Isabel
Pires
A criançada corria
solta pelo terraço. A hora do parabéns se aproximava e as mães, celulares em
punho para as fotos, tentavam reunir os pequenos em volta da mesa dos doces
para cantarem para o aniversariante. No meio da mesa, o bolo de três camadas
reinava soberano, decorado em forma de uma cabeça sorridente de urso panda.
—
Cinco
anos de idade, sim senhor!
O avô tentou pegar o menino
no colo, mas ele fugiu, correndo atrás do amiguinho.
Dois coroas, a um
canto, jogavam conversa fora, talvez somente esperando a hora de irem embora. Um
deles comentou:
—
Quando vou a aniversário de criança, sempre me lembro de um que fui, há muito
tempo atrás. Naquele tempo, nem tinha celular.
O
outro interessou-se. Gostava de histórias antigas, dos tempos que, agora,
pareciam até de outro mundo. Esticou-se na cadeira, para ouvir melhor. O primeiro pegou o copo de cerveja já quase quente, e começou a narração.
“Naquela noite eu havia
planejado ficar em casa comigo mesmo, descansando e descansado. Mas a gente nem
sempre faz o que gostaria. Os outros estão constantemente decidindo, direta ou
indiretamente, a nossa vida. E acabamos, sem mais nem menos, envolvidos em
coisas que não nos diz respeito, mas que terminam nos envolvendo e afetando.
Foi assim naquela noite.
“Como eu ia dizendo, eu
estava absolutamente só em casa, e queria permanecer assim. Por isso, fiquei
bem chateado quando ouvi a campainha.
“Estavam me chamando às
pressas no apartamento do andar de cima. Eu sabia que ia haver por lá uma
festinha de aniversário, dessas que reúnem alguns vizinhos e uns poucos
parentes. Era anos da filha caçula do casal. O recado era para eu aparecer por
lá para ajudar com as fotos. Afinal, eu era fotógrafo.
“Fiquei muito
aborrecido mesmo, mas, enfim, não custava nada ir até lá. E me vi, a contragosto,
subindo as escadas com a minha velha máquina fotográfica a tiracolo.
“Quando entrei na sala,
fiquei surpreso com duas presenças que não esperava encontrar no mesmo recinto:
Janete e Zilda. Eram duas das minhas vizinhas. Todo mundo sabia que elas não se
davam bem, e alguém havia comentado comigo que Janete havia dito, sobre a
festinha: ‘Se ela for, eu não vou’.
“Mas estavam lá, as
duas. Zilda, como sempre, muito quieta, muito calada. Janete, por sua vez,
conversava o tempo todo, ora com uma ora com outra pessoa, se mexendo muito no
sofá. E de vez em quando olhava de esguelha para Zilda.
“Cantamos o ‘Parabéns
pra você’, tirei muitas fotos, que somente seriam reveladas depois...”
—
Não era como hoje, que a gente já vê as fotos na hora, ali, no celular... –
atalhou o ouvinte.
—
Pois é, veja como evolui a tecnologia – comentou o narrador –. Já teve até um
tempo em que fotografia era uma arte...
E
continuou a narrativa, após beber um gole da cerveja.
“Fotos
tiradas, já ia me retirar, quando o anfitrião insistiu para eu
ficar mais um pouco ‘bebendo uma cervejinha’. Fiquei. Afinal, já tinham mesmo
acabado com meus planos de paz e sossego. Entre uma conversa e outra, pude
observar o comportamento daquelas duas.
“Janete fingia o tempo
todo não estar vendo Zilda. Mas Zilda parecia que, de fato, não via mesmo
Janete, nem ninguém mais, tão alheia estava à tudo.
“Zilda era jovem e
muito bonita. Mas tinha fama de esquisita. Tratava bem a todos no prédio,
sempre simpática, mas tinha manias estranhas. Nunca sorria, falava pouco.
Estava sempre séria, talvez pensando em alguma coisa muito profunda.
—
Também tenho uma vizinha assim, bem esquisita – atalhou novamente o ouvinte –.
São difíceis de lidar, hein?
O outro continuou,
dessa vez ignorando o comentário:
“E naquela noite Zilda
estava mesmo bem esquisita. Olhava profunda e fixamente na direção da lâmpada,
no teto, sem reparar em nada à sua volta.
“Para fazer o arranjo
de balões e fitas de papel crepom, que pendia do teto com a faixa de ‘Parabéns’,
haviam retirado o globo que envolvia a lâmpada e os fios elétricos estavam à
mostra, horríveis, ajudando a segurar o arranjo de balões. E era naquela
direção que Zilda olhava, com seu olhar profundo.
“E de repente, sem
ninguém esperar nem saber como, voaram balões para todos os lados. Despencaram
os fios elétricos. Um dos fios, preso ainda à corrente elétrica, foi na direção
de Janete, sentada no sofá. Um grito agudo se fez ouvir e alguém desceu
correndo as escadas para desligar a chave geral do prédio. Mas era tarde.
Janete morreu eletrocutada.
— Nossa! Que tragédia! – interrompeu novamente o coroa, abanando a cabeça – E a outra, a esquisita? Como era mesmo o nome dela?
“Depois de
tanto tempo, ainda me lembro perfeitamente de tudo, e não consigo tirar da mente aquele olhar
fixo da Zilda nos fios elétricos. Aquele olhar tão profundamente fixo. Pode ser
apenas imaginação. Mas, mesmo assim, não consigo deixar de me perguntar: será
que Zilda podia imaginar ou adivinhar o que iria acontecer? É bem verdade que
ela, como todos que estavam naquela festinha, ficou chocada com o acidente. Mas
nunca se sabe...”
—
Vamos, já estão cantando o Parabéns pra Você.
Os dois coroas levantaram-se, e foram caminhando lentamente em direção à mesa cercada de crianças e mães fotógrafas de celulares.
No caminho, um deles, o
ouvinte, comentou, pensativo:
—
É verdade. Coisas estranhas acontecem.
—
Sim. Coisas
inexplicáveis e inesperadas, e que acabam nos envolvendo, mesmo sem a gente
querer.
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