Isabel Pires
— Anna! Anna!
Os ruídos cessaram momentaneamente para em seguida recrudescerem, mais
fortes.
—Anna! Anna!
Havia uma parede separando os cômodos, o que fazia com que Anna ficasse
fora do campo de visão de Clóvis. De qualquer modo, ele não poderia enxergá-la.
Estava cego.
— Anna!
Anna finalmente entrou no cômodo, enxugando as mãos no avental encardido.
— O que você quer, Velho?
— Que horas são?
— Para quê você quer saber as horas? Não temos relógio.
— O meu mingau. Você fez o meu mingau, Anna?
Anna senta-se num banco, próximo à cama.
— Você não fez o mingau, Anna?
— Escuta aqui, Velho. Você pensa que fico o tempo todo por sua conta? Que
não tenho minhas necessidades também?
Calado, Clóvis talvez pensasse no que responder a Anna, sentada ao lado do
catre.
— Necessidades? Que necessidades, hein, Anna?
Anna levantou-se, brusca.
Vou terminar o meu serviço, disse ela, mas não se mexeu do lugar, fixando
os olhos na perna devastada de Clóvis.
— Volta aqui, Anna.
Como Anna não respondesse, Clóvis pôs-se a berrar a plenos pulmões:
— Meu mingau! Traga o meu mingau! Anna, sua velha safada! Volta aqui e me
diz que necessidades são essas que você tem, Anna. Anna!
Anna empurrou mais o banco para perto da cama de Clóvis. Sentou-se
novamente.
— Você quer mesmo saber, Velho?
— O meu mingau, Anna.
— Está aqui o seu mingau.
Anna pega um prato cheio de mingau na mesinha postada à cabeceira da cama
de Clóvis. Coloca ao seu lado e entrega-lhe uma colher, que ele pega, sôfrego e
vacilante.
— Está frio.
Clóvis cospe o mingau.
— Está sem açúcar.
— Essa é boa. Você sabe muito bem que não pode mais com açúcar.
— Anna, coloque açúcar no meu mingau.
Ela abana a cabeça, negando. Mas Clóvis não viu o gesto. Clóvis não pode
ver Anna e o seu avental sujo, o rosto cansado, a poeira que gruda nos sulcos
fundos das rugas.
— Anna, me diz uma coisa. Você coloca açúcar no seu mingau?
— Eu não tomo mingau. Isso é coisa de velho doente. Vou terminar o meu
serviço. Mais alguma coisa, Velho?
Anna aguarda por instantes. Então pega o prato e a colher e se dirige
para o cômodo ao lado, para sua lide. Clóvis grita:
— Anna, sua megera. Volta aqui, Anna. Você não quer saber o que eu quero?
Os barulhos recomeçam, fortes, decididos, no cômodo ao lado, enquanto
Clóvis grita.
— Eu? Eu quero uma coisa, Anna. Volta aqui, Anna!
Ela retorna, de espanador na mão, sem fazer ruído. Clóvis continua a
plenos pulmões:
— Sabe o que eu quero? Eu quero os meus vinte anos, Anna. Anna, você pode
me dar de volta os meus vinte anos?
Anna aproxima-se o suficiente de Clóvis para berrar-lhe no rosto:
— Não!
Clóvis se aquieta, calado. Está um tanto pálido, mas não demonstra
qualquer comoção. Quando retoma a voz, fala pausado, quase para dentro de si
mesmo.
— Anna, Anna, sua bruxa. Você lembra de quando nos conhecemos? Eu tinha
vinte anos. Você também tinha vinte anos, Anna. E fazia tanta questão de dizer
que era Anna com dois enes. A diferença é que eu não tenho mais vinte anos.
Você me tomou os meus vinte anos, e agora só você tem vinte anos, Anna. Anna?
Lembro que naquela época você pintava os cabelos.
Eu continuo com dois enes no nome. E ainda pinto os cabelos, Velho, respondeu Anna, ajeitando os fios grossos
maltratados e pintados com uma coloração muito escura, que contrastava com o
cabelo ralo e sem cor de Clóvis. Pinto os cabelos desde os quinze anos, ela
revelou, e o seu tom era ligeiramente melancólico. Sentou-se na beira da cama,
bem perto de Clóvis, enquanto ele, com mãos tateantes, procura os cabelos de
Anna.
— Anna, por que você cortou os cabelos?
— É muita tinta, Velho. Com tantos remédios para comprar, temos condição
para isso?
Clóvis, com ar vago, continua afagando os cabelos de Anna. Um sorriso
quase se faz presente no canto do lábio.
— Anna...
— Está na hora do remédio, Velho.
— Você tinha os cabelos dourados. E eles eram suaves como um raio de sol
da manhã.
— Deixe-se de poesias baratas, velho bobo.
Anna levanta-se e começa a espanar com furor.
— Você ainda tem os cabelos de ouro, Anna?
— Tinta dourada custa mais caro.
Anna sacode a toalha pendurada num prego, dobra as roupas espalhadas
sobre a velha cômoda a um canto. Guarda coisas nas gavetas.
— Ai! Está doendo, Anna.
— Vou lhe dar o remédio.
Anna vai buscar um copo de água e o entrega, junto com dois comprimidos
que Clóvis ingere de uma vez só.
— Quero mais.
Ele estende a mão, apalpando a mesinha da cabeceira, onde encontram-se os
medicamentos. Com algum esforço, Anna arrasta a mesa e leva-a para o outro lado
do cômodo, sob a janela fechada.
— Velho murrinhento. Fique quieto no seu canto.
Anna pega a vassoura e, com certa pressa, varre todo o cômodo.
— Anna?
Ela não responde, empenhada no trabalho.
— Anna, por que é que você está arrumando tudo, hein, Anna? Quem é que
vem aqui, Anna com dois enes?
Anna desaparece por instantes e retorna carregando uma pá de lixo. Clóvis
começa uma crise de asfixia.
— Deus!
Anna larga a pá, e a pá produz um barulho estrondoso, que ecoa pelas
paredes escurecidas de tempo do quarto. Ela corre e segura Clóvis, sufocado e
vermelho. Aplica-lhe massagens cardíacas e, aos poucos, Clóvis recobra a
respiração, exausto.
— Velho, qualquer dia você me mata de susto.
Clóvis segura os braços de Anna, apalpa-lhe a cintura, os quadris.
— Você engordou, Anna.
— Velho idiota.
Ela levanta-se e desaparece no cômodo ao lado, não sem antes tropeçar na
pá de lixo, largada no caminho. Anna solta um palavrão – o palavrão mais
cabeludo que conhece e que Clóvis não escuta. Ele está longe, bem longe, embora
não possa sair do seu catre. Os barulhos retornam, furiosos, ampliados, enquanto
Clóvis delira, a febre muito, muito alta.