quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Na próxima primavera

 

Isabel Pires

 

Ela penteava com cuidado os cabelos espessos e verdes. Começou vagarosamente uma trança, alisando os cabelos esverdeados. Antigamente eles tinham sido dourados e ralos. Mas isso foi logo quando ela nasceu, há muito tempo. À medida em que foi crescendo, seu cabelo foi ficando verde, adquirindo uma tonalidade verde-escuro, de musgo. Pelo que se lembrava, nunca o havia cortado, exceto daquela vez...

... a tesoura tinha um brilho metálico. Cortou a unha do indicador. Doeu. Grande demais, a tesoura. Largou-a no chão, atenta ao som frio do aço caindo no piso do quarto. Dentro do retângulo claro do sol no assoalho. De um lado, a tesoura era uma pequenina poça de líquido no chão, com um sol miniaturizado lá no fundo no fundo no fundo. Do outro lado, a lâmina era um pedaço escuro, sem reflexo, sem sol. Sem vida. Aproximou-se do objeto aberto em xis no chão. O cabelo batia no rosto. Ela, debruçada sobre o retângulo que prendia a tesoura. E o cabelo verde...

(a merenda grudava no céu da boca, sem conseguir engoli-la. Não enxergava o pátio cinzento e sombreado do recreio. As figuras desmanchavam-se à sua frente, para se refazerem em seguida, enormes e impiedosas. O cimento do pátio parecia uma onda cinzenta que ameaçava engolir a roda de saias pregueadas e calções colegiais. Mas eles se recompunham mais firmes, girando e entoando a medonha cantilena: “Cabelo verde! Cabelo verde!”. Ia gritar “Meu cabelo não é verde!”, quando o som agudo e ensurdecedor susteve por segundos sua respiração, aliviando-a. Acabara o recreio)

... batia no rosto. A tesoura aberta brilhando ao sol. Pegou-a, ávida. O aço estava morno, sem pressa. Mas não havia muito tempo. Seguiu para o quarto grande e sentou-se compenetrada na banqueta macia da penteadeira. Afastou com a mão livre os potes de creme e estojos de maquiagem espalhados pela superfície lisa do móvel. A escova de cabelo deslizou sobre o verniz. Desprezou-a. Tec tec tec tec tec tec. O som metálico golpeava o final de tarde, assustando as sombras que espreitavam dos cantos. Olhou-se no espelho. O cabelo não mais caía-lhe desordenado pelo rosto. E os olhos, escuros e penetrantes, mostravam-se agora inteiros. Mas o cabelo continuava verde. Ainda mais verde. A tesoura, descansando sobre a penteadeira da mãe, tinha a lâmina úmida e pegajosa das hastes de cabelo densamente verde, que agora estavam úmidas e pegajosas, como folhas verdes trituradas.

Terminou finalmente a trança grossa, amarrando a ponta com uma tira de pano. Ajeitou-a com cuidado, colocando-a para um lado. Aspirou satisfeita o aroma que rescendia do cabelo verde recém-lavado. Havia que manter as raízes úmidas e vigorosas. De vez em quando, podava as pontas sem seiva. A dor se fez quase presente de novo, atravessando o tempo. Apanhara muito naquele dia. E recordou a nitidez do chinelo vibrando em suas nádegas. Foi chorar na cama da avó abraçada à boneca de pano. Depois, queimou a boneca. Apanhou de novo.

Mas seus cabelos verdes cresceram outra vez, selvagemente, verde-escuros e úmidos. Alisou com suavidade a trança domada e bem tratada que descia-lhe pelo ombro. Sorriu. Tocou o pé no ladrilho frio da varanda, arrepiada com o vento incômodo. Encolheu-se dentro do agasalho. Sentia frio nas raízes do cabelo, devido à constante umidade. Era-lhe penoso o inverno. Abandonou a varanda, penetrando na casa escurecida. Fechou as janelas e acendeu as lâmpadas. A sala agora era uma estufa quente e úmida. Sentou-se confortavelmente no canto mais canto, e inevitavelmente mais úmido, do sofá-estufa, e soltou os cabelos, desatando a fita frouxa que pendia da ponta da enorme trança. As ramagens verde-escuras espalharam-se pelo encosto do sofá. Ela fechou delicadamente as pálpebras, respirando pela boca entreaberta. E ficou esperando a primavera, quando dos seus cabelos, contrastando com o verde escuro e profundo, as pequeninas flores brancas desabrochariam, abundantes. 

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