quinta-feira, 24 de novembro de 2022

A arrumação

Isabel Pires

Manuela passava o esmalte cor-de-rosa nas unhas dos pés e das mãos e esperava secar. Os pés de Manuela eram delicados, finos e brancos. Manuela cuidava muito bem deles, os seus pequenos pés transparentes de tão brancos. E também das mãos, embora estas não fossem tão delicadas e leves como os pés. E dos cabelos curtos e negros, lavados três vezes por semana com shampoo neutro. Esmalte, ela passava toda sexta-feira à tarde, sentada com os apetrechos na pequena sala de visitas, escutando música enquanto esmaltava suas dez unhas aparadas e limpas.

A avó de Manuela dizia que ela era preguiçosa. Manuela não ligava. A irmã mais velha de Manuela trabalhava de lua a lua numa padaria do bairro – levantava de madrugada e voltava para casa noite feita, as estrelas todas no céu. Manuela cuidava da casa e da irmã mais nova, enquanto a mãe trabalhava no posto de saúde da prefeitura. Mais cedo ou mais tarde, a mãe de Manuela ia precisar fazer uma operação.

— Pois bem, quero ver o que vai virar essa casa quando Zuca for se operar – dizia a avó de Manuela, enfiando a cara larga pela janelinha da porta.

Constatando a preguiça da neta, saía resmungando e arrastando os pés até sua casinhola no oitão da rua, onde se isolava do mundo com sua televisão e suas toalhinhas rendadas.

— Não quero vagabunda nenhuma aqui – dizia ela, batendo as portinholas e aferrolhando bem.

Na meia-escuridão da saleta, iluminada apenas pelo vão do pequeno corredor que dava para a cozinha e pelos buracos das goteiras nas telhas, a velha sorvia em mornos goles seu chá lento de fim de tarde, acompanhado de uns biscoitinhos especiais, vindos da capital.

Manuela dava de ombros. Não ligava, de fato, para as coisas da avó.

— É da velhice – dizia ela, sem se preocupar com coisa alguma no mundo.

A única coisa que a preocupava de verdade era sua irmã caçula, desobediente e trabalhosa, uma verdadeira peste. Manuela chegava na porta da rua e gritava pela outra, chamando-a para arrumar a cozinha, depois do almoço. A menina demorava a aparecer, em suas vadiagens pela vizinhança. Vinha cabreira, com medo de Manuela.

— Tomara que te botem pra fora, peste.

Manuela ameaçava com o chinelo, mas a menina dava uma pirueta no ar e se safava, sempre.

Manuela brigava muito com essa irmã caçula, mas gostava muito dela. Virava uma fera, o pescoço inchado e vermelho, quando sabia que alguma vizinha atrevida ameaçara bater na irmã.

— Pois ela que dê na menina, pra ver uma coisa!

Em tudo o mais, Manuela era calma, indolentemente calma. E todas as sextas-feiras, à tarde, depois de passar esmalte nas unhas dos pés e das mãos, Manuela sentava-se na soleira da porta, olhando a rua de casas iguais e coladas, irremediavelmente presas umas nas outras: uma porta, uma janela, uma porta, uma janela, uma porta...

Finalmente a mãe de Manuela foi para a capital se operar. Ia demorar muitos dias. E Manuela ficou, de vez, responsável pela casa e pela irmã mais nova.

Vez ou outra, em horas quietas do dia, a avó chegava à portinhola, espiando dentro da casa de Manuela. Saía balançando a cabeça e arrastando os pés, em eterna reprovação. Manuela, inocente, empilhava os pratos sujos na pia da cozinha, deixava as camas desfeitas, o pó sobre os móveis, o lixo se acumulando num canto do quintal.

A irmã mais velha chegava de noite da padaria e não encontrava comida pronta. Danava. Surrava a irmã caçula e se estendia no sofá da sala, enquanto esperava a água para o café ferver. Manuela ia enxugar as lágrimas da menina, passando as mãos brancas pelos cabelos cacheados da garota. Depois, iam sentar-se, esquecidas, na soleira da porta de entrada, vendo o movimento da rua transformada pela noite.

E o brinquedo prosseguia. Dormindo tarde, levantando tarde, fazendo comida tarde, acalentando horas infindas durante a tarde, Manuela brincava, séria, de dona de casa. Até que um dia lembrou-se de mudar a arrumação da casa. Pois donas de casa não costumavam mudar a arrumação da casa? Assim fazia sua tia de tempos em tempos, trocando e destrocando a máquina de costura, a mesa e o guarda-louças do seus lugares habituais. Afasta daqui, arreda dali, “cuidado que o pé da solto”, e pronto: magicamente a casa se renovava, em novos ângulos e cantos e sombras criados, trazendo novos fantasmas e segredos para velhos conhecidos móveis.

Olhando para o azul-ralo da parede da sala, Manuela calculou: daí a tantos dias, a volta da mãe. Até lá, se fazia necessária nova arrumação, a primeira já envelhecida, já sem gosto de novidade. Não, esperaria mais.

Era uma quinta-feira quando a rotina de dona de casa a enjoou de vez. Manuela decidiu: no outro dia, faria a arrumação.

A avó de Manuela chegou-se à porta, espiando como sempre. E surpreendeu-se: pedaços de papelão, terra, sapatos velhos, papéis amassados, tudo espalhado pelo chão. A vassoura atravessada no meio do corredor, os móveis atravancados pelo caminho.

— Jesus! O que essa doida está fazendo?

Apurando o olfato, a mulher sentiu o cheiro de queimado.

— Manueeeeeeeeeeelaaaa!

Manuela, com um pano atado à cabeça, avental protegendo as roupas da sujeira, surgiu, lívida, de uma das portas do corredor.

— Vó, corre aqui, me ajuda!

A avó, num arranco, quase botou a porta abaixo. Correu desabalada, se batendo pelo caminho nos móveis atravessados no meio da casa.

— Vó, é aqui – chamou inutilmente Manuela.

A avó foi direto para a cozinha, onde uma panela fumegava sobre o fogão. Apagou o fogo, atirando a panela empretecida no chão do terreiro. Depois, foi ver o que acontecia no quarto.

Manuela fungava, num esforço sobre-humano, tentando encaixar a cama num canto da parede.

— Sua maluca... – começou a avó.

Manuela interrompeu-a:

— Vó, pega desse lado aqui, que eu pego daqui, depois a gente levanta ela e desce de vez.

Assim fizeram. Mas à meia altura a cama estacionava, empacada, nem pra baixo, nem pra cima. Manuela forçava a descida, já sentindo raiva.

— Essa porcaria tem que descer.

— Não adianta, deixa isso pra lá, menina...

Manuela olhava com ódio a cama suspensa entre as paredes. O quarto, um quadrado escuro, tinha uma das paredes levemente inclinada para dentro. Impossível encaixar a cama naquele canto. Manuela analisou o problema, de testa enrugada.

— Só mandando serrar um pedaço da cama.

— Você tá doida? Quer matar Zuca?

Eram duas as camas no quarto, a dela e a da irmã caçula. A outra cama esperando do lado de fora. Manuela queria simplesmente trocá-las de posição, eternamente voltadas para a porta. Constatando a impossibilidade, conformou-se. Voltou as camas para os antigos lugares, contentando-se em trocar de posição os poucos móveis da sala e as camas do quarto que a mãe dividia com a irmã mais velha.

Retirou o lixo da casa, espanou os móveis. Tudo limpo, foi ver algo para comer, o almoço perdido, já tarde para iniciar outro.

— Vó, me arranja um pouquinho de comida?

A avó fez um prato caprichado e levou-o para Manuela, que o devorou, sôfrega. A irmã caçula, esta, não vendo sombra de comida, se convidou para almoçar na casa da vizinha. A irmã mais velha...

Mais tarde, a avó de Manuela foi buscar o prato e encontrou a neta esmaltando as unhas, o prato sujo em cima do sofá.

Com raiva de si mesma, entrou e pegou o prato.

— Peraí, vó, que eu vou lavar.

Mas a avó já ia saindo. Bateu a porta, marchando dura pela calçada e abanando mil vezes a cabeça. Ao dobrar a esquina, porém, refletiu:

— Pelo menos, tirou a lixaria da casa.

E refugiou-se na sua casinhola de porta-e-janela.

***

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

A funcionária

 

Isabel Pires

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formar desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

joão transformou-se num arquivo de metal.

(Vitor Giudice, O arquivo)

 

Ninguém sabia ao certo há quanto tempo ela trabalhava ali, a mesa a um canto perto da janela, cercada por quinquilharias diversas em meio a pilhas de papéis inúteis. Rigorosamente, não fazia nada, nem ninguém parecia se preocupar com isso, ou querer saber sobre suas atribuições. Chegava pelo meio da manhã, carregada de misteriosas sacolas de papelão que guardava dentro do armário, trancadas a chave. Atravessava os corredores e salas carregando as sacolas com a elegância de um elefante numa loja de porcelanas. Por fim, acomodava-se ruidosamente na larga cadeira de rodinhas, de espaldar alto, uma cadeira antiga que havia pertencido a um funcionário que já se aposentara e que, diziam, até já tinha morrido.

Quando não estava ao telefone, era certo estar martirizando a moça da limpeza ou a copeira. “Isto não é café!”, reclamava, “tá mais para lavagem”. Insultava com frequência a faxineira, “essa porca ordinária”, que “nunca limpa nada direito”, exigindo que a outra esvaziasse a sua lixeira a toda hora. A toda hora a lixeira, colocada estrategicamente debaixo da mesa, transbordava: copos descartáveis de água e de café, copinhos de iogurte, latas de refrigerante, guardanapos de papel com restos de sanduíche, cascas de banana, sementes de maçã, caroços de uva, embalagens descartáveis diversas, papéis de bombons, de balas, de chicletes, de biscoitos. Toda uma parafernália de vestígios comestíveis, um verdadeiro sambaqui pós-moderno. Na lixeira sob a mesa, nada que lembrasse atividades de escritório, rascunhos amassados, uma cópia xerox sem serventia ou algo do gênero.

“A Tia”, era assim que a chamavam, talvez por não saberem com certeza seu nome. Diziam que ela estava ali desde que a empresa tinha sido fundada, há muito muito tempo, era quase um patrimônio. Diziam que tinha tempo de sobra para se aposentar, mas que não o fazia porque não queria ficar em casa, lidando com o marido doente e demente, entrevado e louco. A versão oposta dizia que havia pouquíssimo tempo que ela estava ali, que na verdade nunca havia trabalhado na vida, que levava uma vida de madame, e que, graças a um revés da sorte, o marido ficara doente e louco, perdera tudo, o que obrigou-a a dar duro todo dia. Justificavam o fato de ser ali, justo naquela empresa, porque o marido tinha sido muito amigo do pai do atual diretor, etc. etc. Havia ainda uma pequena variante da história, que afirmava que primeiro o marido perdera tudo, indo à falência, e só depois ficara doente e louco. Mas, ao certo certo, ninguém sabia.

Ninguém pedia-lhe nada, nem a mandava fazer coisa alguma. Nem ela pedia nada, nem mandava em ninguém, exceto as eternas reclamações do costume, sempre votadas à copeira e à faxineira. Quando não ia, ligava pontualmente, avisando. Geralmente, estava em algum velório, ou visitando parentes muito doentes que, pouco tempo depois, infalivelmente morriam. E ela avisava. “Lembra daquele parente meu, que estava muito mal? Pois é, o velório...”. E dias depois: A missa de sétimo dia...”. As más-línguas diziam que ela já havia “matado” – assim mesmo, entre aspas – todos os parentes, e depois passaria a “matar” os amigos dos parentes, e que em breve “mataria” os parentes dos amigos, e depois, talvez, os amigos dos parentes dos amigos ou, quem sabe, os parentes dos amigos dos parentes. Inacreditavelmente, porém, o marido nunca morria.

Um dia, subitamente, a empresa foi vendida. O diretor nem sequer avisara. Não houve despedidas nem transmissão do cargo ao novo ocupante. Nada. Era por volta de umas quatro horas da tarde quando o diretor abriu a porta de sua sala, em mangas de camisa, e disse à secretária que precisava “dar uma saidinha”. Deixou o paletó pendurado na cadeira, atrás da imponente mesa de mogno, e não voltou mais. Os funcionários souberam da venda da empresa pelos jornais. Antes de assumir, o novo diretor mandou publicar, também nos jornais, a demissão dos chefes de todas as seções, bem como as respectivas novas nomeações. Também tivera o cuidado de dispensar sumariamente os funcionários de apoio – copeiras, faxineiras, ascensoristas, mensageiros e seguranças –, substituindo-os prontamente por outros. Ninguém percebeu que ela também não aparecia mais. Absolutamente sem serventia, a mesa, com seus papéis inúteis e quinquilharias decorativas, continuava intocada. Ninguém a ocupava, ninguém reivindicava o espaço ocupado por ela – um bom espaço, entre a janela e um armário enorme, sempre fechado, que ninguém sabia para que servia ou o que guardava. E ninguém também parecia se importar. Até que houve uma ordem para a compra de móveis novos, uma política de modernização do atual diretor.

Em um dia previamente determinado, nenhum funcionário foi trabalhar. Os homens do serviço de manutenção abriram as salas e foram retirando as mesas velhas, enrugadas e desiludidas, antigos armários carrancudos, arquivos desmemoriados e cadeiras capengas, que eram colocados no elevador de serviço e despachados para um caminhão lá na rua. A mesa cheia de quinquilharias e papéis inúteis, a imensa cadeira giratória de espaldar alto e um armário preto, trancado e pesado, que ficavam a um canto perto de uma das janelas da sala do sexto andar, deram mais trabalho. “Deviam ter esvaziado isso aqui, pô!”, reclamou um dos homens. Os outros, suados e sedentos, só pensavam em se livrar daquilo o mais depressa possível. Por isso, empilharam de qualquer jeito dentro das salas os móveis novos, mesas, cadeiras, armários, alguns ainda envoltos em plástico-bolha e papelão, fecharam tudo e foram embora.

No dia seguinte à mudança, os funcionários tiveram bastante trabalho.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Elegia para um cinema

 Isabel Pires

Para todos os cinemas que foram desativados ou demolidos pelo Brasil afora, e em especial para o cine Metrópole, de Belo Horizonte.

Era um prédio antigo, de construção sólida, atarracada. No mármore preto, lustroso, que revestia uma parte da fachada, eram afixados os cartazes dos filmes. E seu letreiro ajudava a iluminar à noite a pequena praça de canteiros floridos.

“Tragam flores e o seu violão”. Os estudantes reunidos na praça pela preservação do patrimônio cultural. Palavras de ordem saindo de bocas jovens. Rostos jovens e bonitos. Esperança. Futuro. Levavam flores, levavam violões. Sorriam e cantavam. Viviam. E queriam deixar viver. O cinema.

O prédio, interditado, ganhou um ar sombrio, carrancudo. Os canteiros da praça já não eram mais iluminados pelo imenso letreiro. Com o mármore preto à mostra, desnudo, o velho prédio parecia desamparado, apesar das correntes que vedavam-lhe as entradas, já protegidas por sólidas portas negras. Silencioso, recebia indiferente o protesto dos estudantes que, irrequietos, cheios de vida, mal cabendo na praça, protegiam-no ingenuamente, com flores e música, da iminente demolição.

Nuvens de poeira subindo junto com buzinadas de carros. Aos poucos, aparecia o esqueleto de cimento, os ferros tortuosos, os tijolos à mostra. Tijolos pardos, da cor do tempo. Tempo pardo, parado, que não passava, estacionado na lenta demolição do prédio antigo. Lenta tortura que o atrofiava, desfigurando-o. Hoje não resta o mínimo vestígio da atrocidade. Houve ali, em algum tempo muito antigo, algum cinema?

Sons de violão vibravam no ar. E era bom e inebriante o adocicado cheiro das flores. Subitamente, os sons se dispersaram, e as flores, murchas, jaziam pisoteadas no meio da praça.


Fonte: Internet.
Fonte: Internet.

Demolição do cine Metrópole, Belo Horizonte, outubro de 1983. Construído em 1906, o prédio abrigou, antes do cinema, o Teatro Municipal até 1940. Hoje em dia, um banco ocupa o seu lugar, na esquina das ruas da Bahia com Goiás.

 

***

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Da Porta Pra Fora

 

Isabel Pires

Não. Ela não devia ter saído de casa naquele dia. Tivera a certeza quando o carro freou bem em cima dela. Olhou através dos vidros do carro lotado de mulheres: hábitos negros com detalhes brancos. Apenas rostos e mãos de fora. Carmelitas Descalças, ou coisa mais severa.

Quando saiu à rua, de manhã bem cedo, foi como se tivesse ultrapassado um limiar proibido. Na calçada do prédio, àquela hora imponderável do dia, uma faixa amarela e preta, amarrada em estacas, delimitava um retângulo interditado. Os curiosos já se aglomeravam. Quem saía do prédio era interceptado por um policial. “A senhora? Mora em qual bloco?”. Alguém havia se atirado de uma das janelas do prédio. Como morava no bloco B, fundos, o policial liberou sua passagem. O porteiro do prédio, o sr. Josias, na verdade fora quem respondera por ela que, atônita, não conseguia articular palavra. A língua, um trapo mole dentro da boca.

O corpo estava lá, na calçada, sob o plástico preto, só os pés de fora. Um par de pés inúteis, muito brancos e descarnados, apontando absolutamente para o vazio. A brancura cadavérica, de cera, dos pés contrastando com o preto estúpido do plástico. Ela foi saindo de fininho, já que estava liberada.

Depois, o episódio com as freiras. Saiu de fininho da frente do carro. Definitivamente, não era um bom dia aquele.

Quando finalmente chegou no trabalho, Da Porta Pra Fora recolhia o lixo da sala, armada de pá e vassoura. Como era a primeira pessoa com quem se deparava, antes de sentar-se à mesa de trabalho, desabafou ali mesmo os pés brancos e fixos escapando furtivos do plástico preto. E Da Porta Pra Fora:

— Da-porta-pra-fora! Jesus-toma-conta! – E foi saindo de fininho.

Dona Marta também veio desabafar, não com Da Porta Pra Fora, mas com ela. Por que a Neuza e não ela? Ela, que ajudou tanto nos preparativos do congresso. Quem fez todos aqueles crachás? Quem conferiu nome por nome? Nem almoçar almoçara. Isso que dá. Na hora do bem-bom, era a Neuza que botavam de secretária! Não, não era pelo dinheiro, que naquele evento ela trabalharia até de graça. Mas a falta de consideração... Ou não era?

Ela ligou o computador e se enfiou dentro da tela. Ninguém merecia a dona Marta. Ao ler os e-mails, deu-se conta da extensão do seu atraso. Sim, também havia tido uma batida no trânsito, obrigando os carros a seguirem em uma lenta fila indiana. Havia duas mensagens do diretor, o doutor Henrique. A segunda mensagem, registrada às dez horas e dezesseis minutos, cobrava as providências urgentes solicitadas na primeira mensagem, enviada às nove e sete da manhã.

No entanto, ela sabia que estava segura ali, no décimo sétimo andar. O guarda lá fora, protegendo todo mundo dos estranhos que não se identificassem.

Levantou-se resoluta. Ia consultar a doutora Rosa, antes de responder aqueles e-mails do doutor Henrique. Mas a doutora Rosa, que integrava a equipe de advogados da firma, não estava na sala.

Ela foi tomar um café, tentando espantar da mente a imagem do corpo sob o plástico à porta do prédio, sem conseguir, contudo. E pensou no Rômulo, da banca da esquina. Banca que outrora vendia revistas e jornais, e agora havia se transformado praticamente em lanchonete, vendendo refrigerantes em geladeiras portáteis, doces e salgados. Também biscoitos. Será que o Rômulo tinha visto o salto? O corpo pesado despencando para o nada lá embaixo? Ela não sabia, porém, mas o Rômulo havia três dias que não aparecia na banca.

Mergulhada no trabalho, não percebera as horas passarem, até que escutou os sinos da igreja em frente, que tocavam religiosamente ao meio-dia. Era a hora em que ela costumava ir almoçar. Naquele dia, porém, resolveu não sair. Ligou para a lanchonete onde o Sandro, um antigo estagiário, costumava pedir sanduíches. Aliás, foi o Sandro quem inaugurou o bate-papo com Da Porta Pra Fora. Era ele quem a chamava assim.

Sandro trabalhou ali exatos três meses. Um dia, simplesmente encheu o saco e sumiu. No último dia, o filho da mãe foi com a mesmíssima roupa que havia ido no primeiro dia, uma camiseta vermelha e azul, que ele dissera ser sua mascote para "datas importantes". Ela se lembrava bem. Parecia até uniforme de time de futebol amador, aquela camiseta-mascote. E a mochila também devia ser a mesma. Estava obediente e gentil, quase delicado o estagiário. E sobretudo prestativo. Não precisou mais do que isso para ela entender que se tratava, na verdade, de uma despedida.

Depois de engolir rapidamente o sanduíche, voltou aos e-mails do diretor, ainda não respondidos. E era urgente! Resolveu procurar o doutor Victor, antes de tentar mais uma vez a doutora Rosa. Dona Marta, a secretária, retocava meticulosamente o pó-de-arroz e o batom antes de descer à rua para o almoço no self-service da esquina.

— Doutor Victor? Ele não veio hoje.

Havia morrido um parente da mulher do doutor Victor. E ela lembrou-se, mais uma vez, do corpo caído na frente do prédio. Seria de um homem ou de uma mulher?

Enquanto a dona Marta desfiava a história da morte do parente da mulher do doutor Victor, ela foi saindo de fininho. Mas antes de entrar na sala, lembrou-se da doutora Rosa. Dona Marta já ia pelo corredor, a caminho do elevador. Perguntou pela doutora Rosa. Dona Marta não tinha certeza, mas achava que a doutora Rosa já devia estar na sala dela, sim. Resolveu arriscar.

Se alguém encontra um corpo caído à porta do prédio onde mora, de manhã cedo, o melhor a fazer é dar meia-volta e não sair mais de casa. Pelo menos naquele dia. Foi o que ela concluiu depois. Em vez, seguiu em frente.

Quando abriu a porta da sala da doutora Rosa, eles pareceram não ligar a mínima. Na cadeira giratória, atrás da mesa, a doutora Rosa, olhos semicerrados, suspirava. A blusa entreaberta – uma blusa rendada, de tom amarelo claro – mostrava, inteiro, um colo sardento, no qual o doutor Henrique esfregava uma mão gorda e ávida, enquanto roçava a barba grisalha na nuca branca da doutora Rosa. Uma nuca em que fios de cabelo castanho escuro escorriam abundantes, livres do penteado em que ela os mantinha sempre presos.

Ocorre que uma das muletas que o doutor Henrique usava descansava naquele instante na parede atrás dele, liberando assim a mão – aquela mão cabeluda e pegajosa – que ele passava com gosto na doutora Rosa.

Foi tudo muito rápido. No mesmo instante em que a viram, parada à soleira da porta, a muleta escorregou. Talvez a doutora Rosa tenha se mexido na cadeira, fazendo-a girar e empurrando involuntariamente a muleta. O doutor Henrique se desequilibrou. Seis pontos na testa e uma costela quebrada. Da porta pra fora. Jesus toma conta. Dessa vez, não dava para ir saindo de fininho.

 

terça-feira, 8 de novembro de 2022

O morto

                                                                                                                                     Isabel Pires

O retrato na sala era de um homem de cenho franzido e olhar brilhante. Tinha a boca apertada num contorno que parecia prender uma estrondosa gargalhada. E tudo parecia escutar com suas orelhas de abano. Nenhum dos nove filhos era sua reprodução fiel, mas todos tinham algum dos seus traços.

O homem dentro do caixão no centro da sala de visitas da casa que um dia fora do homem do retrato era seu genro, casado com a filha mais nova. Filha que casou tarde, quarentona já. Não chegara a conhecer esse genro, agora morto como ele.

Dentro do caixão, o morto, alheio a tudo em volta. À ausência de flores, de velas. De orações e de lágrimas. Alheio à própria ausência de vísceras na sua carcaça escurecida e maltratada pelos golpes da autópsia.

O zum-zum percorria o ar abafado da sala cheia de gente. Alguém se lembrou de abrir as janelas. Lá fora, a manhã seguia indiferente e ensolarada, sob um céu sem nuvens. Num dos cantos da sala apinhada, duas mulheres trocavam informações.

— Sabia que fizeram o serviço com ele já passado?

A outra se escandalizava, prazerosamente:

— Passado, é? Mas então o remédio não vai durar nada...

— E dizem que foi caro, o tal embalsamamento...

Num outro canto da sala, duas meninas, uma loura e uma morena, entre quatro e cinco anos, se enfrentavam num duelo mudo. Bisnetas do homem do retrato, a menina loura tinha os cabelos crespos, bem cheios, e tinha olhos azuis e a pele muito branca. E lábios vermelhos. Vestia-se bem, mas calçava chinelos de borracha. A outra menina, a morena, vestia-se de modo simples, embora calçasse sapatos de verniz. Tinha cabelos curtos e castanhos. E olhos pretos e brilhantes. As duas meninas, indiferentes ao que se passava em volta, só tinham olhos uma para a outra. A menina morena retirou da cabeça um arco faceiro, de cetim branco com um lacinho azul. Retirou-o dos cabelos castanhos e ficou exibindo-o para a menina loura, que olhava hipnotizada para o lacinho de fita azul-claro. A menina morena recolocou o arco na cabeça, cingindo os cabelos castanhos com o cetim branco do enfeite. Os olhos azuis da menina loura acompanharam o movimento das mãozinhas morenas da outra menina. A menina loura passou a mão pelos seus cabelos louros e crespos e arrancou deles um pequeno prendedor de plástico cor-de-rosa. Exibiu-o à outra menina, querendo trocá-lo pelo arco de cetim. Mas a menina morena negaceou, balançando a cabeça e segurando o arco com as duas pequenas mãos morenas.  

Mais adiante, duas mulheres seguravam no colo dois meninos. Eram noras do homem preso no caixão, mas não tinham nenhuma relação com o homem do retrato, já que seus maridos eram filhos de um primeiro casamento do homem a quem velavam. Um dos meninos no colo da mãe tinha nas mãos um pequeno livro de hinos bíblicos. O outro queria o livro, mas como o menino negasse, o outro menino abriu a bolsa da mãe, retirando de lá um livro idêntico ao do outro menino. Segurou o livro fechado, para que o outro o imitasse. O outro menino fechou o livro, acompanhando o movimento feito pelo menino que tentava medir o tamanho dos livros. O dono da ideia sorriu. Seu livro era maior.

O homem dentro do caixão nada via. E ninguém podia ver-lhe os traços deformados. Os curiosos tentavam distinguir algo através do vidro grosso da tampa do caixão. Mas gotículas suadas se aderiam ao vidro, embaçando-o e ao mesmo tempo como que protegendo o rosto escuro e inchado lá dentro.

Morto, preso no caixão que lhe toldava definitivamente a vida, enquanto o sogro, preso também na moldura do retrato, parecia no entanto estranhamente vivo, embora não pudesse de lá saltar para mudar mais nada.

— É o meu namorado – disse a velhinha de cabelos ralos e dourados, sentada no sofá. Balançou as pernas no ar e soltou uma risadinha matreira, vendo algo que só ela e o homem do retrato viam.

***

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O nadador da manhã

 

Isabel Pires

Trazia não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. (Machado de Assis, in Dom Casmurro)

A segunda-feira não prometia aliviar: manhã chuvosa, trânsito insuportável. Chuvosa, não: chuvarenta. Manhã de segunda-feira chuvarenta, um temporal inchado no ar, contido nas nuvens maduras que ameaçavam cair em bagas sobre as ruas, alagando tudo. Feliz de quem podia estar em casa, no recesso do lar, àquela hora de buzinas infernais, desmesuradamente ampliadas pelas sirenes das ambulâncias e dos carros de polícia.

Foi quando veio a notícia, e ela quase engasgou ao telefone. Sem entender, mas entendendo perfeitamente. E sem poder se desesperar, porque, bem diante dela, tomando calmamente seu café da manhã, estava o marido.

— Um minuto, Matilde – ela pediu, olhando para ele que, imperturbável, sequer levantou os olhos quando a campainha do telefone da mulher soou. O garoto jogando videogame, o ruído eletrônico impedindo-a de assimilar direito o que acabara de escutar. Fez um sinal, chamando o marido. E em voz baixa: – É a Matilde. Vou falar lá no quarto. Aqui está difícil de escutar com esse videogame.

— Acidente? Que acidente, Matilde?

Antes de desabar lá fora, a tempestade caía toda dentro de seu peito, em raios que o rompiam de alto a baixo. Matilde era a secretária do doutor Joaquim, praticamente um amigo de infância. Estudaram juntos na mesma escola até o secundário. Depois, cada um seguindo seu próprio caminho, ficaram sem se ver por exatos nove anos. Até que um dia, por uma absoluta coincidência, reencontrou-o, na sala de espera de um consultório dentário. Ela viera por causa de um canal, uma restauração e uma obturação infiltrada. Ele, a fileira de dentes perfeitos entre os lábios, estava ali em simples visita de rotina.

Parecia uma cantada barata, a primeira coisa que ele falou depois daqueles nove anos sem se verem. “Não te conheço de algum lugar?”. Ah, sim. Dos bons tempos do colégio. Das excursões, das festas julinas (um mês depois das provas), das prosaicas feiras de ciências no pátio da escola, das festas de quinze anos das meninas... Ele não fora à sua, em férias em Cabo Frio com a família.

Combinaram encontros familiares, em que iriam o marido dela e o filho. Ele levaria a esposa e os dois filhos – um menino e uma menina, lindos, se se parecessem com o pai. De concreto, apenas o cartão dele de advogado, com o telefone e o endereço do escritório no centro da cidade, pertinho do dentista. “Sei onde é”. Semana seguinte, depois do tratamento do canal, ela deu uma passada por lá. Mais para matar a curiosidade. E, antes de perceber os pesados livros de direito civil, penal e processual, rigorosamente alinhados na estante sólida, deparou-se com uma fileira de porta-retratos na mesa dele, as poses da família sorrindo feliz para as fotos coloridas tiradas pela mulher, amante de fotografia. Crianças lindas. “Sua mulher é muito bonita”. Teresa, ela se chamava.

Novamente, a promessa de se encontrarem todos, que eles iam adiando a cada visita dela ao escritório de advocacia. Matilde, sempre gentil, tornou-se uma espécie de amiga dela. Sabia talvez que não se tratava exatamente de uma cliente, aquela visita rápida das quartas-feiras, mas que mal há nisso? Simpatizaram-se mutuamente, de graça, ela e Matilde. “Uma velha amiga de infância”, foi como ele a apresentara à secretária, piscando, cúmplice, um olho absurdamente verde. E ela passou a desconfiar que a mulher do ex-colega de turma talvez fosse, na verdade, uma megera. Uma megera fotógrafa.

Em casa, silenciava sobre o reencontro com o amigo de juventude. O marido, sabia, jamais entenderia. Doutor Joaquim quem? Advogado de quê? Visitas ao escritório dele? Eram coisas ininteligíveis para a compreensão do marido. “Apenas bons amigos” – quem, além de Matilde, iria acreditar? Embora ela também soubesse que jamais poderiam sair inocentemente juntos de novo para ir ver um filme, tomar um sorvete ou comer uma pizza, como nos velhos tempos de há mais de nove anos atrás, em que ia toda a turma.

E relembravam casos antigos, piadas já fora de contexto. Cada despedida ficava mais difícil, a vontade ilimitada de seguir relembrando o passado em comum, atando os fios da memória de um e de outro, revisando acontecimentos que cada um julgava ter se dado de um jeito, e não de outro. “Foi assim, então?”. E riam, perdidos nas lembranças de adolescentes. Nessas horas, o gesto de despedida sempre suspenso no ar. “Você volta?”. O olho verde brilhando muito.

Na sala de visitas, sentado no sofá vendo o noticiário na tevê, alheio à tormenta em que naufragava a mulher, o marido constatava, nas notícias alarmantes do dia, que o mundo era mesmo muito feio. Trancada no quarto, a custo ela continha as lágrimas. Por fim, sem mais poder resistir, elas irromperam, pesadas, grossas, como a chuva que finalmente desabava lá fora.

 

A água cinzenta, coberta por uma fita pálida de céu, parecia pouco convidativa. Sem o sol escaldante, vazia de azul, a praia, semiabandonada, atraía poucos, no outono carioca. Ele não pensara em cair na água quando saiu de casa. Mesmo assim, vestiu o calção de banho por baixo da bermuda jeans. Amarrou o tênis e saiu, de camiseta regata, para uma corrida no calçadão.

O mar, de ressaca, espantava os banhistas do domingo sem sol. Uns poucos turistas se aventuravam na areia da praia de Copacabana. Na altura do posto seis, ele parou para tomar fôlego, junto a um Drummond de pedra que, de costas para o mar, ignorava as ondas revoltas.

Não fosse o mau tempo, ele teria vindo mais cedo. Contudo, ainda era manhã. Resolveu dar um mergulho, mas precisava deixar suas coisas em algum lugar. O barraqueiro que alugava cadeiras e vendia cerveja e refrigerante guardou a bermuda, a camiseta, o tênis. “O doutor vai arriscar? A água tá fria...”. Ao pisar com os pés descalços na areia, porém, ele constatou que estava quase morna. E até macia, aquela areia amarela e grossa. Sem pressa, dirigiu-se para a água. As espumas das ondas, lambendo-lhe os pés, encorajaram-no, retirando-lhe qualquer dúvida.

Embora um pouco fria, a água estava boa, naquela manhã preguiçosa. A cada braçada, ele sentia mais vontade de ficar ali, indefinidamente. Saiu um pouco exausto, cambaleante, e se estendeu, em decúbito dorsal, os braços abertos, na faixa de areia molhada. No entanto, urgia seguir em frente, espantar o sedentarismo que as audiências no fórum, por vezes agitadas, não conseguiam dissipar.

Foi caminhando lentamente pela areia, a água rastejando a seus pés. A todo instante, o sol parecia querer brotar do meio das nuvens cinzas, um disco luminoso forçando por romper a massa escura no céu. Mas a ilusão se desfazia com o leve sopro, frio e constante, que vinha do mar.

Ele caminhou até quase alcançar a praia do Leme. Na volta, entre os postos três e quatro, a meio caminho entre os dois Fortes – do Leme e de Copacabana , talvez para se refazer da caminhada, seguiu para o mar aberto.

 

Aglomerados à beira d’água, vários curiosos, surgidos não se sabe de onde. As muitas versões das testemunhas tentavam reconstituir o fato: “com mar bravo não se brinca”; “foi cãibra que ele teve”. Retiraram o corpo inerte e pesado de dentro da água. O helicóptero do corpo de bombeiros, sempre a postos, fazendo muito barulho. Um salva-vidas musculoso fizera-lhe respiração boca-a-boca, massagem cardíaca. Em vão. Os olhos verdes, muito abertos, refletiam o cinza turvo do céu, e, aos poucos, iam se tornando cinza também.

 

domingo, 6 de novembro de 2022

A comissão

 

Isabel Pires

Parecia um final de tarde talvez de verão. Deitada na cama, ao lado do marido, ela observava o céu, no fundo da janela gradeada. Não se lembrava de ter visto em lugar algum por onde passou um céu como aquele, de uma tonalidade lilás-azulada, sem nuances. Lembrava mais um fundo de vidro. Uma cor só, inteiriça, assim por detrás das grades da janela que, àquela luz, pareciam prateadas.

De repente, um objeto duro se fez sentir sob o seu braço. Ela tateou por entre os lençóis, procurando. Era um pequeno objeto circular achatado, de uma cor de marfim. Como não soubesse o que seria aquilo, rindo para o marido, deu de ombros, e atirou o objeto não identificado num canto qualquer do quarto. Foi quando percebeu um vulto próximo da janela, pelo lado de fora. Procurou observar melhor, mas o corpo do marido interceptou sua visão, ao sentar na cama, também ele querendo ver aquele vulto.

Como se tivessem combinado, os dois, marido e mulher, se acharam próximos às grades da janela, embora não pudessem se lembrar ao certo de como chegaram até ali, se se questionassem a esse respeito. Mas a curiosidade, mesclada a um certo medo, era maior para se permitirem saber tantos detalhes, e ficaram meio recuados, para que o dono do vulto do lado de fora não percebesse a presença deles. Ela viu mãos enluvadas que seguravam as grades prateadas. E as mãos que seguravam as grades pareciam ter consciência de estarem sendo observadas. O clima dentro e fora da janela de grades prateadas ficou enormemente tenso, numa tensão quase palpável.

O cachorro no quintal começou a latir ferozmente, também ele pressentindo o clima denso, e foi quando ela começou a tomar consciência das coisas. Então temos um cachorro?, perguntou-se em pensamentos. E, em pensamentos, percebeu que se fazer esta pergunta tinha um quê de absurdo, pois, afinal, ela deveria saber se tinham ou não um cachorro. E como não sabia ao certo, ali, se havia ou não cachorro no quintal, também percebeu, junto com o fato de não saber se tinha ou não um cachorro, que nem sequer sabia se havia ou não um quintal do outro lado da janela, para além da presença das mãos enluvadas pousadas nas grades. Pois... não moravam... no quarto andar? Então a tomada de consciência fê-la acordar.

O marido disse que ela acordou latindo. Ria, ria e ria. Lembrava dos tempos em que já acordara sorrindo muito, dando até gargalhadas. Mas latindo? O marido jurava. E tinha o vizinho pancada. Toda vez, ele batia à porta, pedindo coisas emprestadas: uma cadeira de praia, uma vela, um pires de leite para o gato. Quando o marido não estava, ela até que arranjava as coisas para o vizinho, embora meio contra a vontade. “Coitado, perdeu a mãe faz pouco tempo...”.

O marido, todo sério, contou: o vizinho pancada cobrara dele uma comissão pelos serviços prestados. “Quê?!”. Explicou: a mãe dela pedira um favor ao vizinho, e ele a ajudara. Então, a comissão... Ela não conseguia parar de rir. Jura? Ele tornava a jurar. Era tudo verdade.

Pois a mãe dela perguntara ao vizinho se ele sabia onde havia um conserto de eletrodomésticos. Encontrou-o na calçada do prédio, de bermudas e em mangas de camisa. Ele apontou a pequena loja do outro lado da rua, onde aparelhos a serem consertados, alguns já comidos pela ferrugem, empilhavam-se infinitamente, junto com a poeira e a fuligem dos carros, por trás de um biombo desbotado.

A mulher atravessou a rua, a velha batedeira de bolo debaixo do braço, e foi encomendar o serviço. O dono do negócio, um senhor de amplos bigodes e fortes óculos de grau, deu o preço. Ela deu um adiantamento. Quando foi buscar a batedeira e liquidar o débito, alguns dias depois, estranhou: o homem cobrara um pouco mais, alegando ter gasto mais material que o previsto. Tudo bem, porém havia levado a conta certa do dinheiro devido. Ficou de pagar o restante depois. Meio ressabiado, o outro concordou. Fazer o quê?

Estava explicado: o vizinho pancada, não conseguindo receber a comissão do genro, foi cobrá-la do outro homem, por ter indicado o seu negócio a uma cliente. Certamente, e agradecido, o outro pagara-lhe a tal comissão. Depois tentara correr atrás do prejuízo em cima do preço final do serviço.

Ela rolava de rir, lembrando que, há dias, quando ia visitá-la, sua mãe não entrava mais pelo portão principal do prédio, bem de frente para a oficina de consertos de eletrodomésticos. Agora, ela usava apenas o portão lateral do edifício, que dava para a outra rua.

 

*** 

sábado, 5 de novembro de 2022

O circo na chuva

                                                                                                                             Isabel Pires

A chuva caía forte. Era cedo ainda, mas ela seguia, protegida por um imenso guarda-chuva. Parado no ponto final, o ônibus, magnífico sob o aguaceiro. Fechou o guarda-chuva e entrou.

— Coloca aqui, olha.

O seu companheiro de banco tomou-lhe o guarda-chuva encharcado e pendurou-o no ferro do banco em frente. A moça deu um meio-sorriso de agradecimento e fixou o olhar na pequenina poça d’água que já se formava no chão. No ônibus lotado, alguém, impaciente com a demora, batia com o pé no assoalho.

Sob a espessa cortina d’água, o ônibus se pôs lentamente em marcha. Um homem, de pé, entreabrira a camisa, e no seu peito gotas de suor se misturavam às da chuva. Fazia calor.

— Posso levar seu pacote?

Uma moça tomou o embrulho, apoiando-o na palma da mão esquerda. Pesava. Através do papel pardo já quase desmanchado, sentiu o frio do aço. Um objeto metálico? E quadrado, sólido. Num dos bancos, um casal conversava, animado.

— Esse horário é fogo. Com chuva, então... – Disse o homem.

Os olhos da mulher se abriam em espanto, contando os detalhes do dia anterior.

— Aí sabe o que o meu gerente fez? – Ela perguntou, enquanto o homem ao seu lado observava o trânsito sob o temporal. – Pegou um revólver de brinquedo, encheu de chumbinho e esperou a garota subir a escada.

— Atirou? – Ele voltou-se, repentinamente curioso.

O risinho estridente dela tilintou, prazeroso.

— Ela quase morreu de susto. Olha, meu gerente é fogo. Inventa cada coisa para assustar as meninas da loja... Só eu que não caio. Quando vou lá em cima, subo devagarinho, olhando para todos os lados. Meu gerente é fogo – repetiu, e forçou um sorriso.

O ônibus se sacudiu na curva.

— Sabe, outro dia foi um estilingue – recomeçou a mulher. Mas o seu interlocutor se concentrava na demora do ônibus, consultando, nervoso, o relógio.

Mais à frente, um chapéu de palha destacava-se entre os passageiros. Pertencia a um idoso. O movimento brusco do ônibus fez com que um jovem, de pé, pendurado por um braço no ferro do ônibus, atingisse, num golpe da mão livre, o chapéu de palha. O chapéu deu um pulo, quase saltando da cabeça do homem. O dono do chapéu voltou-se. Seu olhar fixou o jovem, insistentemente. Mas este olhava, através do vidro enfumaçado, a rua alagada, atulhada de ônibus e carros. O velho consertou o chapéu de palha na cabeça. Mais alguns minutos e levantou-se, rompendo cabisbaixo a massa compacta dos passageiros em pé. Distraído, o jovem não ocupou o lugar deixado pelo velho. Nem mesmo percebeu quando ele deixou o ônibus. Quando outra pessoa sentou no lugar do velho, o jovem, pousando o olhar no novo passageiro, sem saber que era o chapéu de palha, sentiu vaga falta de alguma coisa.

O ônibus ia aos solavancos pela pista esburacada. Mas os buracos eram apenas pressentidos. A moça do enorme guarda-chuva relanceou um olhar pelo vidro completamente embaçado, no qual o seu vizinho de banco escrevera com o dedo as palavras “Carla” e “eu te amo”. Ela sorriu. E tentou acompanhar os caminhos que as gotas de água iam fazendo pelo lado de fora do vidro. Mas eles, como lágrimas, desmanchavam-se e embaralhavam-se uns nos outros, impossível seguir-lhes.

O rapaz da camisa entreaberta pegou o embrulho de volta. Ia ficar no próximo ponto.

O ônibus seguia pela avenida na manhã encharcada. Parava nos pontos e arrancava novamente, aos saltos. A moça tomou o guarda-chuva, preparando-se para levantar. E, antes que o ônibus desse outro arranco, viu, lá fora, por entre os claros das letras no vidro, a lona colorida de um circo, cujas cores pareciam mais vivas sob a chuva.

***

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Marcha nupcial

Isabel Pires 

O noivo, já pronto, aguardava sentado na cama do seu quarto de solteiro. Contemplava, entre as mãos, o convite de casamento, o rosto sem expressão.

Bateram à porta, avisando-o de que o carro que o levaria até a igreja havia chegado.

Largou o convite sobre a mesinha de cabeceira e saiu, o coração acelerado. Junto à calçada, o carro preto o aguardava. Entrou e sentou-se no banco traseiro. Passou a mão pela testa, despregando os cachos molhados de suor. Só então reparou na motorista à sua frente, de penteado sóbrio no cabelo repartido ao meio e enrodilhado num coque acima da nuca. Seu vestido preto, de alças, também tinha um tom discreto.

A motorista pôs o carro em movimento. Voltou-se no banco e o encarou, sorrindo. Aquele rosto lembrava-lhe um tempo já esquecido. Quem seria? O suor na testa aumentou. Pegou o lenço, esfregando-o quase que por todo o rosto. Respirava com dificuldade, sufocado pelo calor da tarde de verão.

Saíram da avenida principal e começaram a rodar por ruas paralelas, infindavelmente. Depois, alcançaram outra avenida ampla e vazia. Passaram por conjuntos de prédios, postos de gasolina, e agora, de quando em quando, surgiam apenas alguns motéis à beira da estrada. Aquele não era, sem dúvida, o caminho da igreja. Ele tocou de leve no ombro da motorista, que lhe pareceu etéreo, irreal, cingido por uma fina alça de cetim preto.

— Para onde está me levando?

A voz veio de longe, emoldurada de algas, uma cantiga sob a água. Ele não entendeu a resposta. O rosto plácido, de contornos difusos, que por um momento voltara-se para ele, tornou a concentrar-se na estrada aberta à frente. Os pneus engoliam o asfalto, implacáveis.

Finalmente estacionaram. Deixaram o carro sob uma árvore meio desfolhada e foram caminhando junto a um muro alto, infinitamente comprido, cravado de cacos de vidro colorido. Como num conto de Lygia Fagundes Telles, ultrapassaram um pequeno portão enferrujado, e só então ele pareceu se dar conta de que estavam num cemitério. Olhou perplexo para tudo aquilo e encarou a mulher. Ela, de preto, seguia com passos seguros por entre as lajes.

Os túmulos se sucediam. Súbito, ela parou. Ajoelhou-se piedosamente diante de uma laje recém-colocada ali. O mármore, sem um rachão, contrastava com a decadência dos túmulos em volta. Contrita, a jovem mulher rezava. Grossas lágrimas rolavam pelas suas faces, contraídas numa expressão de completa dor.

Desajeitadamente, o rapaz começou a ler a inscrição na laje. Parou, estupefato. Era seu nome ali, na laje fria. “Falecido em...”. Não pôde continuar. Uma dor funda atravessou-lhe o peito. Caiu de joelhos, apertando o rosto com as mãos, o corpo todo sacudido por soluços entrecortados.

Permaneceu algum tempo assim, as mãos úmidas comprimidas contra o rosto intumescido. Aos poucos, os soluços foram se espaçando, mas ele continuava a apertar os olhos com as mãos. Ouviu, ao longe, umas batidas leves, semelhantes a dedos tamborilando na madeira. Aquele toque se repetiu ainda duas, três vezes, agora mais perto, mais firme. Mais alto. De repente, o barulho metálico do trinco de uma porta se fez ouvir, nítido. Alguém enfiou a cara dentro do quarto e falou algo sobre “olha a hora” e “assim a noiva desiste”, num tom entre sério e brincalhão. Hora? Noiva? Ah, sim. A noiva, a igreja, o casamento. Seu casamento.

O noivo pôs-se de pé num pulo. Lavou o rosto e marchou solene para a sala, onde os amigos o aguardavam para levá-lo até a igreja.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Rapsódia brasileira

                                                                                                                                     Isabel Pires

A diretora enfiou a cara na porta da sala e comunicou à professora, de pé, em frente à turminha:

— O Marciano está na Baleia.

A professora mesmo custou a entender. Depois, balançou a cabeça afirmativamente. Estava certo.

A turma, entre seis e sete anos de idade, nada entendeu. E uma garotinha, de olhos arregalados, perguntou:

— Tia, quê que teve com o Marciano?

A tia apenas repetiu:

— O Marciano está na Baleia.

— Na baleia??

A gurizada, contente com a mágica, começou a cantarolar:

— O Marciano está na baleia! O Marciano está na baleia!

A tia pegou lápis e papel e, rodeada pelas crianças, desenhou: uma baleia simpática, com seu tradicional espirro de água parecendo árvore e um olhar maroto de quem realmente entendia de engolir pessoas. Pois já não tinha a experiência do sabor do Jonas?

— Cadê o Marciano? – cobraram as crianças.

A tia pensou e resolveu: iria desenhar uma baleia esquemática, para que todos vissem o Marciano bem instalado no seu barrigão. Desenhou, pois, uma figurinha barriguda e de muitos dedos e de cabelo cacheadinho e de olhos assustados dentro da barriga da baleia. Era o Marciano.

— A baleia engoliu o Marciano? – perguntaram meio alarmados e meio surpresos vários garotos.

— Hum-hum – confirmou a tia, divertida com a ideia.

A criançada pulava e cantarolava:

— A baleia engoliu o Marciano! A baleia engoliu o Marciano!

Para eles, era baleia com “b” minúsculo mesmo, pois embora nunca tivessem visto uma baleia de verdade, conheciam a história do peixe enorme, engolidor de jonas desprevenidos. Somente a professora e a diretora sabiam: era Baleia com “B” maiúsculo.

Mas a turminha, inteirada da história de Jonas, cobrou:

— Tia, quando é que a baleia vai desengolir o Marciano?

— Ah! Só quando ela comer o dedinho dele, aí ele sai de dentro da barriga dela!

Para não restar dúvida de que a baleia “desengoliria” o Marciano, a tia voltou ao primeiro desenho: fez o Marciano sentado, em cima do espirro de água da baleia, com um sorriso no rosto e cinco dedos em cada mão e em cada pé.

A turma não cabia em si de contente. E na hora do lanche, quando foram comer, lembraram que também a baleia comeria – o quê? – os dedinhos excedentes dos pés e das mãos do Marciano. Cantarolavam ritmadamente, satisfeitos com a comida:

— A baleia engoliu o Marciano! A baleia engoliu o Marciano!

E depois:

— A baleia vai desengolir o Marciano! A baleia vai desengolir o Marciano!

Era, porém, proibido fazer bagunça na hora da merenda. E a diretora em pessoa veio impor silêncio aos pirralhos. Que história era aquela de baleia?

— Tia, a baleia engoliu o Marciano! – disse uma garotinha que ainda não sabia distinguir uma “tia” de uma diretora. – E – continuou ela – só vai desengolir quando comer os dedinhos dele.

A diretora entendeu tudo. Sem piedade, esclareceu a turma:

— Não, não é nada disso não. Baleia é um hospital que fica em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. E o Marciano foi lá para operar as mãozinhas e os pés.

Saiu, abanando a cabeça, reprovando intimamente a professora. Mas esta, vingando-se, deu-lhe língua pelas costas e a turminha então estourou numa gostosa gargalhada. 

***

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Dona Jerusa ou a arte de andar deprimida nas ruas tijucanas

 

Isabel Pires

 

O que significa “morrer de depressão”? Pois o porteiro do prédio disse que ela havia “morrido de depressão”, quando perguntei, diante do anúncio fúnebre afixado no saguão da entrada, de quê que a dona Jerusa havia morrido.

Há apenas três dias encontrei-a no elevador. Ela não me parecera em absoluto doente. Sequer deprimida. Mas ela “morrera de depressão”, conforme tinha dito o porteiro, “seu” Antônio. Saímos juntas do elevador e seguimos juntas pela rua até o supermercado, onde dona Jerusa entrou e desapareceu por entre as prateleiras.

Como pode alguém deprimido gostar tanto de supermercado? Dia sim, dia não, lá ia dona Jerusa ao supermercado, de onde retornava com algumas sacolas de petiscos. Gulosa? À primeira vista, aquela senhora de setenta e três anos, que usava largos óculos escuros e pintava os cabelos de ruivo, parecia mais uma modelo anoréxica da terceira idade. Não devia ser gulosa. Um corpo esbelto e as unhas tratadas toda semana no salão da esquina atestavam o extremo cuidado de dona Jerusa com a própria aparência.

Mas ela “morrera de depressão”, era certo? Talvez, justamente por sofrer disso, fosse tanto ao supermercado. E ao salão.

Dona Jerusa morava numa cobertura de um prédio de classe média da Tijuca. A pensão do marido e algumas rendas “de alugueres” – na terminologia do filho advogado – a deixavam viver com folga. Ela e o filho. Filho único, aquele homem já meio calvo, um tanto acima do peso e muito sério, sempre engravatado, indo e vindo de casa para o escritório de advocacia no centro da cidade. Certamente, um belo escritório, equipado com muitos livros de direito civil e penal, que deviam povoar as prateleiras de uma sólida estante. Uma bela e consolidada carreira, para um homem tão pacato, que aparentava não saber o que fosse paixão.

Aquele advogado sério e caladão, com um jeito meio tímido de garoto apanhado em falta, aparentava sequer saber imaginar o que fosse uma paixão. De casa para o trabalho, do trabalho para casa, sem qualquer paixão atravessando-lhe o caminho. Especialista em casos criminais, sua vida profissional talvez rendesse um bom romance policial. Sua vida amorosa, porém, não daria um bolero gasto, menos ainda um folhetim melodramático.

Mas nada disso vem ao caso. Aqui, só dona Jerusa importa e sua súbita “morte por depressão”. O filho – Adalberto, era seu nome –, agora órfão de pai e mãe, tratou de tudo com a seriedade engravatada que lhe era peculiar. O enterro, no cemitério do Caju, sem qualquer alarde. Bem discreto, como dona Jerusa e sua “morte por depressão”.

Refaçamos o trajeto solitário de dona Jerusa até o supermercado, de onde ela voltava com suas sacolas de petiscos. Comecemos pelos indefectíveis e largos óculos escuros de dona Jerusa. Por detrás daquelas lentes, a depressão talvez escorresse abundantemente nos olhos vermelhos que ninguém nunca via. Dona Jerusa podia ir e vir. De casa para o supermercado. Do supermercado para casa. Era um trajeto bem seguro, naquelas ruas tijucanas. Ainda que não deixassem de ser ruas do Rio de Janeiro. Ela também podia se dar ao luxo de ficar deprimida. Em casa, no elevador ou na rua. No supermercado, tinha a liberdade de ficar deprimida sobre alfaces e morangas, que ninguém jamais desconfiaria. Também podemos intuir que, mesmo sem os óculos largos e de lentes muito escuras, dona Jerusa poderia ficar deprimida onde quisesse e à hora em que bem entendesse. Quem se importa com uma senhora idosa, de cabelos ruivos e passos rápidos, que atravessa deprimida as ruas do Rio de Janeiro?

O “seu” Antônio, o porteiro, afirmou ainda que dona Jerusa vivia deprimida. Pois ela não “morrera de depressão”?

Para dona Jerusa, viver e morrer deviam ser igualmente simples. Talvez até indiferentes. O único alarde de sua existência discreta expresso naquele cabelo vermelho, que se refletia mais vermelho, faiscando raios de sol – quase um pedaço de vitral gótico cingindo a cabeça de uma santa pós-moderna – quando ela atravessava, imperturbável, as ruas da Tijuca em direção ao supermercado.

O que será que significa “invadir todo o campo magnético”? Pois foi o que a dona Jerusa disse, na última vez em que a encontrei no elevador. O elevador havia parado em um andar qualquer, e um gigantesco carrinho de bebê entrou, guiado pela mãe e pela avó. O carrinho, com um sorridente bebê dentro dele, ocupou todo o espaço, espremendo a mim e a dona Jerusa contra o fundo do elevador. Por detrás das lentes, ela murmurou qualquer coisa inaudível. E apenas consegui captar o último trecho, algo sobre como “invadir todo o campo magnético”?

“Morreu como um passarinho”, nas palavras do “seu” Antônio. Sem qualquer queixa da vida ou da morte. Exceto por aquele absurdo e inexplicável comentário sobre a “invasão de um campo magnético”, que poderia nem ser queixa, é verdade. Simples palavras aleatórias e inofensivas, lançadas contra o fundo de um elevador, como as que jogamos aleatoriamente pelo caminho, quando seguimos depois pela rua até dona Jerusa entrar no supermercado.

Miúda, o caixão ficou enorme para o corpo mignon de dona Jerusa. O caixão de madeira maciça – “coisa fina, que o doutor Adalberto não ia economizar”, dissera “seu” Antônio – desceu pelo elevador de serviço. Talvez tivesse sido a primeira vez, em tantos e tantos anos, que a dona Jerusa descia pelo elevador de serviço. O “seu” Antônio, o porteiro, ajudou a segurar com presteza a alça dourada, como ajudava a carregar as sacolas de supermercado de dona Jerusa. Ajudou a levar o caixão, com dona Jerusa dentro, até o carro da funerária, que a levaria até o cemitério do Caju.

Junto do elevador, ao terminar de ler o aviso fúnebre da “morte por depressão” de dona Jerusa, escutei o “seu” Antônio responder: “Dona Jerusa? Morreu de depressão”. Mas eram aquelas palavras incompreensíveis de dona Jerusa, dentro do elevador, e que agora me pareciam misteriosas, até mesmo esotéricas, carregadas de um sentido sobrenatural, que me vinham à mente. Por detrás daquelas largas lentes escuras, ela havia falado, enigmaticamente, “invadir todo o campo magnético”?

Ao enterro, às quatro horas da tarde de uma quarta-feira ensolarada, compareceram pouquíssimas pessoas. Quase ninguém. Ninguém do prédio. Nos dias que se seguiram, ninguém do prédio deu pela falta de dona Jerusa. Nem o “seu” Antônio. Nem as crianças que brincavam no terraço, ao lado de sua casa, e a quem, de vez em quando, ela levava caramelos, que a molecada pegava, sôfrega. Sempre com seus enormes óculos escuros, aonde quer que fosse. O mundo para ela talvez tivesse sido eternamente escuro, indistintos os dias e as noites. Mesmo quando ia ao supermercado, buscar seus petiscos com os quais talvez chegasse a se deliciar, embora extremamente deprimida.

Dias depois e um novo aviso na portaria do prédio convidava os moradores para a missa de sétimo dia de dona Jerusa. Alguns vizinhos, embora um tanto reticentes, compareceram à basílica de Santa Terezinha, onde viram a chuva de pétalas de rosas cair em intenção da alma de dona Jerusa. Tão deprimida.

O “seu” Antônio, o porteiro, não foi, sempre às voltas com interfones e sacolas de supermercado. Se tivesse ido, poderia ter visto o doutor Adalberto, o advogado criminalista da cobertura, na primeira fila de bancos da igreja. Certamente, diria que, agora, era o filho de dona Jerusa que estava deprimido, e que, em breve, iria morrer. De depressão, naturalmente. De gravata, sentado sozinho no banco de madeira da igreja de Santa Terezinha, aquele homem parecia isolado num estranho campo magnético. Placidamente nervoso, limpava a todo instante o suor que gotejava da testa larga. No rosto, uns grandes óculos escuros, de lentes imensas, através das quais – talvez – um par de olhos deprimidos enxergassem o mundo como uma infinita noite eternamente escura e sombria.