(Uma continuação do conto “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan)
Isabel
Pires
Foram damas tais
ossos, foram reis,
e príncipes e
bispos e donzelas,
mas de todos a
morte apenas fez
a tábua rasa do
asco e das mazelas.
(Ivan Junqueira, in Esse punhado de ossos)
Passava da meia-noite
quando o rabecão finalmente chegou à rua já deserta. A chuva, apenas uma poeira
lilás sob a luz do poste. Um toco de vela jazia apagado ao lado do cadáver
molhado que os homens, vestidos com capas de plástico preto, recolheram na maca
e levaram para a medicina legal. O legista de plantão atestou, no óbito
anônimo, “indeterminada” como a causa mortis,
apesar dos sinais evidentes de pisoteamento. Não havia como identificá-lo. O
morto não portava documento algum. Sabia-se apenas que a morte ocorrera há
algumas horas.
Procuraram dar-lhe uma
nova identidade. O legista vasculhou os sinais de nascença. O perito
odontológico examinou-lhe a arcada dentária. Um funcionário de plantão
acondicionou as poucas peças de roupa – calça, cuecas, um par de meias gasto,
que vestiam o corpo quando ele foi recolhido – numa sacola plástica etiquetada
e numerada. O número da etiqueta na sacola, escrito a caneta, era o mesmo da
“gaveta” designada ao cadáver. O corpo, nu, ficaria aguardando o prazo legal
para ser reclamado.
Toda vez que alguém
vinha em busca de um parente desaparecido, aquele corpo era o primeiro a ser
mostrado. Em vão. Nunca era ele o homem a quem procuravam. Se ninguém
reclamasse o corpo até o prazo se findar, ele seria enterrado como indigente.
Receberia uma cova rasa e um caixão de madeira roxa, doado pela Santa Casa.
Um terceiro-anista de
medicina, estagiário ali, sugeriu a um professor que solicitasse a liberação do
corpo para a faculdade de medicina, o que foi conseguido com relativa
facilidade. A primeira lição da turma de futuros médicos foi como fazer uma
necropsia. Serraram uma fatia do crânio do cadáver, após retirarem-lhe o couro
cabeludo. Abriram suas entranhas, com um talho na altura do tórax até embaixo.
Pesaram e mediram os órgãos, e constataram que o estômago, à hora da morte
daquele homem, estava completamente vazio. A bexiga também. Cada órgão
vasculhado era depositado em seguida em uma bacia plástica contendo formol.
Alguns alunos, com sua
máscara colada à boca e ao nariz, faziam, extremamente sérios, anotações em
seus cadernos. Apenas uma mulher integrava aquela turma, e os colegas a
observavam de soslaio para flagrar-lhe sinais de constrangimento com a nudez do
cadáver. Por fim, fecharam os cortes com pontos mal dados e abandonaram a
carcaça sem vísceras e já sem serventia. Ele agora lembrava o monstro de
Frankstein, e não foi outro o apelido que recebeu dos funcionários responsáveis
pela sua guarda.
Sem serventia alguma, o
cadáver – agora apenas uma carcaça sem sentido – foi finalmente enterrado em
cova rasa. Esgotara-se o prazo legal para a reclamação do corpo, e era
necessário ceder o lugar no necrotério para um novo corpo que ficaria, por sua
vez, à espera de alguém que o reclamasse. O cadáver do homem enterrado
anonimamente descansaria sob a terra durante três anos, após o que seus ossos
deveriam ser exumados para dar lugar a um outro cadáver.
No momento da exumação
dos ossos, constatou-se que aquele esqueleto estava em boas condições. Talvez
rendesse algum negócio com os estudantes de medicina. O esqueleto foi avaliado
e recebeu um preço razoável, aceito por ambas as partes. Afinal, não estava em
condições tão ótimas assim. Alguns ossos – o fêmur esquerdo e algumas costelas
– estavam partidos, essas últimas provavelmente por causa da autópsia. Porém
serviriam ainda.
Ao longo do tempo,
aquele punhado de ossos teve serventia vária nas aulas práticas da faculdade de
medicina. Até que um professor resolveu aproveitá-lo também nas aulas teóricas.
O esqueleto foi remontado, o que demandou trabalho de especialista. Os ossos
foram interligados com fio de náilon, alguns colados, outros reconstituídos com
resina. Finalmente pronto, sua moradia passou a ser o laboratório, ao lado de
plantas e parasitas diversos, embebidos em líquidos funestos. No entanto, como
podia facilmente ser levado para onde se quisesse, com certa frequência ele
visitava as salas de aula da faculdade. Alguns professores, apressados, queriam
ali mesmo exemplificar o que diziam os livros sobre anatomia dos ossos humanos.
O “Frankstein” de
outros tempos passou a ser chamado, não se sabe porquê, de “José”, apelido
certamente mais nobre. José era presença constante não apenas nas salas de
aula, mais em ambientes mais festivos. O diretório estudantil conseguiu que, a
cada início de semestre letivo, José fosse levado para participar da famosa
calourada. Eternamente sem descanso, pendurado a um canto pelo fio de náilon
que atravessava-lhe o crânio, José, o esqueleto, era obrigado a participar das
brincadeiras, algumas virulentas, a que os veteranos submetiam os calouros do
curso de medicina.
Numa dessas festas, um
dos estudantes, usando palitos de dentes, deu um jeito de encaixar uma uva
intumescida de vodca em cada buraco que outrora havia abrigado o globo ocular
da caveira. Outro aluno meteu-lhe entre os dentes amarelos um canudo de
refrigerante, enquanto outro ainda pendurou-lhe nos estreitos ossos dos ombros
uma guirlanda plástica de pequenas flores coloridas, à moda havaiana. Uma
caloura piedosa, entre as muitas que se divertiam, retirou-lhe os adereços,
embora não tivesse podido conter o riso ao olhar o esqueleto.
Ao devolverem José ao
laboratório, faltava a diminuta falange do dedo mínimo do pé esquerdo. O fato
passou despercebido pelo zelador que recebeu o esqueleto de volta. No entanto,
daí em diante, cada calourada, cada aula teórica ou prática promoveria uma
progressiva e definitiva pilhagem naquilo que, quarenta anos passados desde que
fora recolhido pelo rabecão, poderia ainda considerar seu.