Flor de Lis responde no “reservado” para Menino do Rio)

(Rapunzel) “Saquei.”

(Rainha de Copas) “Mas eu estava dizendo que sempre tem a religião, que é uma forma de ligar essas tais caixinhas...”

(Rapunzel) “E a internet...”

(Simplesmente Eu) “Repleta está a terra de gente supérflua. Aí estão os seres terríveis, que trazem a fera dentro de si e para os quais não há escolha senão entre os prazeres e a maceração. E também seus prazeres são maceração.”

(Gato Preto) “Aí, vocês pediram...”

(Lourinha Gelada) “Quê que é isso, gente! O Simplesmente simplesmente pirou!”

(Simplesmente Eu) “Isso é Zaratrusta, minha cara. Leia mais Nietszche!”

(Rapunzel) “Cadê o Caveleiro Andante? Não veio hoje?”

(Lourinha Gelada) “Aquele outro maluco? Veio, mas como sempre desapareceu no ar.”

(Cavaleiro Andante entra na sala) “Voltei, galera!”

(Rainha de Copas) “Por que você some assim, Cavaleiro?”

(Rapunzel para Simplesmente Eu) “Acho que esse papo de religião não tá com nada!”

(Cavaleiro Andante) “Já falei pra vocês não estranharem. É que quando meu chefe tá por perto, eu tenho que sumir do bate-papo.”

(Gato Preto para Rapunzel) “Também acho! É que nem política e futebol. Cada um com seu time.”

(Lourinha Gelada para Cavaleiro Andante) “Você também tá no trabalho? Que coincidência... Espero só que a gente não tenha o mesmo chefe!”

(Menino do Rio e Flor de Lis continuam no “reservado”)

(Cavaleiro Andante para Lourinha Gelada) “O seu chefe é aquele mais chato de todos? Se for, temos grande chance de sermos colegas, colega...”

(Lourinha Gelada) “Gente! Agora sou eu. Bye!!!!!!!”

(Simplesmente Eu) “Mas isso não é religião. É filosofia!”

(Rainha de Copas para Rapunzel) “Qual é a sua religião?”

(Rapunzel) “Eu não tenho religião. Só tenho Deus.”

(Cavaleiro Andante) “Vocês aí do reservado. Posso entrar nesse papo?”

(Rainha de Copas) “Boa, garota!”

(Gato Preto) “Também gostei!”

(Simplesmente Eu) “Eu acreditaria somente num Deus que soubesse dançar. E quando vi o meu Diabo, achei-o sério, metódico, profundo, solene: era o espírito de gravidade, a causa pela qual todas as coisas caem.”

(Gato Preto) “Ih! Deus e o Diabo na terra do sol!... Agora é que a cobra vai fumar... ”

(Rapunzel para Simplesmente Eu) “Você parece uma pessoa muito solitária, Simplesmente.”

(Cavaleiro Andante) “Rapunzel, não quer jogar suas tranças cor de mel?”

(Simplesmente Eu) “Eu?”

(Rainha de Copas) “Ih!... Aqueles dois continuam no reservado...”

(Rapunzel) “É mesmo. Você é professor de filosofia, Simplesmente?”

(Simplesmente Eu) “Eu?”

(Gato Preto) “Afinal, Simplesmente, você é simplesmente filósofo ou filósofo simplesmente?”

(Simplesmente Eu) “Simplesmente?”

(Rapunzel) “Gente, o papo tá bom mas vou nessa.”

(Rainha de Copas para Gato Preto) “Não complica, Gato Preto.”

(Cavaleiro Andante para Rapunzel) “Seu chefe chegou por aí? Deixa pelo menos seu telefone...”

(Simplesmente Eu) “Não é com a ira que se mata mas com o riso. Eia, pois, matar o espírito de gravidade.”

(Rapunzel) “Beijinho pra todos, galera. Fui!”

domingo, 30 de julho de 2023

A sobremesa

Isabel Pires

Que estrago.

Ela avaliava o tamanho do estrago, o enorme buraco negro que tragava lentamente a sua vida. Que estrago, constatava, e não tinha forças sequer para protestar, ela própria um buraco vazio de sentimentos. Desolada, deixava as plantas morrerem por falta d’água. Nem sequer se lembrava delas.

Andou por toda a casa, abrindo e fechando portas e janelas. Sentou-se, levantou-se, cruzou e descruzou os braços. Por fim, a ideia passou-lhe de raspão pela mente. Agarrou-se a ela como um náufrago, e logo seu corpo todo agitou-se num frêmito vital. Sentiu fome, que era o princípio da volta à normalidade. Na cozinha, um pedaço de pão seco, uma banana envelhecendo na fruteira. Mais nada. Não desanimou, porém. Saiu para comprar algo, e voltou com frango, arroz, legumes, alfaces. Faria um jantar.

Enquanto estraçalhava o frango com a faca muito afiada, pensou como seria. Bala? Veneno? Corda? Tudo parecia-lhe tão simples e tão terrivelmente difícil. Onde conseguir o revólver, o veneno?

Tropeçava nos detalhes enquanto descascava batatas.

Sentada à mesa da cozinha, quase feliz, flagrou-se pensando sem parar. Desfranziu a testa e riu alto. Assustou-se um pouco, como se fora a primeira vez que ouvia o som do próprio riso. Ficou séria, novamente pensando, pensando. Nem percebeu quando o arroz fumegou, ameaçando queimar.

Tocaram a campainha, chamando-a à realidade, e ela então verificou as panelas. No quintal, o cachorro latia, impaciente. Foi ver. O setter irlandês, de pelo vermelho vivo, moveu-se inquieto quando ela chegou. Os dentes dele brilhavam, pontiagudos, na luz fosca do final de tarde.

A imagem elegante e robusta do cão revolveu-a toda. Ela recuou, refugiando-se no calor da cozinha. Decidiu: também faria uma sobremesa. Pudim caramelizado. Abriu a gaveta, extraindo dela o velho caderno de receitas que fora de sua mãe. A página marcada com uma pequena dobra no canto de cima. “Começar pela calda”, dizia o pequeno oráculo culinário. Pegou uma xícara de açúcar no pote de plástico e levou ao fogo para caramelizar. Quando o açúcar começou a avermelhar, ela desligou o fogo, e enquanto mexia a calda percebeu que era da mesma cor do setter irlandês.

Estava só, mas não se importava mais. Afinal o cão, no fundo do quintal, também não estava completamente só? E preso, no seu minicurral cercado de cuidados. Tudo pronto, enfim. Pegou a faca de descascar legumes sobre a mesa e mirou-se na lâmina, como se fora um espelho. Verificou os dentes, escurecidos pelo cigarro. Não conseguiu lembrar-se da última vez que os escovara.

Foi quando o marido chegou. Surpreso com o jantar, deu-lhe um beijo na face e foi para o banho.

Resignada, ela seguiu atrás dele. Da porta do quarto, observou vagarosamente a cama de casal, ladeada pelos criados-mudos. Mirou sua figura no espelho da penteadeira, e sentiu que precisava lixar as unhas, prender os cabelos. Talvez, um pouco de maquiagem. Fez um gesto para pegar o roupão, mas desistiu, adiando o banho para depois do jantar. Parada à soleira da porta do quarto, percebeu que, agora, quase quase nada da sua quase alegria de durante uma parte da tarde havia sobrado, esmagada totalmente pela poderosa presença-ausência do marido. Constatou que o buraco negro vinha, mais uma vez, à tona, tragando-a impiedoso.

O clic da maçaneta da porta do banheiro cortou-lhe os pensamentos. O marido, cabelos escorrendo água, ruidoso como um leão, reclamava por comida. Ela encarou seus olhos tenros e ternos. Uma onda de calor invadiu-a, inundando seu peito. Esperou, paciente, o marido vestir-se e o acompanhou ao jantar.

À mesa, ele traçava o frango com apetite voraz. A mulher apenas engolia a comida, mastigando sem fome. Os olhos dela esbarraram na faca suja de gordura e suas mãos tremeram. Por que não pensara nela? Não tinha revólver nem veneno, mas a faca...

Por um instante entreviu a lâmina metálica, afiada e ávida, adentrando a carne do marido, enquanto o sangue vermelho e quente envolveria o tapete da sala de completo amor. Pois a cor do amor não era o vermelho-quente? Estremeceu de gozo, pensando na cara que ele faria, certamente surpreso de vê-la ali, cravando fundo a faca em seu peito, que se abriria numa cascata vermelha e quente. Vermelha e quente. Como a calda de caramelo do pudim. 

Empurrando o prato, satisfeito, o marido levantou-se, declarando que iria levar o cachorro para passear.

Ela voltou à realidade, piscando os olhos para a mesa cheia de pratos e talheres gordurentos. Espera, tem pudim de caramelo”, já ia dizer, mas desistiu. Súbito, sentiu o cansaço tomar-lhe as entranhas. Quis deitar, fechar os olhos e descansar, deixando para lá os pratos, o banho, o marido e o cachorro.

***

quarta-feira, 26 de julho de 2023

O lustre

Isabel Pires

Parou de digitar no laptop sobre o rack e, girando pela saleta, foi até à janela e aspirou o ar fresco do final de tarde. Lúcia estava no jardim, molhando a roseira.

— Lúcia, me traz um suco de laranja?

Esperou o suco recostada no pequeno sofá, as pernas esticadas, os pés descalços.

Lúcia depositou a salva de prata no rack, ao lado do laptop.

— Não vai mais escrever, dona Jô?

— Não. E não me chame de dona, já te pedi. Faz me sentir uma velha.

Lúcia saiu do escritório fechando a porta atrás de si. Espreguiçando-se como um gato, Jô foi até o rack e sorveu o suco em lentos goles.

— Hoje estou tão preguiçosa – disse, e olhou em volta. – Essa minha mania de falar sozinha. Se a Lúcia ouve, vai achar que sou ainda mais louca – disse novamente em voz alta, voltando a se espichar no pequeno sofá estofado que compunha o mobiliário do modesto escritório.

Fechou os olhos devagar e, de súbito, lembrou-se do analista.

— Ah, aquele bruxo que se dane. Já não estou num divã? E tão gostoso...

Afundou-se mais na almofada e ficou a olhar distraidamente para a tela do laptop, onde jazia, inacabado, um texto aguardando ser finalizado.

Escrever para crianças. Como fora se meter numa coisa dessas?

Escrevia para crianças histórias pungentes, de órfãos ou de risonhos meninos que morriam no final.

— Seu problema é um trauma de infância. Rejeição – diagnosticou o analista, piscando por detrás das lentes dos óculos totalmente embaçados.

Mas que trauma, que rejeição?

— Fui uma criança super mimada, doutor. De tão mimada que fui pelos meus pais, ninguém me suportava. Sabe, eles me estragaram com tanto mimo. Um verdadeiro exagero.

Droga, mas por que eu tinha que “matar” aquele menino tão fofinho no final? Poupar-lhe? De quê? O quê?

— Mas é aí que está a tua piedade, meu anjo – Rafael dissera, enquanto enchia as taças de vinho.

Rafael não sabia de nada. Era um bobo. “Materialista”, pensou, sem nem saber porquê, enquanto engolia o vinho e sentia um travo amargo na boca.

O telefone tocou e Jô nem se mexeu do lugar. “Número desconhecido”, o visor mostrou. Tocou mais algum tempo e voltou a silenciar. É sempre a mesma coisa, quando eu atendo, aquele silêncio do outro lado. Quem será? Que coisa mais besta. Se ligarem de novo, mando um palavrão daqueles bem cabeludos. Mas o telefone não voltou a tocar.

Silenciou também o barulho da mangueira de água no jardim. Lúcia já entrava para ir preparar o jantar. Pensou em chamá-la. Lúcia, não quero jantar. Vou sair. Mas desistiu e continuou imóvel, escutando o silêncio que aumentava à medida que as sombras invadiam a saleta.

Sacudiu as pernas, como que para afastar as sombras esparsas e, de um pulo, pôs-se de pé e apertou o interruptor da lâmpada. Voltou a se estender no sofá, desta vez com as pernas para cima, e ficou a examinar o fio elétrico pendendo toscamente do teto, a lâmpada atarraxada desajeitadamente no bocal. “Amanhã chamo o eletricista e mando instalar o lustre”, pensou decidida.

Era um bonito lustre de um tom lilás-arroxeado, que, contudo, não escurecia o ambiente.

— Dá para escrever à noite, como você gosta – disse Rafael, enquanto desembrulhava eufórico o presente.

Sorriu. E se pôs a imaginar a luz filtrada através do vidro colorido, a derramar-se por todos os cantos, sobre a folha eletrônica do laptop, que adquiriria um leve tom lilás, sobre o sofá, sobre ela mesma, envolvendo-a como uma mortalha.

***

sábado, 22 de julho de 2023

P. S.

 Isabel Pires

Os tons talvez fossem excessivamente frios, os verdes e os azuis predominando: céus luminosos, mar calmo, cercas-vivas à beira de caminhos sempre retos. Uns claros aqui e acolá. Nunca figuras humanas. Tons de terra havia, bem discretos. Mas não havia alaranjados ou rosas ou vermelhos. Verdes e azuis predominavam nas telas, algumas inacabadas, espalhadas pelo chão da sala vazia. No meio da sala, postado como um deus, o cavalete.

O colchão de casal, jogado no assoalho de madeira fosca, ocupava metade do espaço do quarto. A outra metade estava quase toda tomada por livros um tanto gastos – “Os grandes mestres da pintura” –, empilhados em desalinho. Na geladeira da cozinha mínima, um saco de pão de forma, laranjas, um copo de requeijão sempre pela metade, ovos. Em cima da geladeira, a garrafa de café e uma lata cheia de farinha de mandioca, para a farofa de ovos com café no meio da noite.

Pequenas celebrações havia, certamente, regadas a cerveja e a algum vinho barato. A galera não se importava de não ter onde sentar. Ou melhor, sentavam-se em almofadões, espalhados pelos cantos da sala. O som ligado no volume baixo, para não incomodar os vizinhos.

Numa dessas festinhas, alguém notou a assinatura no canto da tela: P. S. As iniciais de Paulo dos Santos. Na verdade, Paulão, o porteiro-zelador do prédio antigo de poucos andares e menos ainda moradores que pertencia a uma família que um dia havia sido rica e hoje andava bastante decadente. O prédio, de cinco andares e um elevador desengonçado, era um dos poucos imóveis que haviam restado, depois da morte do velho Antunes. Pagas as dívidas, os filhos, genros e noras herdaram o prédio, que dividiam com alguns inquilinos antigos e fiéis, e mais um restaurante de prato-feito, na esquina da rua.

Paulão veio de Minas para o Rio ainda pequeno, com a mãe, que se empregou de doméstica na casa de João Antunes, filho mais velho, recém-casado, do seu Antunes. Morrendo-lhe a mãe, anos depois, Paulão foi ficando, espécie de eterno protegido da família. Arrumaram-lhe um quarto-e-sala no último andar do prédio, de fundos, e deram-lhe emprego de porteiro-zelador. Em troca, ele era o faz-tudo. Qualquer um que precisasse, lá ia ele, prestar serviços de encanador, eletricista e até pintor de paredes. Mas nas horas vagas, que eram muitas, gostava de pintar suas telas, algumas compradas com os trocados que conseguia juntar com os pequenos trabalhos avulsos, outras presenteadas por dona Branca, mulher do João Antunes, espécie de mãe adotiva e sua Mecenas particular. Tinha um vago desejo de, um dia, virar um artista de verdade. Por que não? Jeito ele tinha, repetia dona Branca, que sempre lhe arranjava livros para ele “se inspirar”.

— É só uns instante, seu Paulão... Dona Branca disse que o senhor podia ver para mim...

Parada à soleira da porta, a mulher aguardava, a filha pequena colada às suas saias, enquanto Paulão foi buscar a caixa de ferramenta, sob a pia da cozinha. A menina, com uns cachos escuros despenteados e olhos castanhos muito abertos, fitava com interesse as telas enfileiradas no chão da sala.

Paulão acompanhou as novas inquilinas até o apartamento delas, do outro lado do andar. Um pedaço de fio solto na lâmpada do corredor, coisa sem importância.

— Quanto é?

— Não foi nada, não se preocupe.

— Ora...

Sempre arrastando a garota consigo, dona Tereza, um final de tarde, apareceu novamente à soleira da porta de Paulão com um pedaço de bolo de coco que acabara de fazer. Era para o lanche.

— Estou dando trabalho...

— Ora, não é nada...

Chovia muito quando o carteiro entrou no prédio para entregar as correspondências. Meio-dia.

— E aí, artista? Muito trabalho por aqui? – perguntou o carteiro em tom de ironia. Vai, dá seu autógrafo aí.

Paulão rubricou uma ficha e a devolveu ao funcionário dos correios sem dizer palavra. Dona Tereza voltava com a filha da escola e aproveitou para pegar as contas.

— Que chuva, hein seu Paulão? E ainda por cima só chega conta...

Sacudiu um pouco o guarda-chuva, antes de apanhar as correspondências.

— Você também pinta? – perguntou de repente a menina.

— Ah, desculpe – disse dona Tereza, e explicou –, é que ela anda tendo aulas de pintura na escola, e como viu os quadros na sua casa...

Enquanto a mãe falava, a garota abaixou-se, abriu a pesada mochila e retirou dali uma pequena tela onde se via, com traços hesitantes mas nítidos, um casario ainda por terminar.

— Muito bem – elogiou Paulão. Pinta direitinho, hein?

O elevador já havia chegado e dona Tereza empurrou a menina, a mochila e a tela dentro da caixa móvel.

— Vamos, Natália, que já estou atrasada com o almoço. Até logo, seu Paulão.

Às vezes, Paulão era surpreendido pelos grandes olhos castanhos de Natália, à soleira de sua porta. Bastava um descuido qualquer e lá estava ela, pedindo para ver os quadros.

Paulão tentava se livrar dela, mas a menina insistia. De vez em quando, levava o casario debaixo do braço, para Paulão opinar. Um telhado vermelho, uma parede amarela, portas verdes, janelas marrons. Aos poucos, o casario ia sendo concluído.

Um dia, Natália entregou a ele uma foto sua.

— Pinta para mim?

Paulão tomou a fotografia, examinou-a por algum tempo e a devolveu à menina.

— Não sei pintar gente – disse afinal.

Natália empurrou de volta a foto sobre a pequena mesa de fórmica da portaria. Nunca aceitava um não facilmente. Era preciso convencê-la.

— Olha, Natália, acho que sua mãe não vai gostar...

— Minha mãe? – surpreendeu-se ela.

Natália tinha dez anos de idade e um gênio de quinze.

— Pode deixar, eu falo com ela – decretou, obstinada.

Paulão guardou a fotografia da menina no bolso do uniforme de porteiro e por uns dias esqueceu o assunto até que Natália cobrou.

— Já fez meu retrato? – perguntou, ao passar na portaria, de volta da escola.

Dona Tereza, distraída com umas sacolas de compras, não prestou muita atenção na conversa deles.

— Até logo, Paulão.

Enfim, o retrato começava a nascer. Apenas um esboço, ainda. Mas já se podia distinguir o contorno de um corpo, cabelos longos e escuros dominando o retângulo da tela. Uns olhos enormes bem abertos. Indubitavelmente Natália.

— E o retrato?

— Passa lá para ver. Tá ficando legal.

A soleira da porta, a porta aberta. Natália.

— Entra aí, Natália. Dá uma olhada.

A menina, passos meio titubeantes, entrou, magnetizada. Na tala de oitenta centímetros de altura por cinquenta de largura, suspensa no cavalete no meio da sala, destacava-se a silhueta branca de seu corpo, vestido, tal como na fotografia, num minúsculo biquíni vermelho.

A mãe da menina entrou logo atrás dela e saiu em seguida, arrastando a filha.

Chovia muito por aqueles dias. Meio-dia em ponto, quando dona Branca passou pela portaria.

“Ué? Ela não devia estar no restaurante?”, estranhou Paulão com seus botões.

— Paulão, preciso falar com você. Te espero lá em casa, ok?

— Ok...

Os braços muito brancos de dona Branca pareciam uma pera madura, marcados aqui e ali com leves traços amarronzados.

— Paulão, precisamos demitir você.

— Como, dona Branca!?

— Houve uma queixa de uma moradora. Uma queixa muito grave.

O rosto branco da mulher não deixava dúvida de que a coisa era mesmo séria. Por fim, ela desabou, estridente.

— Pedofilia, Paulão?!

— O quê?!

Dona Branca quis ver o retrato. Subiram ao quinto andar. Paulão, atônito ainda, abriu vagarosamente a porta. O quadro de Natália pousado sobre o cavalete no meio da sala. Inacabado.

— É este?

Cabisbaixo, Paulão confirmou com a cabeça.

— Foi a Natália que pediu... Eu não vi mal nenhum...

Dona Branca mirava o quadro atentamente, antes de dar um veredito.

— Mas, Paulão, como foi... que ela... vocês dois aqui, ela posando para você, assim?...

— Não, dona Branca, ela me deu uma foto.

E Paulão foi pegar a foto para mostrá-la a dona Branca. Mas onde mesmo a havia colocado? Revirou suas coisas, esvaziou a mala puída, folheou os livros todos e nada. A Natália da fotografia se escondia, enquanto a outra, no meio da sala...

— Vou conversar com o João – dona Branca disse, afinal, e saiu dali, arrastando o peso do corpo, o coração mais pesado que este.

Era noite alta quando Paulão deixou o prédio, a mala escura debaixo do braço, uma grande sacola plástica com algumas telas e pincéis enfiados dentro. O caminho inteiramente aberto à sua frente, na noite borrada de pequenos pontos de luz que se desmanchavam na chuva fina como tintas deslizando sobre uma tela. Parou um instante sob a marquise do restaurante, na esquina. Acendeu um cigarro e prosseguiu, desviando-se aqui e ali dos buracos cheios de água da calçada de pedras portuguesas.

***

 

 

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Madame Carlota

 Isabel Pires

Fui abrindo lentamente os olhos, um peso insuportável comprimindo a cabeça por dentro, aumentando infinitamente a enxaqueca.

— Essa aqui não para de se mexer, é mole?! – disse, meio rispidamente, uma mulher à minha frente, vestida com um uniforme de enfermeira. – Isso é só um soro, não é nenhum bicho-papão, viu, minha flor?

Ela percebera que eu havia me assustado e tratou de suavizar a voz, enquanto pegava o tubo de plástico e encaixava-o novamente na minha veia.

— O que é isto? Um hospital? – perguntei, e ouvi meu próprio fiapo de voz.

Ela deu um risinho abafado.

— Hospital? Isso aqui é o purgatório. Veja, o paraíso é mais adiante – disse, e apontou um maca à frente, onde um homem agonizava.

— Está quase fazendo a passagem – informou. Chegou aqui de madrugada, coberto de sangue. Mais de dez tiros. Os médicos operaram. Mas já vi muitos casos. Esse aí não tem jeito.

Ela pegou meu braço e começou a aplicar uma injeção.

— Tem uns que chegam tão ruins, que antes de entrarem no bloco cirúrgico já estão frios. Os maqueiros só mudam o rumo. Levam direto para o necrotério.

“Maqueiros” são os funcionários que levam as macas pelos corredores, esclareceu ela.

— Tá na hora da troca de turno. Daqui a pouco o médico vem lhe ver, minha flor.

Ela saiu, carregando a bandeja da medicação. Um homem de uniforme laranja esfregava no chão um pano úmido, enrolado num enorme rodo, e o cheiro de água sanitária ia aos poucos ardendo nas minhas narinas.

A minha perna esquerda, toda enrolada em ataduras, estava suspensa por grossos fios que desciam do teto. Dona Carmem – chamava-se Dona Carmem, a enfermeira – me contou: colocaram pelo menos uns oito pinos. Soube também que a canela esquerda tinha ido parar em cima do ombro direito.

O médico veio me ver e disse que seriam necessárias mais algumas cirurgias. O rim esquerdo ia ser retirado, assim como o útero. Lembrei de Manuel Bandeira. “Então, doutor, não é possível tentar um pneumotórax?”.

— No seu caso, só uma histerectomia resolve – disse o médico, e se foi.

Eu fiquei, tentando me lembrar.

Era uma hora da tarde, aproximadamente. Calor ofegante de verão em plena Copacabana. A rua repleta. A senhora que passou rente a mim usava uma roupa toda branca que soltava faíscas sob o sol escaldante, atingindo de cheio, como facas afiadíssimas, meus olhos desprotegidos. As sombras, encolhidas sob as solas dos sapatos, pareciam assustadas com o burburinho da rua. De repente...

Pá-pum. Uma multidão curiosa se formou, acotovelando-se a meu redor. Calma, moça, dizia um. A senhora está bem?, perguntava outro. Não se mexa. Os bombeiros já estão chegando.

Bombeiros? Eu não sentia absolutamente nada, ali, estatelada no asfalto. Não estava mais em Copacabana, pude perceber, confusa. O filho-da-puta fugiu num carrão preto, o rosto protegido por vidros fumê.

Faltava apenas uma quadra até a Galeria Menescal, sim, era isto. Minha luneta mágica – meus óculos de lentes UVB, italiano-de-camelô – me fazia uma falta danada, naquele sol escaldante. Havia esquecido os benditos óculos sobre a mesa do escritório. Pesquei o celular no fundo da bolsa e, protegida sob uma marquise de banco, liguei para o trabalho, para avisar que ia me atrasar.

No escritório, ninguém atendia, nem mesmo a Marina, cão-de-guarda do doutor Acácio. E o Renan? Onde andava o Renan? Por que o doutor Clarindo implicava tanto com ele? Coitado! Desliguei o celular, jogando-o de volta na bolsa, com medo de que alguém pudesse me tomar o aparelho, e fiquei mais um pouco sob a marquise, aproveitando a sombra. Foi quando me deparei com o cartaz afixado na parede do banco. Um pequeno cartaz amarelo com letras pretas que diziam: “Madame Carlota. Vidente. Leitura de mão. Jogo búzios, tarô”. E em destaque, tentador, o aviso: “primeira consulta GRÁTIS”. O grátis assim, em convidativas garrafais, dentro de um círculo rodeado por pequenas estrelas místicas. Não havia nenhum endereço, apenas um número de celular.

Outra enfermeira, com cara de poucos amigos e menos ainda conversa, veio tirar minha temperatura.

— Já tomou a medicação?

Respondi que sim. Devia ser a injeção que a Dona Carmem aplicara. Ela perguntou se eu queria comer alguma coisa.

Não tinha fome, apenas vontade de seguir juntando os fiapos de lembranças do dia anterior, tentando recompor o acontecido. Foi no dia anterior, não?

Bom... já que ninguém atendia mesmo no trabalho...

Do outro lado da linha, uma voz envolvente e gentil. Madame Carlota em pessoa! O consultório ficava próximo ao metrô da Cardeal Arcoverde. Não era muito longe, mas era uma boa caminhada. Nem pensar, decidi, e segui firme o meu objetivo, que era ir a uma clínica odontológica fazer um Raio-X de boca inteira, solicitado pelo neurologista a quem recorri por conta de uma enxaqueca que não me deixava em paz.

No elevador do prédio quase vacilei entre o Raio-X e a Madame Carlota. Mas a voz imperiosa do ascensorista anunciando o andar me trouxe de volta à realidade, e a realidade era uma sala entulhada de equipamentos de Raio-X. O exame ficou pronto na hora. 

Na Nossa Senhora, peguei um ônibus até a Gávea. Praça do Lido, Princesa Isabel, Avenida Pasteur, Madame Carlota. Madame Carlota? Ela não parava de vir à tona em meus pensamentos. O ônibus, deslizando vagaroso pela São Clemente em direção ao Jardim Botânico, me fazia especular de onde mesmo a conhecia? Madame Carlota... Madame Carlota... Claro, Madame Carlota! Macabéa e sua “hora de estrela”. O príncipe encantado e gringo que montava um lindo cavalo branco. A estrela radiante. Pá-pum. Macabéa no chão, um filete de sangue pintando seus lábios como um batom de Marilyn Monroe.

Sim, eu havia lido o livro. Um exemplar encardido, comprado num sebo da Praça Tiradentes. Raquel, outra colega do escritório, estudante de Letras num curso noturno, havia me emprestado, entusiasmada. Trabalho da faculdade, ela dissera.

Macabéa, a heroína do livro – ou anti-heroína? – era uma menina complicada, e sua história era contada por um narrador que revela que escreve para fugir do desespero, do cansaço e da solidão. Escrevendo, ele busca novidades sem as quais teria morrido simbolicamente, todos os dias. O narrador de Macabéa utiliza a sua história catarticamente, enfim. Ora se identifica com aquela nordestina esquisita, perdida no Rio de Janeiro, ora se apieda dela e de sua existência miserável, ora a repele energicamente, com todo o seu ser.

Eu, que estou contando a minha própria história, apenas tento me lembrar. Meu nome é Vera. Vera Lúcia Sampaio. Trabalho num escritório de contabilidade, no centro da cidade. Eu e mais outra moça e um rapaz. Dividimos um cubículo onde atendemos a clientela do doutor Acácio Francelino de Oliveira. Sou secretária formada. Tem a Marina – Marina Sílvia Rocha – que trabalha comigo. E divide um quarto-e-sala comigo. E morre de inveja de mim. Nosso patrão, o doutor Acácio, está sempre de mau-humor, o rabugento. Também tem o doutor Clarindo, o advogado. Muito legal, ele. De vez em quando, traz chocolates para as meninas, na volta do almoço. “É para adoçar a vida”, ele sempre diz. Para o Renan, nosso boy, o doutor Clarindo nunca traz nada. Até implica com ele, coitado. Não gosto de coca-cola e odeio cachorro-quente. Gosto de internet. Comida preferida? Qualquer uma, desde que seja feita pelos outros. Não tenho talento para a cozinha. Esporte preferido? Ver filmes. Mas também gosto de praia e de namorar.

Os bombeiros não demoraram, afinal. De alguma forma, eu ali, estatelada no chão, apreciava aquele espetáculo de músculos impecáveis sob uniforme cáqui, o carrão vermelho dando show no asfalto.

Um bombeiro aproximou-se, e seu sorriso era quase terno.

— Está tudo bem. Vamos tirar você daí, está bem?

— Fique calma – disse outro bombeiro de uniforme cáqui e olhos verdes.

Eu não estava nervosa. Lamentava apenas que não estivesse com a minha melhor roupa. A calça, por exemplo. Podia ter vestido aquela, que a Marina tanto invejava. Não havia dado tempo sequer de retocar o batom. Queria me compor. Não ficava bem aquela posição diante de tantos rapazes. Tentava discretamente mexer a perna, juntá-la à outra, e não conseguia. Alguma coisa dentro da cabeça não funcionava.

Às quartas-feiras o neurologista atendia na Gávea, num consultório na Praça Santos Dumont. A visão do jóquei me fez lembrar que o ponto estava próximo. Dei sinal e saltei.

Durante a consulta, uma força irresistível, como ímã, fazia meu pensamento retornar à imagem do cartaz da cartomante, colado na parede do banco.

Finalmente o neurologista me dispensou, junto com um monte de novos pedidos de exames.

No trajeto da volta, enquanto atravessava a praça, ia pensando banalidades. Não queria ceder à tentação absurda de me consultar com uma cartomante. Só me faltava essa agora, pensei quase sorrindo, quando vi, do outro lado da rua, o ônibus, parado no ponto próximo ao jóquei. Atravessei sem pestanejar. Pá-pum. Não me lembro dos detalhes. Nem posso dizer como os bombeiros me recolheram do chão. Apenas sei que acordei neste hospital, com a perna cheia de parafusos.

***


terça-feira, 18 de julho de 2023

Um elefante numa loja de porcelanas

 

Isabel Pires 

De pedra-sabão, tinha uns quinze centímetros de altura por uns vinte de comprimento. Pesado, parecia mais uma arma que um bibelô. Por curiosidade, ela perguntou o peso. “Tudo isso?”. Espantada, mudou-o de mão. Perguntou o preço. Nem caro, nem barato. Recolocou-o no lugar, entre corujas e cisnes também de pedra-sabão. A vendedora ficou apreensiva. 

— Não vai levar o elefantinho? 

— Ainda não me decidi – mentiu. 

Os olhos do elefante, esculpidos na pedra, fixavam-na. Ela disfarçou o quanto pôde, e, de um bote, atirou-se para fora da pequena loja. No entanto, precisava daquele bibelô. Em casa, reservava lugar para ele, na estante, entre outros bibelôs. Dia seguinte, retornou à loja. Foi direto aos artesanatos de pedra-sabão. Empalideceu, estacando diante de corujas que a olhavam de esguelha. 

— Já escolheu? – quis saber a moça ao seu lado, perseguidora. 

— O elefantinho que estava aqui ontem?... Foi vendido? – ela apontava para um vago lugar, entre dois cisnes. 

A vendedora abriu um sorriso claro e asseado. 

— Um momento – pediu. Voltou com o pesado objeto, depositando-o com cuidado nas mãos dela. – Alguém o havia reservado. Mas como você está mesmo interessada... 

Ela virava e revirava o elefantinho em suas mãos, com medo e alegria. “É ele”, pensou. Súbito, seus olhos esbarraram numa das patas dianteiras do bibelô. Mostrou-a para a vendedora. 

— Está quebrada!... 

A pequenina perna de pedra-sabão, sólida e frágil. Quebrada. O sorriso claro e asseado da vendedora voltou a iluminar a pequena loja. 

— Não! Veja, não está quebrada. É que, com certeza, o bloco de pedra usado para esculpir o elefantinho não era do tamanho exato, e foi preciso completar a perninha com um pedaço. Isso acontece demais. Mas não é defeito, de jeito nenhum – finalizou, devolvendo a ela o objeto.

Embora colada com perfeição ao corpo do elefante, a perna evidentemente não fazia parte dele. Fraquejando mais uma vez, porém resoluta, ela depositou o elefantinho na prateleira, agarrando firme um cisne de pescoço longo, desajeitado e triste. 

— Ah! Vai ficar com o cisne... Também é lindo!

A vendedora, ainda sorrindo, pegou um pequeno bloco de papel e tirou a nota. 

— Quer pagar no caixa, por favor? Obrigada. 

Por trás do balcão, a dona da loja fazia os embrulhos, simples e para presente. 

— Só? – perguntou, embrulhando o cisne para presente. 

— Eu queria o elefantinho, mas está com a perna quebrada... 

Simples, a mulher detrás do balcão falou: 

— É, isso acontece. É o transporte, sabe. Esse artesanato vem de longe. Às vezes, aqui mesmo, na loja, um ou outro acaba se partindo. Tem sempre algum freguês desajeitado, que deixa cair alguma coisa. Que pena! – lamentou, abanando a cabeça. 

Ela tomou finalmente o embrulho nas mãos. Pesava um pouco, embora não fosse o elefantinho. Calma e vagarosamente, saiu da loja, deixando para trás, sem piedade, o pequeno elefante de pedra-sabão.

 

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segunda-feira, 17 de julho de 2023

Tardes de rock, noites de blues

 

Isabel Pires

Mocinho bonito que é falso malandro de Copacabana.

(Billy Blanco)



Você não fuma?! Tudo bem. Parece que o mundo inteiro parou de fumar mesmo. Mas é duro ficar aqui olhando o tempo sem dar um trago sequer. E aquele cartaz lá na sala do doutor, hein? “É proibido fumar em local fechado”. Fala sério. Tá bom. Já disse que conto. Curioso você, hein? Quer saber como a conheci? Quando a vi pela primeira vez, não pensei que ela... Tinha pedido um contrafilé com fritas, salada, arroz, macarrão e até feijão, que é servido separado. Como eu ia saber? Ela estava na mesa, com a irmã dele e a sobrinha dele, de dois aninhos, como eu ia saber? Deviam ser umas sete da noite, super cedo, e ela estava jantando. Comia com um apetite furioso. Porque depois ia trabalhar, só eu não sabia. Não tinha ninguém jantando, só ela. Todo mundo estava bebendo chope, filando as fritas dela. Só ela não bebia. Mas acho que não estou contando do jeito certo. Antes, eu entrei no bar delas. Mas lá é só um pouso no caminho sem volta delas. É onde descansam, se alimentam. Lá, elas não trabalham. E eu gostei quando ela grudou os olhos negros nos meus, uma coisa quente me derretendo todo. Sentia minha mão escorregando no copo de chope.


É, eu estava bebendo muito. Talvez por isso não prestei atenção em nada naquela noite. Quer dizer, só nela. Logo nela, pô. Fiquei puto quando ela foi embora. Pensei que ia se encontrar com algum namorado. Como eu ia saber? Acabou de comer, pagou e se foi. Voltei na noite seguinte, e ela estava lá, mesmo horário, mesma comida. Deu sete e meia, se mandou, agitando o cabelão. Ela tinha um cabelo sensacional, comprido. Como brilhava aquele cabelo preto dela. E eu, que estava matando aula no cursinho só para ver aquela piranha. Se o velho soubesse, me matava. Mas a culpa também é meio dele. Foi um pouco por causa dele que conheci o bar. Eu estava puto com o velho. Fui andar no calçadão, pensando num jeito de descolar uma grana extra, esticar a merreca que o velho me dava. Eu sei que ele pagava o cursinho. Nem obrigação de verdade tinha. Mas prometeu ajudar, disse para eu vir para Copa, e eu vim, não vim? Ele nem filho tem. A mulher morreu faz pouco tempo.


Andei, andei, andei até rachar no calçadão. De repente me deu uma vontade doida de ir para a areia. Tirei o tênis e as meias. Odeio andar na areia de tênis, a gente fica parecendo aqueles gringos que vão à praia vestidos da cabeça aos pés. Tirei a camiseta também, enrolei-a e pendurei-a na bermuda. Fui andando bem devagar, sentindo a areia na sola do pés. Não sei se foi porque tinha tirado as meias e a camiseta, mas comecei a sentir um frio esquisito, uma coisa meio gelada que não sei se vinha da areia ou de dentro de mim. Era mês de julho, praia vazia. Uma grande sombra cobria quase toda a areia. Só havia uns pombos, pulando aqui e ali, deixando as marcas de suas patinhas sobre os milhares de pegadas de gente. Já reparou que areia mais pisada é aquela? Tenho nojo de pombo. Na verdade, odeio pombos. Alguns ambulantes, poucos, já iam embora. O sol se escondia cada vez mais rápido por detrás da fileira de prédios, aumentando a sombra na areia. Peguei um cigarro, para esquentar um pouco, mas fui andando com ele apagado na mão. Estava sem o isqueiro. Sabia muito bem onde o tinha deixado: na janela do banheiro, perto do aquecedor, que eu tinha ligado para o banho, antes de sair de casa. Só não lembrava se, depois, eu havia desligado o gás. Isso eu não lembrava. E se o gás estivesse vazando? E se o velho estivesse dormindo?


Um cidadão acenou para mim, também segurando um cigarro intacto, apagado. Ei, tem fogo? Rimos de bobeira mesmo, sem motivo. Sem combinar, fomos saindo da areia. De volta ao calçadão. Sentamos num daqueles bancos de concreto, perto de um quiosque. Coisa mais difícil era acender um cigarro na praia. Ninguém tinha fogo. Parece que o mundo tinha parado de fumar de repente. Naquela hora, queria apenas acender o cigarro. Só isso. Eu ainda não sabia que, depois, ganharia aquele isqueiro com minhas iniciais gravadas. Às vezes penso que foi por causa do isqueiro que agora estou aqui. Eu não queria recuperá-lo, levá-lo comigo como uma lembrança idiota?


Ele gostava de conversar. Em menos de meia hora, eu já sabia tudo de sua vida. Tinha vindo do interior da Bahia, mas antes de chegar em Copa tinha passado por São Paulo, Minas, Porto Alegre, Curitiba. Contou que já o tinham chamado até para a Colômbia, Bolívia. Mas que ele não era louco de trocar a terra dele por outro país. Que tomava conta de um bar, o Copa’s City, conhece? E que agora podia dizer que estava muito bem. A irmã dele também tinha vindo da Bahia. Uma sacanagem, uma menina tão legal, abandonada com uma criancinha de colo. Tão trabalhadeira. Ela trabalhava em casa de família e ele olhava a menina para ela durante o dia. Mas hoje era dia da folga dela, e ela estava com a filha, passeando na praça. Que quando ele não estava com a sobrinha e nem no bar, ficava ali, na praia, respirando uma maresia. Que cheiro de maresia era bom demais. O mar tem cheiro de mulher, né não? O mar de Copa, então...


Então ele disse que precisava ir andando, estava na hora de ir trabalhar, e me chamou. Perguntou se eu não queria conhecer o bar. Tinha o cursinho. Mas eu sabia que a aula já tinha dançado mesmo, quase sete da noite. Deixei rolar. Uns dias depois ele veio com essa ideia de me arranjar um trampo lá no bar. Eu havia comentado que precisava arrumar minha vida, ganhar meu dinheiro. Ele disse que eu podia ajudar a servir as mesas. O bar era pequeno, mas ficava cheio. Afinal, era caminho delas. Mas depois que ele viu o sucesso que eu fazia com as meninas, mudou os planos.


Pô, caramba. Eu andava fumando demais, bebendo demais, me arrebentando. Peguei uma gripe que me derrubou, acho que porque não me alimentava direito. Não tinha mulher para cuidar da gente, de mim e do velho. A empregada, uma coroa evangélica cheia de manias, tinha dado o fora. Trocou a gente por uma cobertura. Ainda bem. A comida dela era horrível. Mas aí a gente ficava largado de vez, cada um para um lado, se virando. A essa altura, o dinheiro do cursinho era torrado no bar das meninas. E o velho não fazia a menor ideia. Ainda bem, senão eu me ferrava de vez. Ia levando. Não lembro direito como, mas ela começou a cuidar de mim. Comprava vitamina C, mandava eu me alimentar direito. Passei a jantar no bar. No começo, eu pagava. Depois, comecei a pendurar. Por fim, ela estava me bancando. E todo mundo falando. Mas eu não tinha jeito para o que ele queria. Eu? Agenciar mulher para gringo?! Tá maluco, meu chapa. Não tenho jeito para o negócio, não pelo negócio em si. Mas é que nunca fui bom comerciante.


Toda noite eu ia lá. Jantávamos juntos, depois ela ia embora, e eu ficava esperando pela sua volta. Madrugada, já. Às vezes, ela nem voltava. Era ele que me mandava embora, sempre. Tomava conta de mim mais que o velho. Dizia para eu sair daquela vida. Mas toda tarde eu ia para a kit dela. E o velho pensando que eu tinha mesmo arrumado um trampo. Quando ele ameaçou cortar a grana do cursinho, fui obrigado a abrir o jogo. Quer dizer, meio jogo. Inventei umas histórias. Disse que tinha ficado no emprego só dez dias, em experiência. Que o gerente não tinha ido com a minha cara, acabou me dispensando. Ele quis saber que trabalho era aquele que eu tinha arrumado. Acho que engasguei muito naquela hora. Sorte que o telefone tocou. Era uma mulher que andava pegando no pé do velho.


Mas eu também ficava bolado. Acho que era um pouco de medo de me apegar demais. Comecei a olhar para outras mulheres que estavam me dando mole, ali mesmo, no bar. Mas eu sabia que não valia a pena trocar seis por meia dúzia. Fora dali, nenhuma me dava bola. Nem as do cursinho. Que aliás eu já tinha largado há um tempão.


Devagar, fui trocando as tardes na kit pelo calçadão. De volta ao calçadão, pensava, pensava, olhando os pombos, as crianças, os turistas. Só depois das oito aparecia no bar. Não queria encontrá-la. Ela não sabia onde eu morava. Ninguém sabia. Ainda bem. Mas tinha hora que não dava, eu mesmo forçava para vê-la. E ela sempre me aceitava. A gente ia para a kit dela e começava tudo de novo. Um inferno. Fazer o quê?


De volta ao calçadão. Agora era definitivo. Eu não ia mais me deixar levar. Arrastar minha vida naquela esculhambação. Eu ia embora do Rio, de Copa, daquele bar. Estava decidido. Era sério. Era tão sério que comecei a arrumar as malas. Tinha umas coisas minhas na kit dela. Uma mochila, que eu ia precisar. Um par de chinelos, um boné. Talvez, uma sunga. E uma camiseta. O isqueiro. Lembrei do isqueiro que ela havia me dado. Um isqueiro folheado a ouro, com minhas iniciais. Não podia deixar minhas coisas para trás. Muito menos o isqueiro. Era uma lembrança que eu fazia questão de levar. Pelo menos, o isqueiro. Eu tinha a chave da kit. Esperei dar umas oito horas, perambulando pelas ruas de Copa. Calçadão não, que eu não queria topar com ela. Tinha dias que eu não a via. E também eu não tinha ido ao bar na noite anterior. Já disse, queria terminar com aquilo. Por isso, fui até a kit, pegar minhas coisas. Fui num horário que eu sabia que ela não estaria lá.


Agora, ninguém acredita em mim. Estou ferrado de vez. Disseram que eu tinha direito a um telefonema. Telefonar para quem? Para quê? Para o velho? Pra matá-lo de desgosto? Estou contando a verdade. Se eu soubesse... Mas ninguém tem bola de cristal, é ou não é? Fiquei sabendo que ela não tinha passado no bar no horário de costume. Mas ninguém estranhou. Quem vai ligar para a rotina de uma...


Cheguei no prédio dela deviam ser umas oito e meia da noite. Aquela espelunca tem um porteiro, sei lá, um faz-tudo, servente, faxineiro, zelador. Só ele trabalha lá. Um cara grosso, mal-encarado. Nunca fui com a cara dele. Quando cheguei, ele não estava na portaria. Ele nunca fica lá. Deixa o portão aberto e some. Mora no subsolo do prédio. Dizem que tem uns negócios esquisitos com gente barra pesada. Ele não estava na portaria. E também não encontrei ninguém. Subi no elevador sozinho. Câmeras? Aquela espelunca?! Claro que não.


Quando cheguei no andar dela, o décimo, estava tudo às escuras. Achei melhor não acender a luz do corredor. Por via das dúvidas, dei umas batidinhas na porta. Não toquei a campainha, para não fazer barulho. Esperei. Nenhum sinal. Peguei a chave e abri a porta. Ia ser rápido, eu pegaria a mochila, enfiaria minhas coisas dentro dela, sairia de novo e pronto, tudo acabado. A janela estava toda aberta, podia sentir a maresia. Uma corrente fria de ar invadiu a kit. A porta bateu com estrondo. Acendi a luz.


A kit estava vazia. Aproveitei até para fazer xixi no banheiro minúsculo. Fui juntando minhas coisas. Enfiei tudo na mochila, mas faltava o isqueiro. Olhei em volta, remexi os lençóis revirados na cama. Onde estaria o bendito isqueiro? Lá fora, a noite parecia agitada. Escutei umas sirenes. Primeiro, a do corpo de bombeiros, fazendo aquele alarme todo. Em seguida, a sirene da polícia, breve, depois silenciou. Uma noite normal em Copa, não? Abaixei-me e dei uma olhada embaixo da cama, à procura do isqueiro. Nada. Apenas sapatos dela amontoados, como de costume. Pensei em fechar a janela, o vento estava forte, mas achei melhor não. Afinal, apaguei a luz e bati a porta.


Fui descendo pelas escadas, acho que para me acalmar. Dez lances de escada. Não que estivesse nervoso, mas me sentia um pouco tenso. Estava livre, afinal. Com certeza, nunca mais a veria. Quando cheguei lá embaixo, o maldito estava na portaria. Ele me olhou com uma cara de espantalho. Não entendi direito o que se passava. Um tremendo tumulto tomava conta da calçada do prédio. De cara, vi a ambulância dos bombeiros. A polícia também estava lá. Todas aquelas luzes vermelhas piscando. E uma multidão de curiosos. Um cenário espetacular e, no meio dele, um corpo estendido na calçada. Uma mulher jovem, em decúbito dorsal. Diziam que ainda estava viva, agonizante. Não pude ver o rosto, os longos cabelos negros e brilhantes o cobriam.


O porteiro apontou para mim e começou a gritar “É ele! É ele! Ele veio lá de cima.”


Não sei porque estou aqui, juro. A polícia não acredita em mim, ninguém acredita. A única coisa que espero é que o velho não leia os jornais. Nem veja o noticiário na tevê. Ia ser muito duro para ele.

 

***