segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Titica

 Isabel Pires

 

O apelido pegou: ele era o... Titica. Pelo menos na sua ausência, visto que, na frente dele, os inimigos ainda não haviam criado coragem suficiente para atirar-lhe na cara o xingamento. Mas era mesmo uma titica, o homem. Alguém falou, referindo-se talvez à sua pouca estatura, e ficou: Titica.

No trabalho, onde ocupava um posto de gerente, colecionara desafetos ao longo dos seus quinze anos de total subserviência aos mandachuvas da empresa. Tanto que também haviam tentado impingir-lhe a alcunha de “Lambe-botas”. Contudo, foi “Titica” que pegou, tal foi a imediata identificação entre o objeto denominado e o nome que o designava. No entanto, tinha lá os seus fãs: meia dúzia de gatos pingados que seguiam à risca o seu exemplo e as suas instruções. Uns cagões, diziam uns. Bajuladores, diziam outros.

Titica colecionava desafetos na mesma medida em que sua fama de boa-bisca crescia e se espalhava. As opiniões eram quase unânimes, não fossem aqueles fãs de última hora... Como eram minoria, porém, esses fãs não eram, de modo algum, levados a sério. E falava-se mal abertamente de Titica. Na sua ausência, é claro. Contavam-se piadas, rogavam-lhe as mais injuriosas pragas e infâmias. Todos pareciam querer vê-lo morto. À exceção, é lógico, dos fãs mais ardorosos. Até mesmo o gerente substituto, escolhido a dedo pelo próprio Titica, queria vê-lo mortinho da silva, e era o primeiro a espalhar suas histórias de malvadezas e perseguições.

Uma peste, enfim, aquele Titica.

Alheio aos comentários, entretanto, o gerente seguia exercendo soberana, quase que divinamente, a sua tirania, indiferente àquele zé-povinho. Só não engolia o tal gerente substituto, este, verdadeira pedra no seu sapato, a roubar-lhe um pouco do seu infinito poder.

Por sua vez, Titica maldizia o substituto, já arrependido de tê-lo colocado no cargo, e, também, queria a sua morte. Aos fãs, dizia horrores do outro.

Que nem ligava. Ficava sabendo, de um jeito ou de outro, e dava de ombros, esbanjando um largo sorriso, satisfeito por ter, enfim, conseguido “cutucar o bicho”.

À hora do almoço, quando todos se reuniam no refeitório, o assunto era invariavelmente o Titica, que para muitos tornou-se tema das mais grotescas anedotas. Estava-se tornando uma lenda viva, o homem.

Até que um dia a coisa toda caiu-lhe nos ouvidos. Pois não é que alguma daquelas almas, não se sabe ao certo se bondosa ao extremo ou por demais impiedosa, não poupou-lhe sequer um ponto, sequer uma vírgula? Contou tudo, tintim por tintim. Que queriam vê-lo morto, que lhe desejavam mal, que lhe rogavam pragas, que lhe juravam vingança, que faziam-lhe chacotas mil e, finalmente, que o estavam chamando de...

À esta altura, seu informante refreou-se, quase que por instinto. Como dizer ao Titica que o estavam chamando de “titica”?

O homem desconfiou, quis saber o que era. O outro enrolou o quanto pôde, e finalmente saiu-se com esta: que o gerente substituto ficava sabendo “de tudo”. De tudo? Sim, tudinho. E em bom português, o outro esclareceu: que o substituto sabia que ele falava mal dele. Pronto, era isto.

Titica arqueou as sobrancelhas, apreensivo. Naquela noite, não dormiu, rolando insone com a pergunta a latejar-lhe os nervos: quem seria o “leva-e-traz”? Desconfiou de muitos, mas não chegava a qualquer conclusão.

No dia seguinte, chegou ao trabalho meia hora atrasado, indo desculpar-se imediatamente com o seu superior. Que quase nem reparou em Titica. Autorizou-lhe logo a saída da sala, pouco interessado nas desculpas do outro.

Titica veio andando pelo corredor, a raiva subindo-lhe no peito. Sentia-se até maior, mais poderoso. Abriu a porta do seu departamento e deu de cara com o contínuo, um garoto franzino e novato no serviço. Titica quase agarrou-lhe o pescoço, quando perguntou se “por acaso” ele, contínuo, sabia quem andava contando ao gerente substituto que ele falava mal dele.

O contínuo, completamente surpreso e confuso, estranhou o teor da pergunta. Com simplicidade, respondeu que nunca ouvira falar que alguém falava mal de alguém ali na empresa. Depois, pensando na pergunta do gerente, ficou matutando, matutando. E com seus botões, perguntou-se: “o que será que tem na cabeça uma pessoa que faz uma pergunta dessas?”.

 

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