Isabel Pires
O sono vinha mas não
vinha. Pensar nele, criar uma história com ele. Apenas para chamar o sono.
Acabava refazendo os enredos, infindavelmente. E ele aparecia numa outra
história, desta vez em segundo plano. Uma sombra movimentando-se muda,
seguindo-lhe os passos, apenas um figurante. Ainda não. Mesmo assim, ainda não
estava bom. Como, então? Ele saía
definitivamente de cena. Um nome, apenas, mencionado por um outro personagem
qualquer da história, que brilhava agora na ribalta do seu pensamento
semiadormecido. As luzes iam aos poucos se empanando. O cenário ia perdendo os
contornos, na mente entorpecida de sono. Virava-se e revirava-se na cama.
Mudava o lado do travesseiro. Tentava acompanhar o fio da trama. Onde a ponta?
Acordou subitamente,
tentando compreender o mundo à sua volta. Limpou com a ponta da coberta o fio
de baba que escorria do canto da boca. Na penumbra, enxergou o lustre do
quarto, bem acima de sua cabeça. Dormira de novo de barriga para cima, em
decúbito dorsal. Decúbito dorsal.
Morte e crime. Manchetes nos noticiários. Sobretudo morte. Como naqueles antigos versos:
“caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul”. Em decúbito dorsal e de
organdi azul. Organdi azul. Queria ter sonhos assim, em organdi azul. Devia ser bom ter sonhos
envoltos em organdi azul. Mas só os tinha em decúbito dorsal. Pesadelos sem pé
nem cabeça.
Rolou para o lado,
agarrando a coberta e puxando-a até as orelhas. Fechou os olhos. E mergulhou de
novo na imagem do sonho recente (ou seria pesadelo?): uma toalha de banho,
enorme, azul-escuro, boiando dentro de uma piscina. A toalha dele, afogada na
piscina de fundo lodoso, esverdeado. Outra toalha, seca e macia, jazia na beira
da piscina. Era dela, essa toalha branca e felpuda. A piscina tinha fundo de
areia, que nem fundo de mar. Mas a areia era lodosa, numa água também lodosa,
espessa. Turva. E naquela água, afogada, a toalha dele, boiando desamparada.
Pedir socorro? Socorrer? Não adiantava: afogada.
E de repente ela estava
dentro d’água, no lugar da toalha azul-escuro. E o fundo lodoso esverdeado se
prendia nas solas dos seus pés, puxando-a, envolvendo-a mais e mais. Antes que
a água cobrisse completamente sua cabeça, pôde ver, do lado de fora da piscina,
o rosto dele, olhando-a sem a ver, o olhar desbotado, perdido, longe.
Indiferente. Sobretudo indiferente.
Abriu os olhos,
passeando-os pelas paredes vazias do quarto. Vazias e preenchidas de escuridão
e solidão. Não tinha mais sono. Estava lúcida. Sim, completamente lúcida. A
mente fria. Pensou em pular da cama, abrir bem a janela, aspirar o ar gelado da
madrugada. Por que sonhara aquilo com ele? Era raro sonhar com ele e, quando
acontecia, eram sempre pesadelos, diferentes dos sonhos que ela sonhava
acordada. Sonhos bonitos que terminavam sempre com um beijo apaixonado. Agora,
não queria mais nem os sonhos bonitos, que ela sonhava acordada, e tampouco aqueles
pesadelos involuntários no meio da noite. Precisava somente esquecê-lo.
Um outro rosto vinha aos
poucos se delineando na sua mente, invadindo-a. Quem seria? E um sorriso claro, cheio de vida, ajudava a definir a fisionomia,
agora bem visível na mente límpida e fria. A imagem rodopiou por instantes
infindáveis dentro de sua cabeça. Seria aquele sorriso que iria apagar o outro?
Aquele outro sorriso amargo, impregnado de desânimo e desespero. E cansaço e
desesperança. E desalento. E desencanto. E, no entanto, envolto em mistério,
aquele sorriso assim meio forçado. Que feitiço, que magia, possuía aquele
sorriso tão insípido e tão atraente? É isso: um sorriso suicida, mas ainda
sorriso. Apagar. Esquecer. Quem mesmo? O quê?
O sorriso cheio de vida
e de vontade de viver apagou-se, repentino. Em sua mente, à essa altura não
mais límpida nem fria, imagens passavam rápidas, confusas, emaranhando-se umas
nas outras. E sempre voltavam ao mesmo ponto: ele. Agora já não estava mais tão
lúcida. O sono voltara a encharcar seus pensamentos, turvando-os, embotando-os.
Envelhecendo-os.
Esticou o pé para fora
da coberta e tocou o ladrilho do chão do quarto. Choque. Era bom o contato frio
do assoalho na sola do pé. Fechou os olhos, sentindo intensamente aquela
sensação de friozinho subindo-lhe pela perna. Um pé gelado, o outro quente,
enrolado na coberta. Puxou a perna de volta, recolhendo-a dentro do cobertor.
Os pés se tocaram. Um tentando aquecer o outro. Um tentando gelar o outro.
Aos poucos, as paredes
do quarto iam ficando mais brancas, mais vazias, despidas de escuridão. A
cabeça afundada no travesseiro pesava como chumbo. Os olhos semicerrados
tentavam reencontrar o fio do sono interrompido, perdido para sempre na claridade que se anunciava tímida.
Amanhecia. Manhã de chumbo, pesada como aquele peso difuso em sua cabeça.
Estendeu o braço em
direção à mesinha de cabeceira. Tarde demais. A campainha do despertador tocou
estridente nos seus ouvidos, esmagando mais o peso de chumbo contra o seu crânio.
Ainda assim, desligou o alarme, evitando que aquele som se prolongasse,
penetrando em sua cabeça, esmagando os miolos. Estava exausta. Exaurida de
pensamentos e de sonhos (ou seriam pesadelos?). Sonhos vãos, perdidos como
aqueles preciosos minutos de sono. Mas precisava levantar-se, encarar a manhã
cinzenta, de chumbo.
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