Isabel
Pires
Parecia um final de
tarde talvez de verão. Deitada na cama, ao lado do marido, ela observava o céu,
no fundo da janela gradeada. Não se lembrava de ter visto em lugar algum por
onde passou um céu como aquele, de uma tonalidade lilás-azulada, sem nuances. Lembrava
mais um fundo de vidro. Uma cor só, inteiriça, assim por detrás das grades da
janela que, àquela luz, pareciam prateadas.
De repente, um objeto
duro se fez sentir sob o seu braço. Ela tateou por entre os lençóis,
procurando. Era um pequeno objeto circular achatado, de uma cor de marfim. Como
não soubesse o que seria aquilo, rindo para o marido, deu de ombros, e atirou o
objeto não identificado num canto qualquer do quarto. Foi quando percebeu um
vulto próximo da janela, pelo lado de fora. Procurou observar melhor, mas o
corpo do marido interceptou sua visão, ao sentar na cama, também ele querendo
ver aquele vulto.
Como se tivessem
combinado, os dois, marido e mulher, se acharam próximos às grades da janela,
embora não pudessem se lembrar ao certo de como chegaram até ali, se se
questionassem a esse respeito. Mas a curiosidade, mesclada a um certo medo, era
maior para se permitirem saber tantos detalhes, e ficaram meio recuados, para que
o dono do vulto do lado de fora não percebesse a presença deles. Ela viu mãos
enluvadas que seguravam as grades prateadas. E as mãos que seguravam as grades
pareciam ter consciência de estarem sendo observadas. O clima dentro e fora da
janela de grades prateadas ficou enormemente tenso, numa tensão quase palpável.
O cachorro no quintal
começou a latir ferozmente, também ele pressentindo o clima denso, e foi quando
ela começou a tomar consciência das coisas. Então temos um cachorro?,
perguntou-se em pensamentos. E, em pensamentos, percebeu que se fazer esta
pergunta tinha um quê de absurdo, pois, afinal, ela deveria saber se tinham ou
não um cachorro. E como não sabia ao certo, ali, se havia ou não cachorro no
quintal, também percebeu, junto com o fato de não saber se tinha ou não um
cachorro, que nem sequer sabia se havia ou não um quintal do outro lado da
janela, para além da presença das mãos enluvadas pousadas nas grades. Pois...
não moravam... no quarto andar? Então a tomada de consciência fê-la acordar.
O marido disse que ela
acordou latindo. Ria, ria e ria. Lembrava dos tempos em que já acordara
sorrindo muito, dando até gargalhadas. Mas latindo? O marido jurava. E tinha o
vizinho pancada. Toda vez, ele batia à porta, pedindo coisas emprestadas: uma
cadeira de praia, uma vela, um pires de leite para o gato. Quando o marido não
estava, ela até que arranjava as coisas para o vizinho, embora meio contra a
vontade. “Coitado, perdeu a mãe faz pouco tempo...”.
O marido, todo sério,
contou: o vizinho pancada cobrara dele uma comissão pelos serviços prestados. “Quê?!”.
Explicou: a mãe dela pedira um favor ao vizinho, e ele a ajudara. Então, a
comissão... Ela não conseguia parar de rir. Jura? Ele tornava a jurar. Era tudo
verdade.
Pois a mãe dela
perguntara ao vizinho se ele sabia onde havia um conserto de eletrodomésticos.
Encontrou-o na calçada do prédio, de bermudas e em mangas de camisa. Ele
apontou a pequena loja do outro lado da rua, onde aparelhos a serem
consertados, alguns já comidos pela ferrugem, empilhavam-se infinitamente,
junto com a poeira e a fuligem dos carros, por trás de um biombo desbotado.
A mulher atravessou a
rua, a velha batedeira de bolo debaixo do braço, e foi encomendar o serviço. O
dono do negócio, um senhor de amplos bigodes e fortes óculos de grau, deu o
preço. Ela deu um adiantamento. Quando foi buscar a batedeira e liquidar o
débito, alguns dias depois, estranhou: o homem cobrara um pouco mais, alegando
ter gasto mais material que o previsto. Tudo bem, porém havia levado a conta
certa do dinheiro devido. Ficou de pagar o restante depois. Meio ressabiado, o
outro concordou. Fazer o quê?
Estava explicado: o
vizinho pancada, não conseguindo receber a comissão do genro, foi cobrá-la do outro
homem, por ter indicado o seu negócio a uma cliente. Certamente, e agradecido,
o outro pagara-lhe a tal comissão. Depois tentara correr atrás do prejuízo em
cima do preço final do serviço.
Ela rolava de rir,
lembrando que, há dias, quando ia visitá-la, sua mãe não entrava mais pelo
portão principal do prédio, bem de frente para a oficina de consertos de
eletrodomésticos. Agora, ela usava apenas o portão lateral do edifício, que
dava para a outra rua.
***
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