Isabel Pires
O
apelido pegou: ele era o... Titica. Pelo menos na sua ausência, visto que, na
frente dele, os inimigos ainda não haviam criado coragem suficiente para
atirar-lhe na cara o xingamento. Mas era mesmo uma titica, o homem. Alguém
falou, referindo-se talvez à sua pouca estatura, e ficou: Titica.
No
trabalho, onde ocupava um posto de gerente, colecionara desafetos ao longo dos
seus quinze anos de total subserviência aos mandachuvas da empresa. Tanto que
também haviam tentado impingir-lhe a alcunha de “Lambe-botas”. Contudo, foi
“Titica” que pegou, tal foi a imediata identificação entre o objeto denominado
e o nome que o designava. No entanto, tinha lá os seus fãs: meia dúzia de gatos
pingados que seguiam à risca o seu exemplo e as suas instruções. Uns cagões,
diziam uns. Bajuladores, diziam outros.
Titica
colecionava desafetos na mesma medida em que sua fama de boa-bisca crescia e se
espalhava. As opiniões eram quase unânimes, não fossem aqueles fãs de última
hora... Como eram minoria, porém, esses fãs não eram, de modo algum, levados a
sério. E falava-se mal abertamente de Titica. Na sua ausência, é claro.
Contavam-se piadas, rogavam-lhe as mais injuriosas pragas e infâmias. Todos
pareciam querer vê-lo morto. À exceção, é lógico, dos fãs mais ardorosos. Até
mesmo o gerente substituto, escolhido a dedo pelo próprio Titica, queria vê-lo
mortinho da silva, e era o primeiro a espalhar suas histórias de malvadezas e
perseguições.
Uma
peste, enfim, aquele Titica.
Alheio
aos comentários, entretanto, o gerente seguia exercendo soberana, quase que
divinamente, a sua tirania, indiferente àquele zé-povinho. Só não engolia o tal
gerente substituto, este, verdadeira pedra no seu sapato, a roubar-lhe um pouco
do seu infinito poder.
Por
sua vez, Titica maldizia o substituto, já arrependido de tê-lo colocado no
cargo, e, também, queria a sua morte. Aos fãs, dizia horrores do outro.
Que
nem ligava. Ficava sabendo, de um jeito ou de outro, e dava de ombros,
esbanjando um largo sorriso, satisfeito por ter, enfim, conseguido “cutucar o
bicho”.
À
hora do almoço, quando todos se reuniam no refeitório, o assunto era
invariavelmente o Titica, que para muitos tornou-se tema das mais grotescas
anedotas. Estava-se tornando uma lenda viva, o homem.
Até
que um dia a coisa toda caiu-lhe nos ouvidos. Pois não é que alguma daquelas
almas, não se sabe ao certo se bondosa ao extremo ou por demais impiedosa, não
poupou-lhe sequer um ponto, sequer uma vírgula? Contou tudo, tintim por tintim.
Que queriam vê-lo morto, que lhe desejavam mal, que lhe rogavam pragas, que lhe
juravam vingança, que faziam-lhe chacotas mil e, finalmente, que o estavam
chamando de...
À
esta altura, seu informante refreou-se, quase que por instinto. Como dizer ao
Titica que o estavam chamando de “titica”?
O
homem desconfiou, quis saber o que era. O outro enrolou o quanto pôde, e
finalmente saiu-se com esta: que o gerente substituto ficava sabendo “de tudo”.
De tudo? Sim, tudinho. E em bom português, o outro esclareceu: que o substituto
sabia que ele falava mal dele. Pronto, era isto.
Titica
arqueou as sobrancelhas, apreensivo. Naquela noite, não dormiu, rolando insone
com a pergunta a latejar-lhe os nervos: quem seria o “leva-e-traz”? Desconfiou
de muitos, mas não chegava a qualquer conclusão.
No
dia seguinte, chegou ao trabalho meia hora atrasado, indo desculpar-se
imediatamente com o seu superior. Que quase nem reparou em Titica.
Autorizou-lhe logo a saída da sala, pouco interessado nas desculpas do outro.
Titica
veio andando pelo corredor, a raiva subindo-lhe no peito. Sentia-se até maior,
mais poderoso. Abriu a porta do seu departamento e deu de cara com o contínuo,
um garoto franzino e novato no serviço. Titica quase agarrou-lhe o pescoço,
quando perguntou se “por acaso” ele, contínuo, sabia quem andava contando ao
gerente substituto que ele falava mal dele.
O
contínuo, completamente surpreso e confuso, estranhou o teor da pergunta. Com
simplicidade, respondeu que nunca ouvira falar que alguém falava mal de alguém
ali na empresa. Depois, pensando na pergunta do gerente, ficou matutando,
matutando. E com seus botões, perguntou-se: “o que será que tem na cabeça uma
pessoa que faz uma pergunta dessas?”.
***
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