(Uma continuação do conto “A quinta história”, de Clarice Lispector)
Isabel Pires
Queixei-me de baratas. E estávamos em Samoa, uma das
ilhas da Polinésia.
— Aqui não há baratas –
declarou Leibniz.
Como
não havia baratas na Polinésia? Fechei a cara, emburrada. Que barulho, pois,
era aquele de noite, misterioso e sorrateiro, passeando dentro de gavetas, nos
papéis amassados?
—
Tem sim! – teimei com Leibniz.
Ele
negou hermeticamente, de lábios cerrados.
—
Eu vi! – menti.
Leibniz
riu. Fechei mais a cara, mas não esqueci o assunto. Ficava ouvindo a noite, os
olhos acesos, decifrando ruídos dentro das gavetas. Durante o dia, tanto sol,
tanta água, tanto sal, não lembrava que baratas existiam em nenhuma parte do
mundo, muito menos na Polinésia.
Na
Polinésia não havia baratas, tinha dito Leibniz. E Leibniz devia saber. De
tudo ele parecia saber, todo alemão. Leibniz.
A Austrália, uma ilha grande, era o continente mais próximo da Polinésia. Lá, era minha esperança, havia baratas. Mas Leibniz destruiu minhas expectativas: também não havia baratas na Austrália.
Tanto
teimei com Leibniz que se foi criando em mim uma necessidade ocidental de
baratas. Durante o dia, revirava coisas, de chinelo na mão, à procura delas.
Leibniz ria, balançando a cabeça: nunca eu iria achar uma barata em toda a
Polinésia. E eram muitas ilhas. E não havia baratas em nenhuma delas. De noite, eu escutava perfeitamente os ruídos, o horror gelando as
minhas costas, sem coragem de enfrentá-las. Tinha pavor de baratas.
Uma
noite, a lua, redonda e imensa, pesava no céu samoano, vermelha. A insônia
atacava. Levantei-me. Lá fora, um vento morno agitava as folhas das plantas. Tudo
o mais dormia, sob uma leve pulsação. Voltei para a cama, insone, sentindo tudo
mais vivo. A lua alerta, velando o sono dos mortais. E então o ruído estalou
inteiro nos meus ouvidos. Leibniz ressonava mansamente. Chamei-o.
De dentro do sono ele perguntou o que era.
—
Ba-ra-ta... – falei devagar, imprimindo medo e certeza à voz.
Leibniz
levantou-se, entediado, mas disposto a acabar de vez com a minha neurose.
Queria provar que, definitivamente, não havia baratas na Polinésia. Ia começar
uma longa – e talvez científica – preleção do porquê não havia baratas lá,
quando o mandei, ansiosa, escutar. Ele ficou imóvel, aplicando bem o ouvido. Uns
fracos estalos se fizeram ouvir. Olhei para ele, entre apavorada e vitoriosa.
Leibniz se moveu na direção do ruído. Revirou mochilas, sacolas, malas.
Revistou papéis, relatórios, rascunhos. Nada. Já ia dar o caso por encerrado,
quando o barulho estalou, nítido. Armei-me com um chinelo, cautelosamente.
O
barulho vinha de uma caixa de papelão enorme, onde estavam velhos livros de
pesquisa de Leibniz, todos escritos em alemão, e cadernos com rascunhos de
relatórios antigos. Leibniz despejou tudo no chão, implacável. Sacudiu os
cadernos, os livros. Nada, absolutamente, de baratas. De repente, o estalo soou
seco, na caixa vazia. Leibiniz aproximou-se. Eu também, escudada por ele. Com
nojo e satisfação, constatei, num dos ângulos da caixa, a barata, imensa, que
nos saudava agitando as antenas, asquerosamente.
Levantei
o chinelo, fazendo pontaria. Mas Leibniz cortou meu gesto no ar, segurando-me
forte o braço. O chinelo tombou sem força no chão. A barata correu assustada
dentro da caixa. Sem entender, encarei-o, talvez com um pouco de rancor. Ele
olhava a barata, todo alemão. Alemães são inexplicáveis, e Leibniz mais que
todos. De mãos nos quadris, ele olhava a barata. Por que não a matava?
—
Mata logo isso – ordenei, angustiada com suspense tão sem sentido.
A
barata se mexeu, mais uma vez, no papelão. Recuei um passo. Leibniz fitou-me,
infinitamente, e balançou a cabeça, negando. Não iria matar a barata. Uma
revolta muda se apoderou de mim. Iria ele exigir que eu – eu, que tinha nojo e
pavor de baratas – matasse aquele inseto repugnante?
Leibniz,
o inexplicável, talvez quisesse que eu mesma matasse a barata para acabar com a
minha neurose, enfrentando de vez o meu pavor – pensei ter compreendido. Peguei
novamente o chinelo. E mais uma vez Leibniz cortou o meu gesto, atirando o
chinelo para longe. Dentro da caixa, a barata se mexia, inquieta, agitando
freneticamente as antenas.
De
onde ela teria vindo? Todos os continentes tão distantes... E imaginei-a
viajando clandestinamente no meio das nossas coisas, passeando nos livros
alemães de Leibniz.
—
Por que você não mata a barata? – perguntei baixo, com receio de incomodá-la.
Leibniz
olhou-me longa e inexplicavelmente. Suspirou fundo, meio triste, ou apenas
cansado, e finalmente falou, com a voz um pouco embargada:
—
Baratas são cegas.
Baratas
são cegas, tinha ele dito. E daí? – fiquei com vontade de perguntar. De olhos
baixos, com a cabeça meio tombada de lado, ele olhava para a barata na caixa.
Desisti da pergunta e senti uma vontade danada de chorar. Inusitadamente, uma
barata me comovia. Ou seria Leibniz quem me comovia?
Aproximei-me
desajeitadamente dele.
—
São cegas, é? – perguntei, a voz entrecortada. Ele afirmou com a cabeça.
—
Vou mostrar – disse.
Pegou
com cuidado a caixa, levando-a para um canto nu, descoberto – apenas chão e
parede. Em seguida, apanhou o chinelo. A barata continuava lá dentro, se
mexendo de um lado para o outro, sem ter para onde ir.
—
Veja, elas se guiam pelo som. Quando ouvem um barulho, correm exatamente para o
lado oposto. Se elas se refugiarem num canto muito difícil, é só fazer um
barulho próximo delas, que elas logo correm, procurando fugir do perigo. Aí,
sem saber, se deixam a descoberto. E morrem – concluiu ele, a voz sufocada.
Leibniz
virou a caixa de lado. Bateu devagar com o chinelo no papelão. A barata foi
saindo, desconfiada. Procurou um canto qualquer. Eu, dura, acompanhava de longe
a demonstração. Leibniz aproximou o chinelo, quase tocando-a, e estalou-o no
chão. A barata correu para o outro lado, como dissera Leibniz. Ele repetiu
mais algumas vezes o estalo do chinelo no chão, para fazê-la entrar de novo na
caixa. Assim que conseguiu, levantou a caixa com a ponta dos dedos e levou-a
para fora. Pousou a caixa no chão, tombando-a delicadamente. E libertou a
barata no meio da noite samoana.
Leibniz
apagou a luz e voltou para o sono. Eu, para minha insônia, de rugas na testa,
tentando compreender as baratas, a Polinésia, o mundo. Tentando compreender
Leibniz, que ressonava pesado ao meu lado. Finalmente adormeci.
No outro dia, a caixa de papelão vazia e virada de lado, lá fora, lembrava-me que, agora, havia uma barata na Polinésia.
***
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