Isabel
Pires
Sob a leve camada de
poeira, os móveis adquiriam um tom opaco. Aos poucos, no ar parado, o retângulo
alaranjado de sol no chão ia ganhando espaço, se avolumando. Sentada no sofá,
enlaçando as pernas com os braços, ela contou as badaladas do relógio. Uma. Duas.
Três. Quatro. Atirou uma das pernas para cima, furando o ar, e se colocou de
pé, atravessando o retângulo alaranjado cheio de partículas de poeira suspensas
no ar, e abriu mais a janela. Voltou-se, falando em voz alta:
—
Deo, ô Deo, tem um suco aí nessa geladeira?
Ninguém
respondeu.
Ela
foi em direção à cozinha mas, à meio caminho, estacou o passo, sentando-se numa
das cadeiras da enorme mesa, na sala de jantar.
—
Deolinda, o que você está fazendo nessa cozinha às quatro horas da tarde, hein?
Tá preparando um lanche pra mim?
Pausa.
—
Não? – riu meio sem vontade. – Ah, já sei. Vai descascar batatas, acertei?
Um
ruído quase imperceptível vinha da cozinha. Ela levantou-se e chegou até a
porta.
—
Você agora está fazendo greve de silêncio comigo, é isso, Deo? – fez um muxoxo.
A
cozinheira ergueu os olhos, interrompendo por instantes o seu afazer.
—
Ah, dona Josefina. A senhora sabe que a patroa não gosta de lhe ver aqui na
cozinha.
—
Dona? Senhora? Que história é essa, Deo? Você sabe que não suporto essas
frescuras. E não me chame de Josefina que eu não gosto. Você sempre me chamou
de Jô... – Olhou para o trabalho da cozinheira. – O que é isso? – Avançou um
passo e meteu o dedo na tigela cheia de massa. – Oba! Bolo para o lanche.
—
Tira a mão daí. – Deolinda deu um tapa amistoso na mão da outra. Não é bolo
não, nem é para o lanche.
—
Argh! Massa salgada! – Jô fez uma careta, enquanto dava uma lambida no dedo
encharcado de massa crua. Limpou o dedo na toalha da mesa da cozinha. – Queria
me pregar uma peça com essa massa salgada, Deo?
Deolinda
achou graça.
—
Pregar peça? Que ideia. Essa massa é para uma...
—
Psiu! – Fez a moça, o indicador sobre os lábios. No rosto, um ar atento.
—
O que foi? – perguntou Deolinda com voz angustiada.
—
Ouço barulho no jardim.
—
Barulho no jardim? – uma expressão de alarme surgiu no rosto da cozinheira.
—
Agora tá ficando cada vez mais perto. Ouça. – A voz dela saía sussurrada,
enquanto os olhos mexiam-se inquietos nas órbitas. – Passos! E estão vindo na
direção da casa. – Olhou para a cozinheira, franzindo as sobrancelhas.
—
Passos... E agora? – A voz de Deolinda soou entrecortada de susto.
Ouviu-se
o estalido do trinco da porta da sala de jantar que dava para o jardim.
Deolinda levou a mão à boca, prendendo o grito, os olhos arregalados. Jô
encarou-a e, de repente, explodiu na risada. Curvou-se, encostando a boca no
ouvido da outra.
—
Ô Deo, será que você não reconhece esses passos dentro de casa?
Um
rosto sério sob um penteado sóbrio apareceu na porta por cima do ombro de
Josefina.
—
De novo aqui na cozinha? – A voz, dura, dirigiu-se à cozinheira. – Isto é a
massa da torta do jantar?
—
É, sim senhora.
—
Vê se faz tudo como ensinei. Vou tomar um banho e venho controlar o resto,
senão não tem condições de sair um jantar decente. – Lançou um olhar à
Josefina. – Vamos ter visita para o jantar.
O
rosto empertigado desapareceu da porta da cozinha. As duas ouviram os passos
subindo a escada. Aguardaram até que se extinguissem.
—
Vamos ter visita para o jantar! Vamos ter visita para o jantar! Ouviu,
Deolinda? Faça tudo direito porque vamos ter visita para o jantar!
Deolinda
abanou a cabeça, voltando a bater a massa com a colher de pau.
—
Se ela escuta... – Sorriu. – Agora é melhor você sair daqui, senão a patroa vai
ter um piripaque quando voltar.
Jô
ficou séria. Apanhou o pano de prato sobre a mesa, girando-o no ar e ameaçando
atirá-lo na cabeça da cozinheira. O pano de prato voou e foi cair dentro da
pia. A moça enfiou novamente o dedo na massa, levando-o à boca. Estacou a mão,
o dedo espetado no ar.
—
Oh! Esqueci. É massa salgada. – Limpou o dedo na toalha da mesa e saiu da
cozinha.
***
— Deolinda!
Uma. Duas. Três. Quatro. Quatro badaladas fatais, como pedras atiradas uma a
uma no fundo de um poço. Ao cair, fazem barulho, protestando. Anunciando a sua
chegada lá embaixo. Quatro horas. Quatro horas da tarde, numa tarde ardente e
cáustica. As coisas parecem querer pegar fogo a qualquer instante. Tudo. Numa grande
bola avermelhada. Quente demais, essa casa. E sem ar. Um mausoléu, cheirando a
mofo. Cheiro de coisa velha cuidadosamente guardada. A um leve sopro,
desmorona-se tudo sob uma nuvem de pó. Ruínas, cacos. E a poeira cobrindo tudo,
sufocando tudo. Preciso de ar. Mas não existe ar no mausoléu mofado.
O
céu parece uma fita azul, seca e limpa, cobrindo o amontoado de paredes brancas
e telhados vermelhos do casario de aspecto barroco. Rente ao canteiro, uma fila
de formigas marcha para o seu inexorável destino de formiga. As folhas das
plantas, petrificadas, não produzem mais oxigênio. Não existe mais ar sobre a
face da Terra. Um líquido, por favor, senão morro sufocada.
—
Deo, ô Deo, tem um suco aí nessa geladeira?
Até
as cadeiras parecem sem ar nessa tarde quente. E cansadas.
—
Deolinda, o que você está fazendo nessa cozinha às quatro horas da tarde, hein?
Tá preparando um lanche pra mim?
Cadeiras
cansadas... Essa é boa. Eu é que estou cansada dessa casa velha...
—
Não? Ah, já sei. Vai descascar batatas, acertei?
É
bom olhar para Deolinda. Parece um tronco salvador. Estou me afogando, e vejo
um imenso tronco à minha frente. Agarro-me a ele, e é Deolinda, transformada em
tronco de árvore.
—
Você agora está fazendo greve de silêncio comigo, é isso, Deo?
Deolinda
me salva, sempre. E posso enfim respirar aliviada. Mas ela me chamou de quê?
—
Dona? Senhora? Que história é essa, Deo? Você sabe que não suporto essas
frescuras. E não me chame de Josefina que eu não gosto. Você sempre me chamou
de Jô... O que é isso? Oba! Bolo para o lanche.
Que
delícia. Pelo menos vamos ter um bolinho hoje nessa casa. Tomara que seja de
chocolate.
—
Argh! Massa salgada! Queria me pregar uma peça com essa massa salgada, Deo?
Mas
agora que estou salva, me transformo em algoz da minha própria salvadora. Ingrata.
Ou vingativa, por ela não feito um bolo de chocolate para mim.
—
Psiu! Ouço barulho no jardim.
Pobre
Deolinda. Seu rosto bom transpira medo. E eu me sinto infinitamente má. Mas
peço de novo socorro. Os passos se aproximam, acelerados.
—
Agora tá ficando cada vez mais perto. Ouça. Passos! E estão vindo na direção da
casa.
A
fera no meu encalço. Socorro, Deolinda! Socorro! Mas Deolinda desta vez não me
salva. Está longe, fora de alcance, o tronco protetor.
—
Ô Deo, será que você não reconhece esses passos dentro de casa?
Sinto o hálito da fera às minhas costas: “Vamos ter visita para o jantar”.
—
Vamos ter visita para o jantar! Vamos ter visita para o jantar! Ouviu,
Deolinda? Faça tudo direito porque vamos ter visita para o jantar!
O
jantar da fera. A fera banqueteando-se. O que servirá de recheio para essa torta?
A fera vai devorar a torta inteira, sem piedade, e dentro dela, meu coração
picadinho com cebola e alho. E é Deolinda quem vai fazer a torta de coração –
meu coração! – para o jantar. Vai rechear a torta com o meu coração e vai dar
para a fera comer. Mas Deolinda não tem culpa. Foi a fera quem mandou. Ninguém
pode desobedecer a fera. Nem Deolinda. Muito menos Deolinda, que cozinha tão
bem e que está fazendo uma torta de coração para o jantar, em vez de fazer um
bolo de chocolate.
—
Oh! Esqueci. É massa salgada.
***
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