terça-feira, 25 de outubro de 2022

Da série “Continuações de contos famosos”- I - Leibniz e a transcendência do amor na Polinésia

 (Uma continuação do conto “A quinta história”, de Clarice Lispector)

Isabel Pires

Queixei-me de baratas. E estávamos em Samoa, uma das ilhas da Polinésia.

— Aqui não há baratas – declarou Leibniz.

Como não havia baratas na Polinésia? Fechei a cara, emburrada. Que barulho, pois, era aquele de noite, misterioso e sorrateiro, passeando dentro de gavetas, nos papéis amassados?

— Tem sim! – teimei com Leibniz.

Ele negou hermeticamente, de lábios cerrados.

— Eu vi! – menti.

Leibniz riu. Fechei mais a cara, mas não esqueci o assunto. Ficava ouvindo a noite, os olhos acesos, decifrando ruídos dentro das gavetas. Durante o dia, tanto sol, tanta água, tanto sal, não lembrava que baratas existiam em nenhuma parte do mundo, muito menos na Polinésia.

Na Polinésia não havia baratas, tinha dito Leibniz. E Leibniz devia saber. De tudo ele parecia saber, todo alemão. Leibniz.

A Austrália, uma ilha grande, era o continente mais próximo da Polinésia. Lá, era minha esperança, havia baratas. Mas Leibniz destruiu minhas expectativas: também não havia baratas na Austrália.

Tanto teimei com Leibniz que se foi criando em mim uma necessidade ocidental de baratas. Durante o dia, revirava coisas, de chinelo na mão, à procura delas. Leibniz ria, balançando a cabeça: nunca eu iria achar uma barata em toda a Polinésia. E eram muitas ilhas. E não havia baratas em nenhuma delas. De noite, eu escutava perfeitamente os ruídos, o horror gelando as minhas costas, sem coragem de enfrentá-las. Tinha pavor de baratas.

Uma noite, a lua, redonda e imensa, pesava no céu samoano, vermelha. A insônia atacava. Levantei-me. Lá fora, um vento morno agitava as folhas das plantas. Tudo o mais dormia, sob uma leve pulsação. Voltei para a cama, insone, sentindo tudo mais vivo. A lua alerta, velando o sono dos mortais. E então o ruído estalou inteiro nos meus ouvidos. Leibniz ressonava mansamente. Chamei-o. De dentro do sono ele perguntou o que era.

— Ba-ra-ta... – falei devagar, imprimindo medo e certeza à voz.

Leibniz levantou-se, entediado, mas disposto a acabar de vez com a minha neurose. Queria provar que, definitivamente, não havia baratas na Polinésia. Ia começar uma longa – e talvez científica – preleção do porquê não havia baratas lá, quando o mandei, ansiosa, escutar. Ele ficou imóvel, aplicando bem o ouvido. Uns fracos estalos se fizeram ouvir. Olhei para ele, entre apavorada e vitoriosa. Leibniz se moveu na direção do ruído. Revirou mochilas, sacolas, malas. Revistou papéis, relatórios, rascunhos. Nada. Já ia dar o caso por encerrado, quando o barulho estalou, nítido. Armei-me com um chinelo, cautelosamente.

O barulho vinha de uma caixa de papelão enorme, onde estavam velhos livros de pesquisa de Leibniz, todos escritos em alemão, e cadernos com rascunhos de relatórios antigos. Leibniz despejou tudo no chão, implacável. Sacudiu os cadernos, os livros. Nada, absolutamente, de baratas. De repente, o estalo soou seco, na caixa vazia. Leibiniz aproximou-se. Eu também, escudada por ele. Com nojo e satisfação, constatei, num dos ângulos da caixa, a barata, imensa, que nos saudava agitando as antenas, asquerosamente.

Levantei o chinelo, fazendo pontaria. Mas Leibniz cortou meu gesto no ar, segurando-me forte o braço. O chinelo tombou sem força no chão. A barata correu assustada dentro da caixa. Sem entender, encarei-o, talvez com um pouco de rancor. Ele olhava a barata, todo alemão. Alemães são inexplicáveis, e Leibniz mais que todos. De mãos nos quadris, ele olhava a barata. Por que não a matava?

— Mata logo isso – ordenei, angustiada com suspense tão sem sentido.

A barata se mexeu, mais uma vez, no papelão. Recuei um passo. Leibniz fitou-me, infinitamente, e balançou a cabeça, negando. Não iria matar a barata. Uma revolta muda se apoderou de mim. Iria ele exigir que eu – eu, que tinha nojo e pavor de baratas – matasse aquele inseto repugnante?

Leibniz, o inexplicável, talvez quisesse que eu mesma matasse a barata para acabar com a minha neurose, enfrentando de vez o meu pavor – pensei ter compreendido. Peguei novamente o chinelo. E mais uma vez Leibniz cortou o meu gesto, atirando o chinelo para longe. Dentro da caixa, a barata se mexia, inquieta, agitando freneticamente as antenas.

De onde ela teria vindo? Todos os continentes tão distantes... E imaginei-a viajando clandestinamente no meio das nossas coisas, passeando nos livros alemães de Leibniz.

— Por que você não mata a barata? – perguntei baixo, com receio de incomodá-la.

Leibniz olhou-me longa e inexplicavelmente. Suspirou fundo, meio triste, ou apenas cansado, e finalmente falou, com a voz um pouco embargada:

— Baratas são cegas.

Baratas são cegas, tinha ele dito. E daí? – fiquei com vontade de perguntar. De olhos baixos, com a cabeça meio tombada de lado, ele olhava para a barata na caixa. Desisti da pergunta e senti uma vontade danada de chorar. Inusitadamente, uma barata me comovia. Ou seria Leibniz quem me comovia?

Aproximei-me desajeitadamente dele.

— São cegas, é? – perguntei, a voz entrecortada. Ele afirmou com a cabeça.

— Vou mostrar – disse.

Pegou com cuidado a caixa, levando-a para um canto nu, descoberto – apenas chão e parede. Em seguida, apanhou o chinelo. A barata continuava lá dentro, se mexendo de um lado para o outro, sem ter para onde ir.

— Veja, elas se guiam pelo som. Quando ouvem um barulho, correm exatamente para o lado oposto. Se elas se refugiarem num canto muito difícil, é só fazer um barulho próximo delas, que elas logo correm, procurando fugir do perigo. Aí, sem saber, se deixam a descoberto. E morrem – concluiu ele, a voz sufocada.

Leibniz virou a caixa de lado. Bateu devagar com o chinelo no papelão. A barata foi saindo, desconfiada. Procurou um canto qualquer. Eu, dura, acompanhava de longe a demonstração. Leibniz aproximou o chinelo, quase tocando-a, e estalou-o no chão. A barata correu para o outro lado, como dissera Leibniz. Ele repetiu mais algumas vezes o estalo do chinelo no chão, para fazê-la entrar de novo na caixa. Assim que conseguiu, levantou a caixa com a ponta dos dedos e levou-a para fora. Pousou a caixa no chão, tombando-a delicadamente. E libertou a barata no meio da noite samoana.

Leibniz apagou a luz e voltou para o sono. Eu, para minha insônia, de rugas na testa, tentando compreender as baratas, a Polinésia, o mundo. Tentando compreender Leibniz, que ressonava pesado ao meu lado. Finalmente adormeci.

No outro dia, a caixa de papelão vazia e virada de lado, lá fora, lembrava-me que, agora, havia uma barata na Polinésia. 

***

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