Isabel Pires
Não. Ela não devia ter saído
de casa naquele dia. Tivera a certeza quando o carro freou bem em cima dela. Olhou através
dos vidros do carro lotado de mulheres: hábitos negros com detalhes brancos. Apenas
rostos e mãos de fora. Carmelitas Descalças, ou coisa mais severa.
Quando saiu à rua, de manhã bem cedo, foi como se tivesse ultrapassado um limiar proibido. Na calçada do prédio, àquela hora imponderável do dia, uma faixa amarela e preta, amarrada em estacas, delimitava um retângulo interditado. Os curiosos já se aglomeravam. Quem saía do prédio era interceptado por um policial. “A senhora? Mora em qual bloco?”. Alguém havia se atirado de uma das janelas do prédio. Como morava no bloco B, fundos, o policial liberou sua passagem. O porteiro do prédio, o sr. Josias, na verdade fora quem respondera por ela que, atônita, não conseguia articular palavra. A língua, um trapo mole dentro da boca.
O corpo estava lá, na
calçada, sob o plástico preto, só os pés de fora. Um par de pés inúteis, muito
brancos e descarnados, apontando absolutamente para o vazio. A brancura
cadavérica, de cera, dos pés contrastando com o preto estúpido do plástico. Ela
foi saindo de fininho, já que estava liberada.
Depois, o episódio com
as freiras. Saiu de fininho da frente do carro. Definitivamente, não era um bom
dia aquele.
Quando finalmente
chegou no trabalho, Da Porta Pra Fora recolhia o lixo da sala, armada de pá e
vassoura. Como era a primeira pessoa com quem se deparava, antes de sentar-se à
mesa de trabalho, desabafou ali mesmo os pés brancos e fixos escapando furtivos
do plástico preto. E Da Porta Pra Fora:
—
Da-porta-pra-fora! Jesus-toma-conta! – E foi saindo de fininho.
Dona
Marta também veio desabafar, não com Da Porta Pra Fora, mas com ela. Por que a
Neuza e não ela? Ela, que ajudou tanto nos preparativos do congresso. Quem fez
todos aqueles crachás? Quem conferiu nome por nome? Nem almoçar almoçara. Isso que
dá. Na hora do bem-bom, era a Neuza que botavam de secretária! Não, não era
pelo dinheiro, que naquele evento ela trabalharia até de graça. Mas a falta de
consideração... Ou não era?
Ela
ligou o computador e se enfiou dentro da tela. Ninguém merecia a dona Marta. Ao
ler os e-mails, deu-se conta da
extensão do seu atraso. Sim, também havia tido uma batida no trânsito,
obrigando os carros a seguirem em uma lenta fila indiana. Havia duas mensagens
do diretor, o doutor Henrique. A segunda mensagem, registrada às dez horas e
dezesseis minutos, cobrava as providências urgentes solicitadas na primeira
mensagem, enviada às nove e sete da manhã.
No
entanto, ela sabia que estava segura ali, no décimo sétimo andar. O guarda lá
fora, protegendo todo mundo dos estranhos que não se identificassem.
Levantou-se
resoluta. Ia consultar a doutora Rosa, antes de responder aqueles e-mails do doutor
Henrique. Mas a doutora Rosa, que integrava a equipe de advogados da firma, não
estava na sala.
Ela
foi tomar um café, tentando espantar da mente a imagem do corpo sob o plástico à
porta do prédio, sem conseguir, contudo. E pensou no Rômulo, da banca da
esquina. Banca que outrora vendia revistas e jornais, e agora havia se transformado
praticamente em lanchonete, vendendo refrigerantes em geladeiras portáteis,
doces e salgados. Também biscoitos. Será que o Rômulo tinha visto o salto? O corpo
pesado despencando para o nada lá embaixo? Ela não sabia, porém, mas o Rômulo
havia três dias que não aparecia na banca.
Mergulhada
no trabalho, não percebera as horas passarem, até que escutou os sinos da
igreja em frente, que tocavam religiosamente ao meio-dia. Era a hora em que ela
costumava ir almoçar. Naquele dia, porém, resolveu não sair. Ligou para
a lanchonete onde o Sandro, um antigo estagiário, costumava pedir sanduíches.
Aliás, foi o Sandro quem inaugurou o bate-papo com Da Porta Pra Fora. Era ele
quem a chamava assim.
Sandro
trabalhou ali exatos três meses. Um dia, simplesmente encheu o saco e sumiu. No
último dia, o filho da mãe foi com a mesmíssima roupa que havia ido no primeiro
dia, uma camiseta vermelha e azul, que ele dissera ser sua mascote para "datas
importantes". Ela se lembrava bem. Parecia até uniforme de time de futebol
amador, aquela camiseta-mascote. E a mochila também devia ser a mesma. Estava obediente
e gentil, quase delicado o estagiário. E sobretudo prestativo. Não precisou
mais do que isso para ela entender que se tratava, na verdade, de uma
despedida.
Depois
de engolir rapidamente o sanduíche, voltou aos e-mails do diretor, ainda não
respondidos. E era urgente! Resolveu procurar o doutor Victor, antes de tentar
mais uma vez a doutora Rosa. Dona Marta, a secretária, retocava meticulosamente
o pó-de-arroz e o batom antes de descer à rua para o almoço no self-service da esquina.
—
Doutor Victor? Ele não veio hoje.
Havia
morrido um parente da mulher do doutor Victor. E ela lembrou-se, mais uma vez, do
corpo caído na frente do prédio. Seria de um homem ou de uma mulher?
Enquanto
a dona Marta desfiava a história da morte do parente da mulher do doutor
Victor, ela foi saindo de fininho. Mas antes de entrar na sala, lembrou-se da
doutora Rosa. Dona Marta já ia pelo corredor, a caminho do elevador. Perguntou
pela doutora Rosa. Dona Marta não tinha certeza, mas achava que a doutora Rosa
já devia estar na sala dela, sim. Resolveu arriscar.
Se
alguém encontra um corpo caído à porta do prédio onde mora, de manhã cedo, o melhor a
fazer é dar meia-volta e não sair mais de casa. Pelo menos naquele dia. Foi o
que ela concluiu depois. Em vez, seguiu em frente.
Quando
abriu a porta da sala da doutora Rosa, eles pareceram não ligar a mínima. Na cadeira
giratória, atrás da mesa, a doutora Rosa, olhos semicerrados, suspirava. A blusa
entreaberta – uma blusa rendada, de tom amarelo claro – mostrava, inteiro, um
colo sardento, no qual o doutor Henrique esfregava uma mão gorda e ávida,
enquanto roçava a barba grisalha na nuca branca da doutora Rosa. Uma nuca em
que fios de cabelo castanho escuro escorriam abundantes, livres do penteado em
que ela os mantinha sempre presos.
Ocorre
que uma das muletas que o doutor Henrique usava descansava naquele instante na
parede atrás dele, liberando assim a mão – aquela mão cabeluda e pegajosa – que
ele passava com gosto na doutora Rosa.
Foi tudo muito rápido. No mesmo instante em que a viram, parada à soleira da porta, a muleta escorregou. Talvez a doutora Rosa tenha se mexido na cadeira, fazendo-a girar e empurrando involuntariamente a muleta. O doutor Henrique se desequilibrou. Seis pontos na testa e uma costela quebrada. Da porta pra fora. Jesus toma conta. Dessa vez, não dava para ir saindo de fininho.
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