quinta-feira, 24 de novembro de 2022

A arrumação

Isabel Pires

Manuela passava o esmalte cor-de-rosa nas unhas dos pés e das mãos e esperava secar. Os pés de Manuela eram delicados, finos e brancos. Manuela cuidava muito bem deles, os seus pequenos pés transparentes de tão brancos. E também das mãos, embora estas não fossem tão delicadas e leves como os pés. E dos cabelos curtos e negros, lavados três vezes por semana com shampoo neutro. Esmalte, ela passava toda sexta-feira à tarde, sentada com os apetrechos na pequena sala de visitas, escutando música enquanto esmaltava suas dez unhas aparadas e limpas.

A avó de Manuela dizia que ela era preguiçosa. Manuela não ligava. A irmã mais velha de Manuela trabalhava de lua a lua numa padaria do bairro – levantava de madrugada e voltava para casa noite feita, as estrelas todas no céu. Manuela cuidava da casa e da irmã mais nova, enquanto a mãe trabalhava no posto de saúde da prefeitura. Mais cedo ou mais tarde, a mãe de Manuela ia precisar fazer uma operação.

— Pois bem, quero ver o que vai virar essa casa quando Zuca for se operar – dizia a avó de Manuela, enfiando a cara larga pela janelinha da porta.

Constatando a preguiça da neta, saía resmungando e arrastando os pés até sua casinhola no oitão da rua, onde se isolava do mundo com sua televisão e suas toalhinhas rendadas.

— Não quero vagabunda nenhuma aqui – dizia ela, batendo as portinholas e aferrolhando bem.

Na meia-escuridão da saleta, iluminada apenas pelo vão do pequeno corredor que dava para a cozinha e pelos buracos das goteiras nas telhas, a velha sorvia em mornos goles seu chá lento de fim de tarde, acompanhado de uns biscoitinhos especiais, vindos da capital.

Manuela dava de ombros. Não ligava, de fato, para as coisas da avó.

— É da velhice – dizia ela, sem se preocupar com coisa alguma no mundo.

A única coisa que a preocupava de verdade era sua irmã caçula, desobediente e trabalhosa, uma verdadeira peste. Manuela chegava na porta da rua e gritava pela outra, chamando-a para arrumar a cozinha, depois do almoço. A menina demorava a aparecer, em suas vadiagens pela vizinhança. Vinha cabreira, com medo de Manuela.

— Tomara que te botem pra fora, peste.

Manuela ameaçava com o chinelo, mas a menina dava uma pirueta no ar e se safava, sempre.

Manuela brigava muito com essa irmã caçula, mas gostava muito dela. Virava uma fera, o pescoço inchado e vermelho, quando sabia que alguma vizinha atrevida ameaçara bater na irmã.

— Pois ela que dê na menina, pra ver uma coisa!

Em tudo o mais, Manuela era calma, indolentemente calma. E todas as sextas-feiras, à tarde, depois de passar esmalte nas unhas dos pés e das mãos, Manuela sentava-se na soleira da porta, olhando a rua de casas iguais e coladas, irremediavelmente presas umas nas outras: uma porta, uma janela, uma porta, uma janela, uma porta...

Finalmente a mãe de Manuela foi para a capital se operar. Ia demorar muitos dias. E Manuela ficou, de vez, responsável pela casa e pela irmã mais nova.

Vez ou outra, em horas quietas do dia, a avó chegava à portinhola, espiando dentro da casa de Manuela. Saía balançando a cabeça e arrastando os pés, em eterna reprovação. Manuela, inocente, empilhava os pratos sujos na pia da cozinha, deixava as camas desfeitas, o pó sobre os móveis, o lixo se acumulando num canto do quintal.

A irmã mais velha chegava de noite da padaria e não encontrava comida pronta. Danava. Surrava a irmã caçula e se estendia no sofá da sala, enquanto esperava a água para o café ferver. Manuela ia enxugar as lágrimas da menina, passando as mãos brancas pelos cabelos cacheados da garota. Depois, iam sentar-se, esquecidas, na soleira da porta de entrada, vendo o movimento da rua transformada pela noite.

E o brinquedo prosseguia. Dormindo tarde, levantando tarde, fazendo comida tarde, acalentando horas infindas durante a tarde, Manuela brincava, séria, de dona de casa. Até que um dia lembrou-se de mudar a arrumação da casa. Pois donas de casa não costumavam mudar a arrumação da casa? Assim fazia sua tia de tempos em tempos, trocando e destrocando a máquina de costura, a mesa e o guarda-louças do seus lugares habituais. Afasta daqui, arreda dali, “cuidado que o pé da solto”, e pronto: magicamente a casa se renovava, em novos ângulos e cantos e sombras criados, trazendo novos fantasmas e segredos para velhos conhecidos móveis.

Olhando para o azul-ralo da parede da sala, Manuela calculou: daí a tantos dias, a volta da mãe. Até lá, se fazia necessária nova arrumação, a primeira já envelhecida, já sem gosto de novidade. Não, esperaria mais.

Era uma quinta-feira quando a rotina de dona de casa a enjoou de vez. Manuela decidiu: no outro dia, faria a arrumação.

A avó de Manuela chegou-se à porta, espiando como sempre. E surpreendeu-se: pedaços de papelão, terra, sapatos velhos, papéis amassados, tudo espalhado pelo chão. A vassoura atravessada no meio do corredor, os móveis atravancados pelo caminho.

— Jesus! O que essa doida está fazendo?

Apurando o olfato, a mulher sentiu o cheiro de queimado.

— Manueeeeeeeeeeelaaaa!

Manuela, com um pano atado à cabeça, avental protegendo as roupas da sujeira, surgiu, lívida, de uma das portas do corredor.

— Vó, corre aqui, me ajuda!

A avó, num arranco, quase botou a porta abaixo. Correu desabalada, se batendo pelo caminho nos móveis atravessados no meio da casa.

— Vó, é aqui – chamou inutilmente Manuela.

A avó foi direto para a cozinha, onde uma panela fumegava sobre o fogão. Apagou o fogo, atirando a panela empretecida no chão do terreiro. Depois, foi ver o que acontecia no quarto.

Manuela fungava, num esforço sobre-humano, tentando encaixar a cama num canto da parede.

— Sua maluca... – começou a avó.

Manuela interrompeu-a:

— Vó, pega desse lado aqui, que eu pego daqui, depois a gente levanta ela e desce de vez.

Assim fizeram. Mas à meia altura a cama estacionava, empacada, nem pra baixo, nem pra cima. Manuela forçava a descida, já sentindo raiva.

— Essa porcaria tem que descer.

— Não adianta, deixa isso pra lá, menina...

Manuela olhava com ódio a cama suspensa entre as paredes. O quarto, um quadrado escuro, tinha uma das paredes levemente inclinada para dentro. Impossível encaixar a cama naquele canto. Manuela analisou o problema, de testa enrugada.

— Só mandando serrar um pedaço da cama.

— Você tá doida? Quer matar Zuca?

Eram duas as camas no quarto, a dela e a da irmã caçula. A outra cama esperando do lado de fora. Manuela queria simplesmente trocá-las de posição, eternamente voltadas para a porta. Constatando a impossibilidade, conformou-se. Voltou as camas para os antigos lugares, contentando-se em trocar de posição os poucos móveis da sala e as camas do quarto que a mãe dividia com a irmã mais velha.

Retirou o lixo da casa, espanou os móveis. Tudo limpo, foi ver algo para comer, o almoço perdido, já tarde para iniciar outro.

— Vó, me arranja um pouquinho de comida?

A avó fez um prato caprichado e levou-o para Manuela, que o devorou, sôfrega. A irmã caçula, esta, não vendo sombra de comida, se convidou para almoçar na casa da vizinha. A irmã mais velha...

Mais tarde, a avó de Manuela foi buscar o prato e encontrou a neta esmaltando as unhas, o prato sujo em cima do sofá.

Com raiva de si mesma, entrou e pegou o prato.

— Peraí, vó, que eu vou lavar.

Mas a avó já ia saindo. Bateu a porta, marchando dura pela calçada e abanando mil vezes a cabeça. Ao dobrar a esquina, porém, refletiu:

— Pelo menos, tirou a lixaria da casa.

E refugiou-se na sua casinhola de porta-e-janela.

***

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