quarta-feira, 15 de março de 2023

Da série “Continuações de contos famosos” – IV – Missa do Galo: a versão de D. Conceição

 

Isabel Pires

Tudo quieto. Até mesmo na noite de Natal, era essa quietude abafada, como se, a qualquer momento, a casa fosse explodir em mil estilhaços de solidão. Noite de Natal. A Missa do Galo, porém, ainda ia demorar.

Acabara de se preparar para dormir, as chinelas de alcova descansando mansamente ao lado da cama grande e fria. Vazio. Só ela com seus botões. O marido, o escrivão Francisco Meneses, tinha ido ao sagrado e infalível “teatro” semanal. Pois sim, teatro... Havia se preparado cuidadosamente para dormir, mas, como soubesse ser noite de Natal, por isso mesmo não conseguia mergulhar no sono. Os olhos secos e abertos observando seus pensamentos esquisitos. Olhava a cama espraiada ao redor, e a ausência do marido era sólida, palpável. Nem mesmo a noite de Natal sobrara-lhe, a não ser em meras recordações, do tempo em que podia dar-se ao luxo de ir à Missa do Galo. Recordava-se dos vestidos que usava então. Tão recatados... nem um mínimo pedacinho do colo alvo a exibir, como o faziam as outras, abanando-se muito com leques enormes e coloridos na igreja apinhada de gente. E percebeu, mais uma vez, o fio do tempo esvaindo-se implacável à sua frente.

A primeira vez que sentira essa coisa fugidia – o tempo – escoando por entre os dedos foi quando se casara, aos vinte e sete anos de idade. Diziam que ela, definitivamente, estava indo para o “barricão”. Terror de todas as solteiras que já tinham completado as vinte e cinco primaveras: barricão, caritó, solteirona. Todas elas palavras sinônimas daquele imenso vazio que era a solidão. Mas agora, trinta anos completos e enfim casada, que lhe restara, senão a mais pura solidão?! Os olhos secos e abertos passeavam pela cama deserta, mas podia sentir a presença de Chiquinho. O cheiro nos lençóis. Podia até mesmo sentir aquela “outra” presença na sua cama. Não estava sozinha afinal, mas acompanhada pelos incômodos fantasmas, ela mesma um fantasma insone nesta noite de Natal.

Missa do Galo... Ah! Nos tempos de solteira, era a ocasião de se pôr à mostra, ao alcance dos olhares masculinos e, no entanto, o que fazia? Tão recatada!... Lamentava o tempo perdido, sim. Se pudesse voltar atrás? Os olhos, secos, iam buscar na memória o tempo que não mais volta. Ah! Os seus dezoito anos... os vinte e dois... Mesmo os vinte e quatro, os vinte e cinco... Os bailes, os passeios em Paquetá... Na solidão daqueles trinta anos, sentia-se no limiar entre o que foi e o que não mais seria, simples coisa esquecida num canto qualquer da casa, aquela casa tão quieta, quieta. E era noite de Natal. Tudo embebido no mais completo silêncio, como a velha Inácia, sua mãe, mergulhada no sono no quarto mais ao fundo da casa.

Inquieta, apalpava o próprio corpo por debaixo da camisola, preocupada já com a ação devastadora do tempo inexorável que se estendia à sua frente como num paradoxo: um vazio interminável que se encurtava cada vez mais rápido. Imaginava que não tardaria o tempo em que teria saudades desses trinta anos, quando as carnes desabassem flácidas, já sem qualquer serventia. No entanto, nesse preciso instante, ainda tinha seus trinta anos. Magra. Isso, com absoluta certeza, era uma vantagem. Sabia de muitas que, às vezes até mais jovens que ela, eram verdadeiras matronas, cheias de carnes e de filhos pendurados às barras das largas saias, aparentando muitos anos a mais.

Procurava convencer-se – inutilmente, é verdade – da vantagem que tinha, mesmo já com trinta anos e uma barriga mais saliente do que gostaria. Porém, nada que um bom espartilho não resolvesse. Chiquinho até lhe dera um de presente, quando se casaram... Pois então? E regozijava-se, satisfeita, reconciliada consigo mesma e agradecida pela ausência do marido, cuja presença de há muito a incomodava, roncando alto ao seu lado na cama.

E agora, nesse exato momento desta noite de Natal, mesmo cercada de solidão feroz, fria e escura, podia ser livre. E tinha trinta anos, nem um a mais, nem a menos. Esta constatação subitamente dava-lhe certo prazer que jamais pensara em sentir. Ou seria por que, enfim, felicitava-se pela ausência do marido, a essa hora bem longe dela e do seu mundo recluso?

Insinuavam-lhe coisas, indiretamente, que ela ouvia dispersa, tentando distrair a atenção. Com certeza, imaginavam-na indolente, submissa, talvez até covarde. Não ligava. Quem sabe, um dia, não teria a glória de ser viúva? Receava apenas, em seu devaneio sonhador, que esse momento chegasse tarde demais, quando as carnes já tivessem desabado por completo. Instintivamente, apalpou-se mais uma vez, certificando-se de que tudo ainda estava no devido lugar.

Lembrou-se novamente da Missa do Galo, os minutos escoando rápidos em direção à meia-noite. Consultou o relógio: faltava meia hora, ainda. Quase feliz agora, podia sentir o pulsar do relógio, única coisa palpitante naquela casa quieta, tic-tac, tic-tac...

Foi então que ela se lembrou do hóspede, o rapazote que tinha vindo de Mangaratiba para estudar na Corte. Era primo da falecida, a primeira mulher do Meneses. Quase um menino, nos seus dezessete anos imberbes. Naquela noite, ele queria muito ver como era a Missa do Galo na Corte. Com certeza estava lá na sala, à espera do instante combinado em que iria buscar o amigo para juntos irem à Missa do Galo. Eram, portanto, três na casa naquela noite: ela, D. Inácia e o Sr. Nogueira. Havia as duas criadas, mas elas deviam estar longe, com certeza se divertindo em algum lugar onde ela, devota que era de Nossa Senhora da Conceição, não podia ir. O Sr. Nogueira... Um menino ainda... Será que ele reparava nela, enquanto ela se arrastava pela casa, nos eternos afazeres domésticos? O que ele estaria fazendo na sala enquanto esperava pela Missa do Galo?

Como que tomada por poderoso sonambulismo, Conceição pôs-se de pé, metendo os pés nas chinelas de quarto. Cobriu-se com o roupão branco, que caiu desajeitado sobre o seu corpo franzino, insinuando, mais que mostrando propriamente. Lembrou-se das mulheres exibindo os seus decotes na Missa do Galo, há tanto tempo! E como que preparada para ir também à Missa do Galo, naquela noite quente de Natal, abriu devagar a porta do quarto. Foi caminhando de mansinho pelo corredor que ia da sala de jantar à de visitas. Na sala, aureolado pela luz que emanava do candeeiro de querosene que ilumina o centro da mesa, o jovem Nogueira se concentrava na leitura de Os Três Mosqueteiros.

 

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sexta-feira, 10 de março de 2023

Fim de tarde

Isabel Pires

A tarde está cinza. Flocos de ar cinzento invadem o espaço reduzido do apartamento, da cidade, do mundo. Já é tarde para pôr em prática os planos da manhã. Muito tarde. Que se espera deste fim de tarde? Uma coisa é certa: depois que este brilho fosco e cinzento se dispersar, cairá a escuridão sobre todas as coisas. E então será noite. Por enquanto, as folhas das árvores estão imóveis, mas um pardal as balança, à procura de alguma fruta esquecida. Em alguma parte do planeta, alguém pensa no que responder a outro alguém, ou que pergunta fazer, ou quem sabe não responder nem perguntar nada a ninguém. Muito tarde em verdade. Alguém escreve algo confidencial no papel virtual da tela do computador, e chama esse papel virtual de diário, e acredita ser esse diário um amigo. O pardal foi embora e de novo as árvores estão inertes, prenúncio talvez de tempestade. Barulho de água escorrendo na pia. Barulho de carros na rua. Barulho de portas abrindo e fechando. A tarde não é preguiçosa. Uma rede se move num canto da parede. O cachorro pequinês corre pela casa. Não, a tarde não é, em definitivo, preguiçosa. Livros descansam na estante, também eles inertes. Uma caneta inútil, jogada sobre a mesa. Um lápis, ainda mais inútil, ao lado. A estante cheia de livros parece triste, com o peso de tantos pensamentos sobre ela. Subitamente, o som da campainha se faz ouvir. O pequinês se agita. A porta foi aberta. Engano. É sempre engano. É engano a vida. Também a morte é engano. A tarde prossegue, no seu contínuo engano de tarde feliz, apesar do tom cinzento. Tarde morna e docemente cansada. De quê? A pilha de pratos parece uma torre de Pisa sobre o mármore compenetrado de seu papel de mármore de pia de cozinha. O trilho da janela tem um som enferrujado, de trem correndo sobre trilhos velhos em viagens antigas. Lá fora, o mundo também está cinza, até as plantas parecem cinzentas. Adiante, uma poça de água reflete a parede cor de cinza do edifício em frente.

 

quarta-feira, 8 de março de 2023

Travesseiro

                                                                                                                                                   Isabel Pires

 

O sono vinha mas não vinha. Pensar nele, criar uma história com ele. Apenas para chamar o sono. Acabava refazendo os enredos, infindavelmente. E ele aparecia numa outra história, desta vez em segundo plano. Uma sombra movimentando-se muda, seguindo-lhe os passos, apenas um figurante. Ainda não. Mesmo assim, ainda não estava bom. Como, então? Ele saía definitivamente de cena. Um nome, apenas, mencionado por um outro personagem qualquer da história, que brilhava agora na ribalta do seu pensamento semiadormecido. As luzes iam aos poucos se empanando. O cenário ia perdendo os contornos, na mente entorpecida de sono. Virava-se e revirava-se na cama. Mudava o lado do travesseiro. Tentava acompanhar o fio da trama. Onde a ponta?

Acordou subitamente, tentando compreender o mundo à sua volta. Limpou com a ponta da coberta o fio de baba que escorria do canto da boca. Na penumbra, enxergou o lustre do quarto, bem acima de sua cabeça. Dormira de novo de barriga para cima, em decúbito dorsal. Decúbito dorsal. Morte e crime. Manchetes nos noticiários. Sobretudo morte. Como naqueles antigos versos: “caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul”. Em decúbito dorsal e de organdi azul. Organdi azul. Queria ter sonhos assim, em organdi azul. Devia ser bom ter sonhos envoltos em organdi azul. Mas só os tinha em decúbito dorsal. Pesadelos sem pé nem cabeça.

Rolou para o lado, agarrando a coberta e puxando-a até as orelhas. Fechou os olhos. E mergulhou de novo na imagem do sonho recente (ou seria pesadelo?): uma toalha de banho, enorme, azul-escuro, boiando dentro de uma piscina. A toalha dele, afogada na piscina de fundo lodoso, esverdeado. Outra toalha, seca e macia, jazia na beira da piscina. Era dela, essa toalha branca e felpuda. A piscina tinha fundo de areia, que nem fundo de mar. Mas a areia era lodosa, numa água também lodosa, espessa. Turva. E naquela água, afogada, a toalha dele, boiando desamparada. Pedir socorro? Socorrer? Não adiantava: afogada.

E de repente ela estava dentro d’água, no lugar da toalha azul-escuro. E o fundo lodoso esverdeado se prendia nas solas dos seus pés, puxando-a, envolvendo-a mais e mais. Antes que a água cobrisse completamente sua cabeça, pôde ver, do lado de fora da piscina, o rosto dele, olhando-a sem a ver, o olhar desbotado, perdido, longe. Indiferente. Sobretudo indiferente.

Abriu os olhos, passeando-os pelas paredes vazias do quarto. Vazias e preenchidas de escuridão e solidão. Não tinha mais sono. Estava lúcida. Sim, completamente lúcida. A mente fria. Pensou em pular da cama, abrir bem a janela, aspirar o ar gelado da madrugada. Por que sonhara aquilo com ele? Era raro sonhar com ele e, quando acontecia, eram sempre pesadelos, diferentes dos sonhos que ela sonhava acordada. Sonhos bonitos que terminavam sempre com um beijo apaixonado. Agora, não queria mais nem os sonhos bonitos, que ela sonhava acordada, e tampouco aqueles pesadelos involuntários no meio da noite. Precisava somente esquecê-lo.

Um outro rosto vinha aos poucos se delineando na sua mente, invadindo-a. Quem seria? E um sorriso claro, cheio de vida, ajudava a definir a fisionomia, agora bem visível na mente límpida e fria. A imagem rodopiou por instantes infindáveis dentro de sua cabeça. Seria aquele sorriso que iria apagar o outro? Aquele outro sorriso amargo, impregnado de desânimo e desespero. E cansaço e desesperança. E desalento. E desencanto. E, no entanto, envolto em mistério, aquele sorriso assim meio forçado. Que feitiço, que magia, possuía aquele sorriso tão insípido e tão atraente? É isso: um sorriso suicida, mas ainda sorriso. Apagar. Esquecer. Quem mesmo? O quê?

O sorriso cheio de vida e de vontade de viver apagou-se, repentino. Em sua mente, à essa altura não mais límpida nem fria, imagens passavam rápidas, confusas, emaranhando-se umas nas outras. E sempre voltavam ao mesmo ponto: ele. Agora já não estava mais tão lúcida. O sono voltara a encharcar seus pensamentos, turvando-os, embotando-os. Envelhecendo-os.

Esticou o pé para fora da coberta e tocou o ladrilho do chão do quarto. Choque. Era bom o contato frio do assoalho na sola do pé. Fechou os olhos, sentindo intensamente aquela sensação de friozinho subindo-lhe pela perna. Um pé gelado, o outro quente, enrolado na coberta. Puxou a perna de volta, recolhendo-a dentro do cobertor. Os pés se tocaram. Um tentando aquecer o outro. Um tentando gelar o outro.

Aos poucos, as paredes do quarto iam ficando mais brancas, mais vazias, despidas de escuridão. A cabeça afundada no travesseiro pesava como chumbo. Os olhos semicerrados tentavam reencontrar o fio do sono interrompido, perdido para sempre na claridade que se anunciava tímida. Amanhecia. Manhã de chumbo, pesada como aquele peso difuso em sua cabeça.

Estendeu o braço em direção à mesinha de cabeceira. Tarde demais. A campainha do despertador tocou estridente nos seus ouvidos, esmagando mais o peso de chumbo contra o seu crânio. Ainda assim, desligou o alarme, evitando que aquele som se prolongasse, penetrando em sua cabeça, esmagando os miolos. Estava exausta. Exaurida de pensamentos e de sonhos (ou seriam pesadelos?). Sonhos vãos, perdidos como aqueles preciosos minutos de sono. Mas precisava levantar-se, encarar a manhã cinzenta, de chumbo.

Bocejou, esfregando os olhos, tentando espantar definitivamente o sono. Na boca, um velho gosto de noite mal dormida. Levantou a cabeça do travesseiro amarrotado e molhado de baba e de lágrimas. Não conseguira esquecer.

***