terça-feira, 19 de novembro de 2019

A sexóloga

Quando ainda era estudante de sociologia, arranjei um estágio no setor de recursos humanos de uma grande empresa. Lá, conheci Ester, estagiária de psicologia. Praticamente, entramos na mesma época, com diferença de uns vinte dias, talvez. Ficamos muito amigas, eu e Ester. De infância, poderíamos dizer.
Passados alguns meses, estávamos muito grudadas. Fazíamos tudo juntas: ir à cantina tomar um café, beber água, ir ao banheiro. Tanto, que o nosso chefe um belo dia declarou:
— Estão proibidas de lanchar no mesmo horário.
— ??????
— Procuro uma de vocês e acabo ficando sem as duas, no mesmo horário.
— !!!!!!!!
— Façam uma escala, mandou o chefe.
Rsrsrs. Ou kkkkkkk, que também dá no mesmo.
Obedecemos por uns tempos. Depois, aos poucos, ele relaxou. E voltamos a lanchar juntas, como sempre.
Íamos à cantina da empresa mesmo, como a maioria dos funcionários e estagiários. E depois voltávamos para o setor, e pegávamos firme no “batente” até dar vontade de dar de novo uma saída do setor – juntas, é claro.
Algum tempo depois, fui transferida para outro setor, ligado à área jurídica da empresa, onde estavam precisando de gente, devido ao acúmulo de trabalho, desde que uma funcionária, das mais antigas, tinha se aposentado. Já conhecia de vista a Márcia, com quem iria trabalhar, e que era funcionária efetiva da empresa, mas que já tinha sido estagiária de administração. Então, viramos três amigas de infância. Na hora do lanche, Ester ia nos encontrar na cantina e ficávamos conversando as três, esquecidas dos chefes, do trabalho e do horário.
Preciso dizer que, no novo setor, mudei completamente a rotina da Márcia. Para começar, ela abriu mão da mesa dela, enorme e imponente, para que coubessem duas mesas menores na sala. Disse para ela que não era necessário, que eu ficaria na salinha ao lado, da antiga funcionária que se aposentou, mas a Márcia recusou. Queria que eu ficasse na mesma sala, com ela. Eu havia pensado que ela não ia gostar muito desse transtorno todo, mas, afinal, parecia mesmo que ela tinha gostado da minha ida para o setor, apesar de ter aberto mão do seu espaço. A Márcia tinha uma natureza muito sociável, do tipo que adorava conversar, e estava se sentindo sem companhia. Quando o trabalho dava um tempo, ela disparava a falar. Contou-me a sua vida em detalhes, coisa que a Ester, minha melhor amiga na empresa, e de tanto tempo já, não tinha hábito de fazer. Eu e Ester éramos mais reservadas. Trocamos confidências sim, algumas vezes, mas mesmo assim depois de algum tempo de amizade. A Márcia era muito diferente. Escancarava tudo!
Algumas vezes, eu e a Márcia tínhamos pontos de vista diferentes sobre o trabalho. Não que batêssemos boca por causa disso. Discutíamos sim, civilizadamente, claro. Mesmo sobre pontos de vista sutilmente opostos. Coisa que não havia, quando trabalhava com a Ester, que nunca discutia sobre nada e acabava concordando com tudo. Na dúvida, sempre fazia o que o chefe mandava. Ou concordava comigo, sem se alterar ou sequer pestanejar. Certa feita, na hora do lanche, eu e Márcia levamos um assunto sobre o qual discordávamos a Ester, “para apreciação e julgamento”. Ester riu, o sorriso discreto de sempre, e fez uma cara de “fala sério”, que eu e Márcia ficamos passadas. Em uma coisa, pelo menos, nós duas concordávamos: uma vez na vida Ester bem que podia descer do muro e opinar sobre algo. Discutir, discordar. Até bater boca, quem sabe...
Um dia, chegando ao trabalho, Márcia disse que “precisava muito” falar comigo. Fiquei super curiosa. Aliás, sou muito curiosa e não via a hora de saber o que ela queria. Quando deu meio-dia, ela pulou da cadeira e fechou hermeticamente a porta da sala. Era a sagrada hora do almoço. Ao meio-dia em ponto, Márcia lacrava a porta, só reabrindo-a a uma da tarde. “Hora de almoço é hora de almoço”, falava. “Tem de ser respeitada”. “O setor precisava ter horários”, dizia. Eu retrucava, dizia que, como estagiária, não tinha direito a “horário de almoço”. Mas ela dizia que era o “horário de almoço” do setor, e que eu podia fazer minhas tarefas de estagiária sem interferir nisto. E mais, poderia aproveitar para almoçar também. Por fim, acabei entendendo a Márcia. A “hora do almoço” era a hora da pausa, do recolhimento material – já que pouco tinha a ver com “recolhimento mental” ou “espiritual”. A hora de dar um “break” mesmo no trabalho, ainda que fosse curto o tempo. De qualquer modo, era uma forma de descansar realmente, tomar distância dos problemas de trabalho e deixá-los “em suspenso”, ao menos durante aquele minguado horário de almoço. “Hora de almoço é hora de almoço”.

Voltando às confidências da Márcia. Pois bem. Na hora do almoço, ela fechou a porta, trancando a chave. Depois, sentou-se calmamente na sua enorme e confortável cadeira, e só depois de bem instalada, ela perguntou, com um brilho no olhar, se era mesmo verdade que eu era sexóloga. Não aguentei. Não era tão "escancarada" como a Márcia, muito menos discretíssima como a Ester, mas, sem querer, disparei numa gargalhada tal, que a Márcia ficou até meio ressentida. Afinal, o caso era sério. Mas trocar socióloga por sexóloga, era demais!

sábado, 12 de janeiro de 2019

Conto não conto de Natal

Isabel Pires


O telefone tocou de repente, pegando meio de surpresa a recepcionista, mergulhada num site de fofocas de tevê. A vida real dos artistas, sem sequência lógica, sem cortes nem montagem. Reverso do espetáculo, e espetáculo também, exposta em um colorido berrante. Dois toques curtos e altos. Ligação interna.
            — Sim, está aqui. Tubo bem.
        A moça recolocou o aparelho no gancho e, relanceando o olhar pelo escritório, chamou o homem que cabeceava cochilos numa poltrona mais adiante.
— Seu Natércio! – alteou um pouco a voz – Seu Natércio!
Seu Natércio abriu os olhos, sentindo uma onda geladinha percorrer suas costas, tão bom estava o ar condicionado. Era para ele ir até a sala do Doutor Joaquim. Com urgência. Iam mandá-lo à rua justo agora, às três e meia daquela tarde escaldante?, perguntou-se ele. Com urgência!
O Dr. Joaquim remexia a papelada da mesa, abrindo nervoso uma clareira no tampo de verniz preto, nem mandou seu Natércio sentar.
— O senhor fez umas entregas de documentos ontem, não fez? Três envelopes confidenciais?
O office-old confirmou com uma cabeça afirmativa, balançando firme três vezes, uma pra cada envelope. Havia levado três envelopes, sim. Entregara todos, sim. Sim, sim, foi ontem, sim, doutor.
— Pois o senhor está demitido! DE – MI – TI – DO, ouviu bem?
Os pulmões do Doutor Joaquim iam plenamente, louvado seja Deus, mas sua cara sem sol parecia querer enfartar. Seu Natércio, mudo, com medo, ouviu meio tonto as ordens. Que era para ele passar no Recursos Humanos, lá no fundo do corredor, porta à esquerda, ouviu Seu Natércio?
Dona Mirtes já o aguardava. Mandou-o sentar. Ele não lera o endereço nos envelopes? O que aconteceu, seu Natércio? Eram documentos confidenciais! Estava escrito nos envelopes, Seu Natércio... Seu Natércio embaralhava tudo no seus miolos moles. Quem mesmo lhe entregara aqueles envelopes? Documentos confidenciais? Entrega trocada? Como ia dizer isto para sua velha? Os olhos cor de cinza de Dona Mirtes cinza fitavam-no por detrás de lentes de cristal reluzente. Três meses e meio de empresa, não é isto, seu Natércio? As lentes de cristal consultaram a folhinha, uma linda folhinha, com crianças e praias e flores e gatos, para cada mês do ano. Quando o mês acabasse, restaria apenas uma folhinha mais para ser virada. Vinte e quatro de novembro, o xis vermelho assinalava.
Dona Mirtes repassou todas as contas, revisou os cálculos. Tudo certo. Como ele ia dizer isto para a velha que o aguardava em casa? Saiu com um boleto na mão para descontar na Tesouraria. Nem precisa ir ao banco, viu seu Natércio?
— Seu Natércio!
Ele voltou-se, sem surpresa. As lentes frias de Dona Mirtes filtravam o xis vermelho da folhinha. Que ele podia passar no Almoxarifado também. Ela ia ligar avisando. Era para pegar a cesta de Natal que a empresa todo ano dava aos funcionários. Iam distribuir só mês que vem, mas seu Natércio pode pegar a dele, viu? Ligação interna.
O ex-ascensorista aposentado pegou o ônibus, depois o trem. A caixa-cesta-de-Natal pesava já e passava um pouco das seis da tarde quando ele começou a subir a rua de casa. Como ia dizer isto para sua velha, essa cesta? E os três netos que ficaram na mão? Seu Natércio quebrava a cabeça dura, os miolos moles, quando a bola tirou o fino na orelha pensativa do seu Natércio. A molecada debandou, que seu Natércio era jogo muito duro.
Só restou a neta, e o penteado de duas tranças grossas gêmeas com pontas que terminavam no mesmo laço de fita. Cinco anos decididos vinham em sua direção.
— Vô!
Seu Natércio sorriu sem dentista. Depositou com cuidado a caixa no chão, aproveitando para examinar bem cada pedra do calçamento.
— Quê que tem nessa caixa aí? Vô, o seu Américo quebrou a perna.
Defronte, a porta entreaberta da casa do seu Américo era um convite aos mais chegados. Foram entrando, avô e neta.
— Que foi isso, compadre?
Na cadeira de balanço de plástico trançado seu Américo estava rei, paparicado pela patroa com limonada bem gelada. Tevê o dia todo, e perna esticada dentro de um tubo branco, fresquinho, de gesso. Numa cadeira próxima, brilhava, vermelha, a roupa que as pupilas muito abertas da menina engoliam devagar, na semi-escuridão da sala. Seu Américo não ia mais ser Papai Noel no shopping???? A vaga arranjada com tanto suor...
Em cima da pequena mesa seu Natércio colocou sem muito alarde a cesta de Natal que sua velha, satisfeita, foi abrindo e guardando. Conto? Não conto? Dona Oneide, uma metralhadora falante contente disparando pra todo lado. Tinha até cereja em calda. E uma lata – pequena, é verdade – de puro azeite de oliva.
— Boa essa firma que você tá agora, hein, meu velho?
O embrulho debaixo do braço seu Natércio disfarçava caminhando ligeiro para o quarto. Esticou a roupa vermelha num cabide e afundou-a no fundo do armário mambembe. Conto? Não conto?
Os netos, sete e oito anos, sonhavam alto: videogame e bicicleta. A neta, porém, não abria o jogo, que o que ela ia pedir, só ao Papai Noel interessava.
Uma combinação entre os dois velhos fez seu Natércio dar expediente, no shopping, das duas às dez da noite, inclusive aos sábados. Domingo também. Mas só até dia vinte e quatro, tá, seu Natércio?
A fila para a foto com o Papai Noel se estendia irregular e barulhenta, meninos e meninas agitados, queriam o mundo. Tudo o que o Papai Noel do shopping podia dar era um sorriso e um beijo, uma pose para a foto. Para os netos, uma foto com o Papai Noel. Nova combinação, desta vez com o fotógrafo.
Na fila, um par de tranças atadas numa única fita.
Ho, ho, ho! Ele pegava cada criança ao colo. Elas pegavam sua barba branca postiça de algodão. Palavras promissoras, que sim, podia esperar, ho, ho, ho! Um flash e a próxima criança.
Os olhos do Papai Noel seu Natércio brilharam meio úmidos quando ele pegou no colo o primeiro neto. Videogame e bicicleta. O segundo neto, bicicleta e videogame. Sorriso, flash. A combinação com o fotógrafo. Vieram as duas tranças e a fita. Ho, ho, ho! O que você quer do Papai Noel? Conto? Não conto? As pupilas da menina pareciam indagar. Bem baixinho, dentro do ouvido do seu Natércio, para que só ele pudesse ouvir, a menina pediu: “Vô, me leva no trenó do Papai Noel?”.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Ou isto é uma coisa?


Isabel Pires

— Alô, senhora? Estou fazendo uma pesquisa para a Revista Y e gostaria de contar com a sua colaboração, tudo bem? O assunto é sexologia, e tenho algumas perguntas para fazer.
— Pesquisa para a Revista Y por telefone? O senhor vai me desculpar, mas que eu saiba a Revista Y não faz pesquisa por telefone. Tem graça!
— Prefere pessoalmente, senhora?
— O quê?! Que desaforo!
Clic.
A senhora, uma mãe-de-família extremamente séria, voltou à sua ocupação: exterminar baratas.
— Tem mesmo gente à toa no mundo, o senhor não acha?
O exterminador de baratas concordou com a cabeça, e também voltou ao ponto em que parara, antes de ser bruscamente interrompido por aquele telefonema fora de propósito.
— A senhora veja, como eu ia dizendo, estou nessa profissão, mas não sou talhado para ela. Não gosto do que faço.
A mulher fez cara de surpresa, como se não gostar de matar baratas fosse algo muito incompatível com um matador profissional de baratas, ou como se todo mundo, incondicionalmente, devesse gostar do que fazia, de modo que o homem foi levado a se justificar:
— Baratas são cegas, disse ele, e o seu peito arfava, entrecortado por soluços surdos. Estou nessa porque preciso, mas não gosto de matar as coitadinhas...
— Entendo... O senhor quer um copo d´água?, perguntou a mulher, compadecendo-se do homem.
Reparando bem, não parecia mesmo veneno para baratas o rastro molhado que o homem deixava no ladrilho da cozinha e da área de serviço, mas o seu próprio sangue, liquefeito em lágrimas, numa mistura composta de doses iguais de amor e ódio às baratas. No entanto, a mulher, dona-de-casa zelosa e obstinada, seguiu firme mostrando as fendas obscuras e os recantos ocultos – presumíveis moradias das francesinhas.
Terminada a dedetização – fato banal e, ao mesmo tempo, ritual sagrado dos afazeres domésticos – e descartando-se do homem com alguma gorjeta, ela ainda encontrou tempo para reunir o casal de filhos adolescentes:
— Escutem: se alguém ligar dizendo que está fazendo pesquisa sobre sexologia por telefone, desliguem, combinado? Isso deve ser um trote de mau gosto, no mínimo.
— E no máximo?, quis saber o garoto de dezessete anos.
— É perigoso, né, gente? Na cidade em que a gente vive, do jeito que está o mundo. Não atendam ninguém, ouviram?
Pela manhã, o assoalho completamente asséptico, sem o menor vestígio de baratas, a mãe extremosa e preocupada saiu, com a sensação, na rua, de que os bem-te-vis cantavam para ela, e pensando se os filhos a haviam compreendido. Do trabalho, no outro lado da cidade, mandou o boy do escritório ligar para sua filha, dando-lhe instruções sobre o que dizer quando a garota atendesse.
— Bom dia, jovem. Estou fazendo uma pesquisa sexológica por telefone e gostaria de contar com a sua opinião...
De tpm e com uma prova de geometria pela frente, a garota bateu o telefone na cara do boy, e sua mãe pode perceber o quanto andava sem educação aquela menina.
Horas depois a mulher chamou a estagiária recém-contratada e instruiu-a a ligar para o filho, abordando-o sobre a tal pesquisa:
— Boa tarde, estou fazendo...
O rapaz havia acabado de chegar da escola. Estava suado, faminto e com sono, não tinha ido bem na prova de química e, na volta da aula, ainda entrara numa discussão interminável e sem sentido com um colega sobre trilha sonora de novela de tevê. Marcou um encontro no umbigo da cidade, entre monumentos mortos de homens e cavalos, com a moça da pesquisa sobre sexo. E foi assim que a mãe extremada tornou-se sogra de G. H., de cujo ventre ela viu nascer um barco a vela, dois arco-íris geminados, incontáveis pores-de-sol, um farol, uma estrela do mar, um ouriço, alguns carneirinhos embalados para presente e o gato persa de olhos amarelos.