quarta-feira, 8 de março de 2023

Travesseiro

                                                                                                                                                   Isabel Pires

 

O sono vinha mas não vinha. Pensar nele, criar uma história com ele. Apenas para chamar o sono. Acabava refazendo os enredos, infindavelmente. E ele aparecia numa outra história, desta vez em segundo plano. Uma sombra movimentando-se muda, seguindo-lhe os passos, apenas um figurante. Ainda não. Mesmo assim, ainda não estava bom. Como, então? Ele saía definitivamente de cena. Um nome, apenas, mencionado por um outro personagem qualquer da história, que brilhava agora na ribalta do seu pensamento semiadormecido. As luzes iam aos poucos se empanando. O cenário ia perdendo os contornos, na mente entorpecida de sono. Virava-se e revirava-se na cama. Mudava o lado do travesseiro. Tentava acompanhar o fio da trama. Onde a ponta?

Acordou subitamente, tentando compreender o mundo à sua volta. Limpou com a ponta da coberta o fio de baba que escorria do canto da boca. Na penumbra, enxergou o lustre do quarto, bem acima de sua cabeça. Dormira de novo de barriga para cima, em decúbito dorsal. Decúbito dorsal. Morte e crime. Manchetes nos noticiários. Sobretudo morte. Como naqueles antigos versos: “caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul”. Em decúbito dorsal e de organdi azul. Organdi azul. Queria ter sonhos assim, em organdi azul. Devia ser bom ter sonhos envoltos em organdi azul. Mas só os tinha em decúbito dorsal. Pesadelos sem pé nem cabeça.

Rolou para o lado, agarrando a coberta e puxando-a até as orelhas. Fechou os olhos. E mergulhou de novo na imagem do sonho recente (ou seria pesadelo?): uma toalha de banho, enorme, azul-escuro, boiando dentro de uma piscina. A toalha dele, afogada na piscina de fundo lodoso, esverdeado. Outra toalha, seca e macia, jazia na beira da piscina. Era dela, essa toalha branca e felpuda. A piscina tinha fundo de areia, que nem fundo de mar. Mas a areia era lodosa, numa água também lodosa, espessa. Turva. E naquela água, afogada, a toalha dele, boiando desamparada. Pedir socorro? Socorrer? Não adiantava: afogada.

E de repente ela estava dentro d’água, no lugar da toalha azul-escuro. E o fundo lodoso esverdeado se prendia nas solas dos seus pés, puxando-a, envolvendo-a mais e mais. Antes que a água cobrisse completamente sua cabeça, pôde ver, do lado de fora da piscina, o rosto dele, olhando-a sem a ver, o olhar desbotado, perdido, longe. Indiferente. Sobretudo indiferente.

Abriu os olhos, passeando-os pelas paredes vazias do quarto. Vazias e preenchidas de escuridão e solidão. Não tinha mais sono. Estava lúcida. Sim, completamente lúcida. A mente fria. Pensou em pular da cama, abrir bem a janela, aspirar o ar gelado da madrugada. Por que sonhara aquilo com ele? Era raro sonhar com ele e, quando acontecia, eram sempre pesadelos, diferentes dos sonhos que ela sonhava acordada. Sonhos bonitos que terminavam sempre com um beijo apaixonado. Agora, não queria mais nem os sonhos bonitos, que ela sonhava acordada, e tampouco aqueles pesadelos involuntários no meio da noite. Precisava somente esquecê-lo.

Um outro rosto vinha aos poucos se delineando na sua mente, invadindo-a. Quem seria? E um sorriso claro, cheio de vida, ajudava a definir a fisionomia, agora bem visível na mente límpida e fria. A imagem rodopiou por instantes infindáveis dentro de sua cabeça. Seria aquele sorriso que iria apagar o outro? Aquele outro sorriso amargo, impregnado de desânimo e desespero. E cansaço e desesperança. E desalento. E desencanto. E, no entanto, envolto em mistério, aquele sorriso assim meio forçado. Que feitiço, que magia, possuía aquele sorriso tão insípido e tão atraente? É isso: um sorriso suicida, mas ainda sorriso. Apagar. Esquecer. Quem mesmo? O quê?

O sorriso cheio de vida e de vontade de viver apagou-se, repentino. Em sua mente, à essa altura não mais límpida nem fria, imagens passavam rápidas, confusas, emaranhando-se umas nas outras. E sempre voltavam ao mesmo ponto: ele. Agora já não estava mais tão lúcida. O sono voltara a encharcar seus pensamentos, turvando-os, embotando-os. Envelhecendo-os.

Esticou o pé para fora da coberta e tocou o ladrilho do chão do quarto. Choque. Era bom o contato frio do assoalho na sola do pé. Fechou os olhos, sentindo intensamente aquela sensação de friozinho subindo-lhe pela perna. Um pé gelado, o outro quente, enrolado na coberta. Puxou a perna de volta, recolhendo-a dentro do cobertor. Os pés se tocaram. Um tentando aquecer o outro. Um tentando gelar o outro.

Aos poucos, as paredes do quarto iam ficando mais brancas, mais vazias, despidas de escuridão. A cabeça afundada no travesseiro pesava como chumbo. Os olhos semicerrados tentavam reencontrar o fio do sono interrompido, perdido para sempre na claridade que se anunciava tímida. Amanhecia. Manhã de chumbo, pesada como aquele peso difuso em sua cabeça.

Estendeu o braço em direção à mesinha de cabeceira. Tarde demais. A campainha do despertador tocou estridente nos seus ouvidos, esmagando mais o peso de chumbo contra o seu crânio. Ainda assim, desligou o alarme, evitando que aquele som se prolongasse, penetrando em sua cabeça, esmagando os miolos. Estava exausta. Exaurida de pensamentos e de sonhos (ou seriam pesadelos?). Sonhos vãos, perdidos como aqueles preciosos minutos de sono. Mas precisava levantar-se, encarar a manhã cinzenta, de chumbo.

Bocejou, esfregando os olhos, tentando espantar definitivamente o sono. Na boca, um velho gosto de noite mal dormida. Levantou a cabeça do travesseiro amarrotado e molhado de baba e de lágrimas. Não conseguira esquecer.

***

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