Isabel
Pires
Ela
penteava com cuidado os cabelos espessos e verdes. Começou vagarosamente uma
trança, alisando os cabelos esverdeados. Antigamente eles tinham sido dourados
e ralos. Mas isso foi logo quando ela nasceu, há muito tempo. À medida em que
foi crescendo, seu cabelo foi ficando verde, adquirindo uma tonalidade
verde-escuro, de musgo. Pelo que se lembrava, nunca o havia cortado, exceto
daquela vez...
...
a tesoura tinha um brilho metálico. Cortou a unha do indicador. Doeu. Grande
demais, a tesoura. Largou-a no chão, atenta ao som frio do aço caindo no piso
do quarto. Dentro do retângulo claro do sol no assoalho. De um lado, a tesoura
era uma pequenina poça de líquido no chão, com um sol miniaturizado lá no fundo
no fundo no fundo. Do outro lado, a lâmina era um pedaço escuro, sem reflexo,
sem sol. Sem vida. Aproximou-se do objeto aberto em xis no chão. O cabelo batia
no rosto. Ela, debruçada sobre o retângulo que prendia a tesoura. E o cabelo
verde...
(a
merenda grudava no céu da boca, sem conseguir engoli-la. Não enxergava o pátio
cinzento e sombreado do recreio. As figuras desmanchavam-se à sua frente, para
se refazerem em seguida, enormes e impiedosas. O cimento do pátio parecia uma
onda cinzenta que ameaçava engolir a roda de saias pregueadas e calções
colegiais. Mas eles se recompunham mais firmes, girando e entoando a medonha
cantilena: “Cabelo verde! Cabelo verde!”. Ia gritar “Meu cabelo não é verde!”,
quando o som agudo e ensurdecedor susteve por segundos sua respiração,
aliviando-a. Acabara o recreio)
...
batia no rosto. A tesoura aberta brilhando ao sol. Pegou-a, ávida. O aço estava
morno, sem pressa. Mas não havia muito tempo. Seguiu para o quarto grande e
sentou-se compenetrada na banqueta macia da penteadeira. Afastou com a mão
livre os potes de creme e estojos de maquiagem espalhados pela superfície lisa
do móvel. A escova de cabelo deslizou sobre o verniz. Desprezou-a. Tec tec tec
tec tec tec. O som metálico golpeava o final de tarde, assustando as sombras
que espreitavam dos cantos. Olhou-se no espelho. O cabelo não mais caía-lhe
desordenado pelo rosto. E os olhos, escuros e penetrantes, mostravam-se agora
inteiros. Mas o cabelo continuava verde. Ainda mais verde. A tesoura,
descansando sobre a penteadeira da mãe, tinha a lâmina úmida e pegajosa das
hastes de cabelo densamente verde, que agora estavam úmidas e pegajosas, como
folhas verdes trituradas.
Terminou
finalmente a trança grossa, amarrando a ponta com uma tira de pano. Ajeitou-a
com cuidado, colocando-a para um lado. Aspirou satisfeita o aroma que rescendia
do cabelo verde recém-lavado. Havia que manter as raízes úmidas e vigorosas. De
vez em quando, podava as pontas sem seiva. A dor se fez quase presente de novo,
atravessando o tempo. Apanhara muito naquele dia. E recordou a nitidez do
chinelo vibrando em suas nádegas. Foi chorar na cama da avó abraçada à boneca de pano. Depois,
queimou a boneca. Apanhou de novo.
Mas seus cabelos verdes cresceram outra vez, selvagemente, verde-escuros e úmidos. Alisou com suavidade a trança domada e bem tratada que descia-lhe pelo ombro. Sorriu. Tocou o pé no ladrilho frio da varanda, arrepiada com o vento incômodo. Encolheu-se dentro do agasalho. Sentia frio nas raízes do cabelo, devido à constante umidade. Era-lhe penoso o inverno. Abandonou a varanda, penetrando na casa escurecida. Fechou as janelas e acendeu as lâmpadas. A sala agora era uma estufa quente e úmida. Sentou-se confortavelmente no canto mais canto, e inevitavelmente mais úmido, do sofá-estufa, e soltou os cabelos, desatando a fita frouxa que pendia da ponta da enorme trança. As ramagens verde-escuras espalharam-se pelo encosto do sofá. Ela fechou delicadamente as pálpebras, respirando pela boca entreaberta. E ficou esperando a primavera, quando dos seus cabelos, contrastando com o verde escuro e profundo, as pequeninas flores brancas desabrochariam, abundantes.
***
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