Isabel
Pires
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele
enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formar
desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se
cinzento.
joão transformou-se num arquivo de metal.
(Vitor
Giudice, O arquivo)
Ninguém sabia ao certo há quanto tempo ela trabalhava ali, a mesa a um
canto perto da janela, cercada por quinquilharias diversas em meio a pilhas de
papéis inúteis. Rigorosamente, não fazia nada, nem ninguém parecia se preocupar
com isso, ou querer saber sobre suas atribuições. Chegava pelo meio da manhã,
carregada de misteriosas sacolas de papelão que guardava dentro do armário,
trancadas a chave. Atravessava os corredores e salas carregando as sacolas com
a elegância de um elefante numa loja de porcelanas. Por fim, acomodava-se
ruidosamente na larga cadeira de rodinhas, de espaldar alto, uma cadeira antiga
que havia pertencido a um funcionário que já se aposentara e que, diziam, até
já tinha morrido.
Quando não estava ao telefone, era certo estar martirizando a moça da
limpeza ou a copeira. “Isto não é café!”, reclamava, “tá mais para lavagem”.
Insultava com frequência a faxineira, “essa porca ordinária”, que “nunca limpa
nada direito”, exigindo que a outra esvaziasse a sua lixeira a toda hora. A
toda hora a lixeira, colocada estrategicamente debaixo da mesa, transbordava:
copos descartáveis de água e de café, copinhos de iogurte, latas de
refrigerante, guardanapos de papel com restos de sanduíche, cascas de banana,
sementes de maçã, caroços de uva, embalagens descartáveis diversas, papéis de
bombons, de balas, de chicletes, de biscoitos. Toda uma parafernália de
vestígios comestíveis, um verdadeiro sambaqui pós-moderno. Na lixeira sob a
mesa, nada que lembrasse atividades de escritório, rascunhos amassados, uma
cópia xerox sem serventia ou algo do gênero.
“A Tia”, era assim que a chamavam, talvez por não saberem com certeza
seu nome. Diziam que ela estava ali desde que a empresa tinha sido fundada, há
muito muito tempo, era quase um patrimônio. Diziam que tinha tempo de sobra
para se aposentar, mas que não o fazia porque não queria ficar em casa, lidando
com o marido doente e demente, entrevado e louco. A versão oposta dizia que
havia pouquíssimo tempo que ela estava ali, que na verdade nunca havia
trabalhado na vida, que levava uma vida de madame, e que, graças a um revés da
sorte, o marido ficara doente e louco, perdera tudo, o que obrigou-a a dar duro
todo dia. Justificavam o fato de ser ali, justo naquela empresa, porque o
marido tinha sido muito amigo do pai do atual diretor, etc. etc. Havia ainda
uma pequena variante da história, que afirmava que primeiro o marido perdera
tudo, indo à falência, e só depois ficara doente e louco. Mas, ao certo certo,
ninguém sabia.
Ninguém pedia-lhe nada, nem a mandava fazer coisa alguma. Nem ela pedia nada, nem mandava em ninguém, exceto as eternas reclamações do costume, sempre votadas à copeira e à faxineira. Quando não ia, ligava pontualmente, avisando. Geralmente, estava em algum velório, ou visitando parentes muito doentes que, pouco tempo depois, infalivelmente morriam. E ela avisava. “Lembra daquele parente meu, que estava muito mal? Pois é, o velório...”. E dias depois: “A missa de sétimo dia...”. As más-línguas diziam que ela já havia “matado” – assim mesmo, entre aspas – todos os parentes, e depois passaria a “matar” os amigos dos parentes, e que em breve “mataria” os parentes dos amigos, e depois, talvez, os amigos dos parentes dos amigos ou, quem sabe, os parentes dos amigos dos parentes. Inacreditavelmente, porém, o marido nunca morria.
Um dia, subitamente, a empresa foi vendida. O diretor nem sequer
avisara. Não houve despedidas nem transmissão do cargo ao novo ocupante. Nada.
Era por volta de umas quatro horas da tarde quando o diretor abriu a porta de
sua sala, em mangas de camisa, e disse à secretária que precisava “dar uma
saidinha”. Deixou o paletó pendurado na cadeira, atrás da imponente mesa de
mogno, e não voltou mais. Os funcionários souberam da venda da empresa pelos
jornais. Antes de assumir, o novo diretor mandou publicar, também nos jornais,
a demissão dos chefes de todas as seções, bem como as respectivas novas
nomeações. Também tivera o cuidado de dispensar sumariamente os funcionários de
apoio – copeiras, faxineiras, ascensoristas, mensageiros e seguranças –,
substituindo-os prontamente por outros. Ninguém percebeu que ela também não
aparecia mais. Absolutamente sem serventia, a mesa, com seus papéis inúteis e
quinquilharias decorativas, continuava intocada. Ninguém a ocupava, ninguém
reivindicava o espaço ocupado por ela – um bom espaço, entre a janela e um
armário enorme, sempre fechado, que ninguém sabia para que servia ou o que
guardava. E ninguém também parecia se importar. Até que houve uma ordem para a
compra de móveis novos, uma política de modernização do atual diretor.
Em um dia previamente determinado, nenhum funcionário foi trabalhar. Os
homens do serviço de manutenção abriram as salas e foram retirando as mesas
velhas, enrugadas e desiludidas, antigos armários carrancudos, arquivos
desmemoriados e cadeiras capengas, que eram colocados no elevador de serviço e
despachados para um caminhão lá na rua. A mesa cheia de quinquilharias e papéis
inúteis, a imensa cadeira giratória de espaldar alto e um armário preto, trancado e
pesado, que ficavam a um canto perto de uma das janelas da sala do sexto andar,
deram mais trabalho. “Deviam ter esvaziado isso aqui, pô!”, reclamou um dos
homens. Os outros, suados e sedentos, só pensavam em se livrar daquilo o mais depressa
possível. Por isso, empilharam de qualquer jeito dentro das salas os móveis
novos, mesas, cadeiras, armários, alguns ainda envoltos em plástico-bolha e papelão,
fecharam tudo e foram embora.
No dia seguinte à mudança, os funcionários tiveram bastante trabalho.
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