sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Da série “Continuações de contos famosos”- III - O esqueleto

  (Uma continuação do conto “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan)

Isabel Pires

 

Foram damas tais ossos, foram reis,

e príncipes e bispos e donzelas,

mas de todos a morte apenas fez

a tábua rasa do asco e das mazelas.

(Ivan Junqueira, in Esse punhado de ossos)

 

Passava da meia-noite quando o rabecão finalmente chegou à rua já deserta. A chuva, apenas uma poeira lilás sob a luz do poste. Um toco de vela jazia apagado ao lado do cadáver molhado que os homens, vestidos com capas de plástico preto, recolheram na maca e levaram para a medicina legal. O legista de plantão atestou, no óbito anônimo, “indeterminada” como a causa mortis, apesar dos sinais evidentes de pisoteamento. Não havia como identificá-lo. O morto não portava documento algum. Sabia-se apenas que a morte ocorrera há algumas horas.

Procuraram dar-lhe uma nova identidade. O legista vasculhou os sinais de nascença. O perito odontológico examinou-lhe a arcada dentária. Um funcionário de plantão acondicionou as poucas peças de roupa – calça, cuecas, um par de meias gasto, que vestiam o corpo quando ele foi recolhido – numa sacola plástica etiquetada e numerada. O número da etiqueta na sacola, escrito a caneta, era o mesmo da “gaveta” designada ao cadáver. O corpo, nu, ficaria aguardando o prazo legal para ser reclamado.

Toda vez que alguém vinha em busca de um parente desaparecido, aquele corpo era o primeiro a ser mostrado. Em vão. Nunca era ele o homem a quem procuravam. Se ninguém reclamasse o corpo até o prazo se findar, ele seria enterrado como indigente. Receberia uma cova rasa e um caixão de madeira roxa, doado pela Santa Casa.

Um terceiro-anista de medicina, estagiário ali, sugeriu a um professor que solicitasse a liberação do corpo para a faculdade de medicina, o que foi conseguido com relativa facilidade. A primeira lição da turma de futuros médicos foi como fazer uma necropsia. Serraram uma fatia do crânio do cadáver, após retirarem-lhe o couro cabeludo. Abriram suas entranhas, com um talho na altura do tórax até embaixo. Pesaram e mediram os órgãos, e constataram que o estômago, à hora da morte daquele homem, estava completamente vazio. A bexiga também. Cada órgão vasculhado era depositado em seguida em uma bacia plástica contendo formol.

Alguns alunos, com sua máscara colada à boca e ao nariz, faziam, extremamente sérios, anotações em seus cadernos. Apenas uma mulher integrava aquela turma, e os colegas a observavam de soslaio para flagrar-lhe sinais de constrangimento com a nudez do cadáver. Por fim, fecharam os cortes com pontos mal dados e abandonaram a carcaça sem vísceras e já sem serventia. Ele agora lembrava o monstro de Frankstein, e não foi outro o apelido que recebeu dos funcionários responsáveis pela sua guarda.

Sem serventia alguma, o cadáver – agora apenas uma carcaça sem sentido – foi finalmente enterrado em cova rasa. Esgotara-se o prazo legal para a reclamação do corpo, e era necessário ceder o lugar no necrotério para um novo corpo que ficaria, por sua vez, à espera de alguém que o reclamasse. O cadáver do homem enterrado anonimamente descansaria sob a terra durante três anos, após o que seus ossos deveriam ser exumados para dar lugar a um outro cadáver.

No momento da exumação dos ossos, constatou-se que aquele esqueleto estava em boas condições. Talvez rendesse algum negócio com os estudantes de medicina. O esqueleto foi avaliado e recebeu um preço razoável, aceito por ambas as partes. Afinal, não estava em condições tão ótimas assim. Alguns ossos – o fêmur esquerdo e algumas costelas – estavam partidos, essas últimas provavelmente por causa da autópsia. Porém serviriam ainda.

Ao longo do tempo, aquele punhado de ossos teve serventia vária nas aulas práticas da faculdade de medicina. Até que um professor resolveu aproveitá-lo também nas aulas teóricas. O esqueleto foi remontado, o que demandou trabalho de especialista. Os ossos foram interligados com fio de náilon, alguns colados, outros reconstituídos com resina. Finalmente pronto, sua moradia passou a ser o laboratório, ao lado de plantas e parasitas diversos, embebidos em líquidos funestos. No entanto, como podia facilmente ser levado para onde se quisesse, com certa frequência ele visitava as salas de aula da faculdade. Alguns professores, apressados, queriam ali mesmo exemplificar o que diziam os livros sobre anatomia dos ossos humanos.

O “Frankstein” de outros tempos passou a ser chamado, não se sabe porquê, de “José”, apelido certamente mais nobre. José era presença constante não apenas nas salas de aula, mais em ambientes mais festivos. O diretório estudantil conseguiu que, a cada início de semestre letivo, José fosse levado para participar da famosa calourada. Eternamente sem descanso, pendurado a um canto pelo fio de náilon que atravessava-lhe o crânio, José, o esqueleto, era obrigado a participar das brincadeiras, algumas virulentas, a que os veteranos submetiam os calouros do curso de medicina.

Numa dessas festas, um dos estudantes, usando palitos de dentes, deu um jeito de encaixar uma uva intumescida de vodca em cada buraco que outrora havia abrigado o globo ocular da caveira. Outro aluno meteu-lhe entre os dentes amarelos um canudo de refrigerante, enquanto outro ainda pendurou-lhe nos estreitos ossos dos ombros uma guirlanda plástica de pequenas flores coloridas, à moda havaiana. Uma caloura piedosa, entre as muitas que se divertiam, retirou-lhe os adereços, embora não tivesse podido conter o riso ao olhar o esqueleto.

Ao devolverem José ao laboratório, faltava a diminuta falange do dedo mínimo do pé esquerdo. O fato passou despercebido pelo zelador que recebeu o esqueleto de volta. No entanto, daí em diante, cada calourada, cada aula teórica ou prática promoveria uma progressiva e definitiva pilhagem naquilo que, quarenta anos passados desde que fora recolhido pelo rabecão, poderia ainda considerar seu.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Da série “Continuações de contos famosos”- II - Raquel, depois que Ricardo foi embora

 Uma continuação do conto “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles. 

Isabel Pires



O zumbido era ensurdecedor, rodopiando dentro de suas têmporas. Aos poucos, foi abrindo os olhos, e se deparou com aquela escuridão gelada e constante, rompida por um tênue fio de luz que penetrava pela rachadura da porta, lá em cima. Manhã? Tarde? Não saberia dizer. Tentou consultar o delicado relógio de pulso folheado a ouro, e ficou na mesma. Com toda aquela claridade, os ponteiros se confundiam, ficavam do mesmo tamanho e se embaralhavam, marcando horas fantasmagóricas. Para quê, afinal, precisava saber das horas?, refletia, consciente da sua condição de enterrada-viva. Mas não queria pensar. Sua cabeça doía, latejando uma dor lancinante, e isso era tudo. A garganta também doía, dilacerada, brasa viva dentro do seu corpo.


— Miserável! – o som rouco e quase inaudível de sua voz parecia rolar sem forças pelo ar rarefeito, ecoando tropegamente pelas partículas de poeira que infestavam o cubículo.


— Ele me paga! – me paaaaga, meeeee pagaaaaa – o som parecia se esbater pelos cantos e retornar, esfarrapado, espectro de si mesmo, assustando-a mais.


Vasculhou mais uma vez a bolsa, à procura do celular, em vão. Evidentemente, ele o havia retirado de lá, num momento de distração. Falha imperdoável. Como fora deixar se impressionar por velhos túmulos rachados e anjos de pedra decapitados? Que vacilo. Sem dúvida, fora imprudente ao extremo. Não podia se perdoar. Mordia os lábios, desesperadamente, constatando a sua demência. Sim, fora completamente idiota. Então não sabia que não podia confiar nele? Seu estômago também doía terrivelmente. Fumara todos os cigarros que haviam restado. E agora?


Deixou a cabeça pender, recostada à parede fria, os braços inermes ao comprido do corpo. Por um momento, sentiu-se, de fato, morta, e imaginava-se cinzenta e imóvel, dura e fria, perfeitamente integrada ao quadrilátero mortífero, envolvida pelos miasmas fétidos que se desprendiam vagarosamente da pedra das gavetas dos mortos em desintegração. Também ela desintegrando-se lentamente. Mas a dor espalhada pelo corpo pulsava quente, inquieta, anunciando-lhe misteriosamente que ainda vivia.


Ouviu um ruído repentino, longínquo. Ficou atenta.


— Ricardo? – ousou pronunciar o nome dele, um jato quente subitamente bombeando um sangue renovado em suas veias. Elas pulsavam, parecendo querer saltar. Sim, estava viva.
Aos poucos, conseguiu identificar o ruído: pareciam fracos pingos de chuva, tamborilando longe, em algum lugar lá fora. Fechou os olhos, apurando bem o ouvido. Porém, mais que o barulho fraco da chuva, que chegava dilacerado lá de fora, o cheiro vivo de terra molhada penetrava ardente e forte em suas narinas, poderoso, invadindo-a toda. Sim, estava viva.


Ela riu, histérica, uma risada descompassada e idiota, risada de quem já havia ultrapassado, de há muito, o precipício do desespero. Não, estava morta. E visualizou seu próprio esqueleto, metido nos farrapos da roupa que um dia fora elegante, sufocado junto com os restos da pequena capela pela fúria violenta da vida, as plantas se enroscando pelas paredes externas, disputando espaço, abafando as cores esmaecidas da morte com seu verde de vida. Via com terror um tufo de cabelos displicentemente caído ao lado do crânio a descoberto e, ridiculamente, o relógio de ouro, circundando com folga o pulso de osso. Ainda marcaria, implacavelmente, as horas?


Não, não estava morta, parecia ouvir dentro de si. Seu coração batendo angustiado dentro do peito, descompassado embora, mas vivo. Esmurrou com força as paredes, apenas para aquecer o sangue congelado nas veias, a pele fina mal recobrindo o sentimento de revolta em seus pulsos cerrados. Também eles doíam agora. Isso era, de algum modo, bom. Pela dor, podia sentir que ainda existia. Sentia que devia agarrar-se a este fio de esperança, ainda que fosse simplesmente para morrer no instante seguinte. Morta-viva, viva e morta, apenas isso.



***

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Da série “Continuações de contos famosos”- I - Leibniz e a transcendência do amor na Polinésia

 (Uma continuação do conto “A quinta história”, de Clarice Lispector)

Isabel Pires

Queixei-me de baratas. E estávamos em Samoa, uma das ilhas da Polinésia.

— Aqui não há baratas – declarou Leibniz.

Como não havia baratas na Polinésia? Fechei a cara, emburrada. Que barulho, pois, era aquele de noite, misterioso e sorrateiro, passeando dentro de gavetas, nos papéis amassados?

— Tem sim! – teimei com Leibniz.

Ele negou hermeticamente, de lábios cerrados.

— Eu vi! – menti.

Leibniz riu. Fechei mais a cara, mas não esqueci o assunto. Ficava ouvindo a noite, os olhos acesos, decifrando ruídos dentro das gavetas. Durante o dia, tanto sol, tanta água, tanto sal, não lembrava que baratas existiam em nenhuma parte do mundo, muito menos na Polinésia.

Na Polinésia não havia baratas, tinha dito Leibniz. E Leibniz devia saber. De tudo ele parecia saber, todo alemão. Leibniz.

A Austrália, uma ilha grande, era o continente mais próximo da Polinésia. Lá, era minha esperança, havia baratas. Mas Leibniz destruiu minhas expectativas: também não havia baratas na Austrália.

Tanto teimei com Leibniz que se foi criando em mim uma necessidade ocidental de baratas. Durante o dia, revirava coisas, de chinelo na mão, à procura delas. Leibniz ria, balançando a cabeça: nunca eu iria achar uma barata em toda a Polinésia. E eram muitas ilhas. E não havia baratas em nenhuma delas. De noite, eu escutava perfeitamente os ruídos, o horror gelando as minhas costas, sem coragem de enfrentá-las. Tinha pavor de baratas.

Uma noite, a lua, redonda e imensa, pesava no céu samoano, vermelha. A insônia atacava. Levantei-me. Lá fora, um vento morno agitava as folhas das plantas. Tudo o mais dormia, sob uma leve pulsação. Voltei para a cama, insone, sentindo tudo mais vivo. A lua alerta, velando o sono dos mortais. E então o ruído estalou inteiro nos meus ouvidos. Leibniz ressonava mansamente. Chamei-o. De dentro do sono ele perguntou o que era.

— Ba-ra-ta... – falei devagar, imprimindo medo e certeza à voz.

Leibniz levantou-se, entediado, mas disposto a acabar de vez com a minha neurose. Queria provar que, definitivamente, não havia baratas na Polinésia. Ia começar uma longa – e talvez científica – preleção do porquê não havia baratas lá, quando o mandei, ansiosa, escutar. Ele ficou imóvel, aplicando bem o ouvido. Uns fracos estalos se fizeram ouvir. Olhei para ele, entre apavorada e vitoriosa. Leibniz se moveu na direção do ruído. Revirou mochilas, sacolas, malas. Revistou papéis, relatórios, rascunhos. Nada. Já ia dar o caso por encerrado, quando o barulho estalou, nítido. Armei-me com um chinelo, cautelosamente.

O barulho vinha de uma caixa de papelão enorme, onde estavam velhos livros de pesquisa de Leibniz, todos escritos em alemão, e cadernos com rascunhos de relatórios antigos. Leibniz despejou tudo no chão, implacável. Sacudiu os cadernos, os livros. Nada, absolutamente, de baratas. De repente, o estalo soou seco, na caixa vazia. Leibiniz aproximou-se. Eu também, escudada por ele. Com nojo e satisfação, constatei, num dos ângulos da caixa, a barata, imensa, que nos saudava agitando as antenas, asquerosamente.

Levantei o chinelo, fazendo pontaria. Mas Leibniz cortou meu gesto no ar, segurando-me forte o braço. O chinelo tombou sem força no chão. A barata correu assustada dentro da caixa. Sem entender, encarei-o, talvez com um pouco de rancor. Ele olhava a barata, todo alemão. Alemães são inexplicáveis, e Leibniz mais que todos. De mãos nos quadris, ele olhava a barata. Por que não a matava?

— Mata logo isso – ordenei, angustiada com suspense tão sem sentido.

A barata se mexeu, mais uma vez, no papelão. Recuei um passo. Leibniz fitou-me, infinitamente, e balançou a cabeça, negando. Não iria matar a barata. Uma revolta muda se apoderou de mim. Iria ele exigir que eu – eu, que tinha nojo e pavor de baratas – matasse aquele inseto repugnante?

Leibniz, o inexplicável, talvez quisesse que eu mesma matasse a barata para acabar com a minha neurose, enfrentando de vez o meu pavor – pensei ter compreendido. Peguei novamente o chinelo. E mais uma vez Leibniz cortou o meu gesto, atirando o chinelo para longe. Dentro da caixa, a barata se mexia, inquieta, agitando freneticamente as antenas.

De onde ela teria vindo? Todos os continentes tão distantes... E imaginei-a viajando clandestinamente no meio das nossas coisas, passeando nos livros alemães de Leibniz.

— Por que você não mata a barata? – perguntei baixo, com receio de incomodá-la.

Leibniz olhou-me longa e inexplicavelmente. Suspirou fundo, meio triste, ou apenas cansado, e finalmente falou, com a voz um pouco embargada:

— Baratas são cegas.

Baratas são cegas, tinha ele dito. E daí? – fiquei com vontade de perguntar. De olhos baixos, com a cabeça meio tombada de lado, ele olhava para a barata na caixa. Desisti da pergunta e senti uma vontade danada de chorar. Inusitadamente, uma barata me comovia. Ou seria Leibniz quem me comovia?

Aproximei-me desajeitadamente dele.

— São cegas, é? – perguntei, a voz entrecortada. Ele afirmou com a cabeça.

— Vou mostrar – disse.

Pegou com cuidado a caixa, levando-a para um canto nu, descoberto – apenas chão e parede. Em seguida, apanhou o chinelo. A barata continuava lá dentro, se mexendo de um lado para o outro, sem ter para onde ir.

— Veja, elas se guiam pelo som. Quando ouvem um barulho, correm exatamente para o lado oposto. Se elas se refugiarem num canto muito difícil, é só fazer um barulho próximo delas, que elas logo correm, procurando fugir do perigo. Aí, sem saber, se deixam a descoberto. E morrem – concluiu ele, a voz sufocada.

Leibniz virou a caixa de lado. Bateu devagar com o chinelo no papelão. A barata foi saindo, desconfiada. Procurou um canto qualquer. Eu, dura, acompanhava de longe a demonstração. Leibniz aproximou o chinelo, quase tocando-a, e estalou-o no chão. A barata correu para o outro lado, como dissera Leibniz. Ele repetiu mais algumas vezes o estalo do chinelo no chão, para fazê-la entrar de novo na caixa. Assim que conseguiu, levantou a caixa com a ponta dos dedos e levou-a para fora. Pousou a caixa no chão, tombando-a delicadamente. E libertou a barata no meio da noite samoana.

Leibniz apagou a luz e voltou para o sono. Eu, para minha insônia, de rugas na testa, tentando compreender as baratas, a Polinésia, o mundo. Tentando compreender Leibniz, que ressonava pesado ao meu lado. Finalmente adormeci.

No outro dia, a caixa de papelão vazia e virada de lado, lá fora, lembrava-me que, agora, havia uma barata na Polinésia. 

***

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

O bebê de Vera Lúcia

 Isabel Pires

Chama-se Vera Lúcia. Tem uma grande barriga e pernas fininhas e braços também e cinco anos incompletos de idade. E tem uma mãe que tem dez filhos e um olho cego.

— Eu tenho um nenê.

— É?!

— Você já viu ele?

Outro dia ela fez um belo desenho. Representava uma barata gigantesca tendo filhotes. E outro desenho ainda: “patinhos dentro de um homem”.

— Você sabe onde eu moro?

— Hã-hã.

— Hoje é meu aniversário.

— É?!

Todo dia era seu aniversário, mas infinitamente ela nunca ultrapassava os cinco anos incompletos de idade. E tinha um nenê.

— Você já viu ele?

— Quem?

— O meu nenê.

O bebê sempre vinha no colo da mãe.

— Mas é meu. Minha mãe teve ele pra mim – ela afirmava, balançando a cabeça e sacudindo decidida o fio fino do queixo.

A barriga dela, grande, aumentava de tamanho depois da sopa.

— Quero mais.

Raspava o fundo do prato, buscando a última gota.

— Quer mais?

Balançava a cabeça e os pés, suspensos sob o vão da cadeira. O segundo prato vinha, fumegante.

— Quer mais?!

No pátio, a barriga crescida, ela sentava no banco de cimento, as perninhas cruzadas. Súbito:

— Quero ir ao banheiro.

— Já?!

A mãe vinha, o bebê no colo, o olho velado procurando a menina entre as outras crianças.

— Vam’bora Verinha.

Verinha batia palmas, dando risadinhas saltitantes.

— Olha lá meu nenê. Tá no colo da minha mãe, mas é meu!

 

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domingo, 23 de outubro de 2022

A flor

                                                                                                                                                   Isabel Pires

 

Uma flor.

Eu a vejo impregnada por todos os cantos: no armário antigo, no cofre-forte, no quadro onde há um pedaço de mar e um barco e uma casa. E nuvens pesadas ameaçando chuva. Talvez sejam elas, as nuvens do quadro, que deem este aspecto meio sombrio ao ambiente. Ou será ela, a flor?

Tudo burocraticamente irrevolvível.

Até as plantas, naturais, parecem de plástico, na sua imobilidade severa.

Um certo desleixo, entretanto, marca a sua ausência: uma cadeira meio fora do lugar.

Embora seja apenas uma flor, é daquelas vistosas, repolhudas. Uma rosa? Talvez. Muito viço, é certo. E ainda algum frescor. Tão séria, que seu rosto é isento de rugas e traços mais definidos. Uma máscara de lábios carnudos discretamente pintados. Uma máscara que não se move, não se crispa nem se contrai em lágrimas ou risos.

Mas possui defesas. Sim. Não pisem nos seus calos, que ela reage de imediato, como uma rosa indefesa se protege com seus espinhos diante de alguma ameaça.

Sim, uma rosa extremamente vistosa, cercada de espinhos, ilhada no seu próprio encanto e na sua própria solidão.

Embora ausente, é como se marcasse o ambiente com seu perfume impossível de se dissolver no ar, já impregnado e fixado nos velhos móveis, nos tapetes, nos papéis amarelecidos, nas cortinas empoeiradas.

O perfume de uma rosa vistosa, encantadora, solitária com seus espinhos.

Alguma coisa antiga vem de sua essência. É então que percebemos externada nos delicados aros dourados dos óculos de miopia. Uma rosa dourada? Talvez, amarela.

A imagem completa: uma rosa amarela, de um perfume antigo de rosa amarela, vistosa e cercada de espinhos por todos os lados. Mas ainda uma flor...

Embora rosa, e embora cheia de defesas com seus espinhos, e embora com perfume de rosa amarela – tão marcante e tão discreto – e embora tão vistosa...

Apenas uma flor.

— As flores são perecíveis, exceto as flores de plástico.

Não. Ao contrário das plantas naturais que aparentam ser de plástico, ela, a flor, não poderia nunca ser confundida com uma flor de plástico, que embora sem valor algum permanece... Não morre.

Os dentes morderam de leve os lábios carnudos, único movimento perceptível naquela máscara. Como se se revoltassem contra aquele estado de coisas, impossível de ser mudado.

Pois como podiam flores naturais transmutarem-se em flores de plástico? Havia que se apelar talvez para uma feiticeira? Como na história da sereiazinha que queria virar uma mulher comum e possuir duas pernas, em lugar de um rabo de sereia, para conquistar seu príncipe...

Uma mulher comum?

Preferiria a morte.

E era, na verdade, tudo o que definia seu estado puro de pura flor efêmera, cujo frescor se evadia a cada minuto – a conformação diante da própria morte, pois mesmo que a soubesse fatal, não havia ainda a rosa, o viço, o perfume?

sábado, 22 de outubro de 2022

As luvas grossas de lã

 

Isabel Pires 

A jovem mulher acordou no meio da noite. Olhou o marido profundamente adormecido, levantou-se e vestiu o penhoar. Foi até a cozinha, colocou água para o café no fogo, deixou preparado um lanche sobre a mesinha e pegou no bolso do penhoar o telefone celular.

Abriu o aparelho, trocando de chip, e digitou um número. No quarto, o celular do marido, descansando no criado mudo, tocou. O jovem, ainda meio adormecido, consultou o número na tela: “Desconhecido”. Quem seria àquela hora? Pensou em não atender, mas podia ser alguma coisa muito urgente. Atendeu com voz sonolenta.

— Alô?!

Não ouviu nenhuma resposta. Perguntou quem era. Silêncio do outro lado. Subitamente, desligaram. O jovem então pulou da cama num ímpeto e atravessou como um raio o quarto.

Na cozinha, a jovem aguardava a fervura da água no fogo. Viu o marido atravessar o corredor em passos rápidos, e um leve sorriso passo-lhe pelos lábios – fora mais rápida que ele. O marido entrou na cozinha.

— O que você está fazendo?!

— Café. Acordei com uma fome... – respondeu tranquilamente a jovem. Olhou para o marido – Ouvi o seu telefone tocar. Quem era?

— Engano.

— O quê?! Ligam a uma hora dessas e é engano? Incrível! – disse, e desviou o olhar para a água no fogo.

— E quem você queria que fosse? – questionou o marido, entre cauteloso e desconfiado.

— Sei lá. Numa hora dessas, deveria ser alguma coisa importante, não acha? – olhou de soslaio.

— Acho – disse o marido.

A jovem derramou a água fervente sobre o pó de café no coador de papel.

— Era homem ou mulher?

— Hã?!

— No telefone. Era homem ou mulher?

— Não sei.

A jovem encarou o marido. Fez uma cara risonha.

— Que sono, hein! Não sabe nem se era homem ou mulher no telefone...

O rapaz examinava atentamente a jovem coando o café sentaram-se na mesinha, a jovem de costas para a porta. Serviu-se de café e voltou o olhar para o rapaz à sua frente. No rosto do marido estampava-se uma expressão alerta.

— Cadê o seu celular? – perguntou ele, enfático.

O coração da jovem mulher disparou. Não contava com aquela pergunta inesperada.

— Está aqui. Por quê? – quis saber ela, retirando do bolso do penhoar o aparelho.

O marido engoliu devagar o café. A mulher colocou o telefone sobre a mesa. Pegou uma torrada. Suas mãos tremiam de leve. Sentia o olhar do marido em suas mãos.

— O que foi? – perguntou, um tom imperceptivelmente trêmulo na voz.

— Nada, disse ele. Me empresta? – e pegou o celular da mulher.

— O quê?! – disse ela, entre surpresa e alerta.

— Calma, vou só testar o meu celular – e ligou para si próprio, levantando-se da mesa e indo em direção ao quarto. Voltou com o seu celular na mão. Na tela, o nome da mulher vibrava.

— Não vai atender? – perguntou ela tranquilamente, com voz firme, dando uma risadinha. Embora as mãos continuassem ligeiramente trêmulas.

O marido desligou o telefone da mulher e o devolveu. A mulher pegou o aparelho e guardou-o de volta no bolso do penhoar.

— Por que você trouxe o celular para a cozinha?

— Para ligar para você, meu amor... – disse ela com expressão brincalhona – Na verdade, já estava no bolso do roupão, quando o vesti – contou, e era tudo absolutamente verdade.

Pegou mais uma torrada, ainda com as mãos um pouco trêmulas. O jovem fixou o olhar nas mãos da esposa passando margarina na torrada. De repente, tomou-lhe uma das mãos. A faca tombou sobre a mesa.

— Nossa, que mão mais gelada! – comentou ele. O tom era brando, suave.

— Essas minhas mãos, estão sempre geladas!

Ela retirou de leve a mão de entre as mãos do marido e envolveu com ela a xícara de café, para aquecê-la.

— Eu devia usar luvas de lã, daquelas bem grossas, sabe... Mas é que tenho alergia. Minhas mãos ficam empoladas, cheias de carocinhos vermelhos. Fica parecendo pipoca. E arde.

O marido tomou entre as suas as mãos da esposa e aqueceu-as num beijo. Sorria.

 

***

sábado, 15 de outubro de 2022

Almoço ajantarado

 Isabel Pires

O marido, aposentado, continuava sentado muito quieto na cadeira de vime, na varanda da casa, entre vasos de plantas e a rede à sua frente. Lia tranquilo as principais notícias do dia, no tablet que o filho lhe dera de presente de dia dos pais. De vez em quando, mastigava furtivo um biscoito de água-e-sal. Sua mulher, por sua vez, movimentava-se impaciente pela casa, abrindo e fechando portas com estrondo, à exceção da porta da cozinha, que permanecia cerrada.

— Absurdo!, dizia ela. Quase quatro da tarde, e nada de almoço! Estou morrendo de fome! Se não comer logo, vou ter um troço!

O marido chamou-a, pigarreando antes o catarro preso na garganta, efeito do cigarro que fumara por mais de trinta anos:

— Dulce! – queria talvez oferecer à mulher um dos seus biscoitos de água-e-sal, mas Dulce dirigiu-se à porta trancada da cozinha e bateu de leve, a boca encostada no portal, quase suplicando:

— Abram, por favor! Quero entrar só um pouquinho! – E alteando a voz: Abre isso!

Ouviu uma das cozinheiras:

— Espera só mais um pouco, dona Dulce. O almoço já está quase pronto. Falta só terminar a farofa.

— Farofa... – gemeu baixinho dona Dulce, a boca já salivando. Farofa de quê? – E mais alto: Terminem isso, já são quatro horas. Vou acabar desmaiando de fome!

Outra voz, autoritária, ressoou lá de dentro:

— Não adianta, dona Dulce. São três e vinte ainda. Às três e meia, o almoço vai para a mesa. Pode esperar um pouco.

Dona Dulce deu um violento soco na porta. Atravessou o corredor e trancou-se no quarto. Sentou-se na cama, com as pernas dobradas, os lábios se apertando de raiva.

Pouco depois ouviu os rumores dos passos cautelosos das duas cozinheiras, que iam e viam da copa para cozinha, pondo a mesa para o almoço do casal. Os ruídos dos talheres e pratos chegavam ao quarto, junto com o aroma da comida. A mulher sentada na cama levantou-se, foi até a penteadeira, e se pôs a escovar freneticamente os cabelos. Olhou-se demoradamente no espelho e, mais calma, deixou o quarto.

Na sala de jantar, as duas mulheres em volta da mesa se riam e conversavam alegremente, contentes talvez com o resultado do seu trabalho, disposto nas travessas sobre a mesa: lombo de porco assado, arroz colorido, salada de maionese, farofa de banana da terra. Ainda tinha a sobremesa: pudim de leite com calda caramelizada!

A mais velha das duas mulheres voltou-se para dona Dulce, parada no limiar da porta:

— Tá vendo, dona Dulce? Não precisava tanta pressa. O almoço já está servido.

Dona Dulce girou sobre si mesma e voltou a se trancar no quarto. O marido, que entrava naquele exato instante, atravessou a sala de jantar, balançando a cabeça. Bateu delicada, mas firmemente, na porta do quarto.

— Abre, Dulce, vem almoçar. Deixa de bobagem. Você não estava morrendo de fome? Então?

Nada. Mais batidas, mais súplicas. Silêncio no quarto. As duas mulheres aguardavam de pé diante da mesa.

— E agora, seu Valter? O que fazemos?

Seu Valter – era o nome do marido – olhou-as e, com um gesto, mandou que se retirassem.

Na mesa, o lombo de porco com farofa esfriava, a maionese de legumes esquentava. Depois de mais algumas insistências junto à porta do quarto, seu Valter desistiu. Sentou-se à mesa e começou a servir-se. Nesse instante, a porta do quarto abriu-se e surgiu o rosto lívido de dona Dulce. Atravessou solenemente a sala de jantar. Sentou-se à mesa, sem olhar para os lados. Contemplou um instante as travessas repletas e, então, atacou vorazmente a comida. Sua fome parecia insaciável. Empanturrava-se de uma coisa, de outra, devorando tudo inteiro.

Findo o almoço, seu Valter foi se balançar na rede da varanda, ainda lambendo a calda de caramelo do pudim, que escorria pelos seus beiços. Dispensara o cafezinho. Dona Dulce trancou-se no quarto e, meia hora depois, pedia um sal de frutas.

A cozinheira mais nova entrou no quarto com o copo na mão. Espichada na cama, dona Dulce contorcia-se toda, apertando o estômago. Gemia.

— Bebe isso aqui, dona Dulce. Não fica assim não, fica calma.

Dona Dulce pegou o copo borbulhante de sal de frutas e tomou tudo, de um só gole.

— Ai, ai, estou passando muito mal. Chama a Luzia.

Luzia, a cozinheira mais velha, enfiou a cara dentro do quarto de dona Dulce:

— Estou aqui, dona Dulce.

— Ai, Luzia, se eu piorar, me faz um chá? Bem quente e forte, com pouco açúcar, viu? – Seu olhar era suplicante.

— Tá bem dona Dulce. Vou fazer um chá de camomila, então. Que é para acalmar.

Chamou a outra:

— Vem, vamos arrumar logo a cozinha. Tem muito serviço pra fazer.

As duas saíram do quarto. A mulher deitada continuou gemendo, agora baixinho. Instantes depois, pulou da cama, tremendo, pálida. Apertava a boca com uma mão. Com a outra, agarrou o trinco da porta. Mas não chegou a sair do quarto. Vomitou todo o almoço na soleira da porta.

As cozinheiras acudiram, prestimosas. Limparam tudo, deitaram a patroa na cama, deram-lhe um comprimido e ataram-lhe à cabeça uma compressa de água fria. Uma hora depois, entraram no quarto carregando uma bandeja de chá. Acordaram a mulher.

— Senta, dona Dulce. Bebe este chazinho aqui. Olha, tem torrada. E aquela broa que a senhora gosta. Como tudo!

E, diante dos fracos protestos da doente, retrucaram:

— A senhora precisa se alimentar, dona Dulce. Imagina, ficar assim com o estômago vazio. Faz mal. Se a senhora não se alimentar, vai ficar fraca.

— Verdade, disse a mais nova. Pode até adoecer!

Na varanda, o marido de dona Dulce palitava os dentes, balançando-se de leve na rede, sentindo no rosto a brisa fresca do final de tarde. Em pouco, adormecia.