sábado, 3 de dezembro de 2022

Papagaio de papel

 

Isabel Pires

 

Seu nome era Carlos Eduardo. Mas somente para a professora do quarto ano. Para a molecada da rua era:

— Duda, traz a bola!

E Duda, nove anos incompletos de idade, disparava rua afora com a bola debaixo do braço, pois ele não sabia jogar bola. Se soubesse, levaria a bola chutando-a desde o quarto, que nem o Neco da dona Marta que, num desses ímpetos de grande jogador, acabou estilhaçando o vidro da janela da sala de casa. Dona Marta danou. E contou pro marido, que deu uma sova no Neco e fez a bola em tiras, com a faca de carne bem afiada.

Duda era muito cuidadoso. Morria de medo de quebrar o vaso chinês de dona Alzira – “Chinês!”, dizia ela, orgulhosa –, que nem sua mãe era, feito dona Marta era mãe do Neco. Dona Alzira era sua madrasta, mas era uma “boadrasta”, e vivia dizendo para as vizinhas:

— O Duda é um menino muito bonzinho! Não dá um pingo de trabalho!

E acrescentava:

— Não é que nem esses moleques atrevidos, que pulam o muro do quintal dos outros para apanhar fruta sem pedir licença! Duda, não! Duda é um menino de ouro!

Mesmo assim, apesar de tantos elogios, Duda tinha um cuidado danado ao passar pela sala de dona Alzira, a bola bem segura debaixo do braço.

Duda entregava a bola para os outros meninos e se sentava no meio-fio da calçada, gritando muito quando o Neco fazia uma daquelas brilhantes defesas. Porque o Neco, apesar de ter complexos de artilheiro, era sempre escalado como goleiro.

— Duda, vem jogar – chamava Neco.

Mas Duda não queria jogar bola. A paixão de Duda era mesmo papagaio. Dia de muito vento, lá estava ele, soltando seu papagaio feito cuidadosamente de papel de seda azul-claro.

— Mas, meu filho, assim ninguém vai ver o papagaio – dizia dona Alzira que, embora fosse apenas sua madrasta, insistia em chamá-lo de filho a toda hora: “Meu filho, já escovou os dentes?”. “Vem papá, filhinho”. “Já fez os exercícios, filho?”.

Duda já tinha feito os exercícios da escola, sim, e agora lá estava ele, todo feliz, soltando seu papagaio azul-claro, num céu mais azul-claro ainda.

— Basta saber que ele tá lá, meu papagaio tão azulzinho.

Num dia de muito vento e muito sol, lá estava Duda empinando seu papagaio azul-claro, num céu também claro, com a camisa azul – mas da cor dos seus olhos, azuis escuros – aberta no peito queimado de sol. O papagaio subia cada vez mais alto, fazendo o entusiasmo de Duda crescer.

— Mas como esse menino sabe onde está o papagaio? – comentava uma vizinha, apertando os olhos para o azul do céu.

De repente, o papagaio azul-claro de Duda começou a perder altura. E foi caindo, caindo. Urgia fazer algo. A linha era muita, e não adiantava enrolá-la, pois o papagaio – tão bonito que ficou esse! – caía cada vez mais rápido. Numa tentativa de suster seu papagaio nas alturas, Duda desceu a rua correndo, correndo, mais depressa, mais depressa. Ah! Agora, sim! Seu papagaio não ia mais cair. Só mais um pouco.

— Corre! Corre! – gritava a molecada da rua, que por um minuto parara a pelada para torcer por Duda.

Em seguida ficaram todos petrificados. Primeiro, com o baque. E depois com a visão de Duda estendido no chão, a camisa tão azul tingindo-se rapidamente de vermelho. O dono do carro, com as mãos na cabeça, ao lado do corpo inerte do menino no chão.

— O quê que eu faço? Por favor, me ajudem. Vocês viram, eu não tive culpa, tive?!

E lá no chão, bem ao lado da bola que, de raiva, o Neco havia chutado longe, estava Duda, a camisa cada vez mais empapada.

Lentamente, o papagaio azul-claro veio descendo, agora vem visível de encontro ao casario, e pousou junto ao corpo do menino. Podia-se ver uma das pontas do papagaio de papel tingida de vermelho, quando tocou de leve na camisa azul.


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