Isabel Pires
Que estrago.
Ela avaliava o tamanho
do estrago, o enorme buraco negro que tragava lentamente a sua vida. Que
estrago, constatava, e não tinha forças sequer para protestar, ela própria um
buraco vazio de sentimentos. Desolada, deixava as plantas morrerem por falta
d’água. Nem sequer se lembrava delas.
Andou por toda a casa,
abrindo e fechando portas e janelas. Sentou-se, levantou-se, cruzou e descruzou
os braços. Por fim, a ideia passou-lhe de raspão pela mente. Agarrou-se a ela
como um náufrago, e logo seu corpo todo agitou-se num frêmito vital. Sentiu
fome, que era o princípio da volta à normalidade. Na cozinha, um pedaço de pão
seco, uma banana envelhecendo na fruteira. Mais nada. Não desanimou, porém.
Saiu para comprar algo, e voltou com frango, arroz, legumes, alfaces. Faria um
jantar.
Enquanto estraçalhava o
frango com a faca muito afiada, pensou como seria. Bala? Veneno? Corda? Tudo
parecia-lhe tão simples e tão terrivelmente difícil. Onde conseguir o revólver,
o veneno?
Tropeçava nos detalhes
enquanto descascava batatas.
Sentada à mesa da
cozinha, quase feliz, flagrou-se pensando sem parar. Desfranziu a testa e riu
alto. Assustou-se um pouco, como se fora a primeira vez que ouvia o som do
próprio riso. Ficou séria, novamente pensando, pensando. Nem percebeu quando o
arroz fumegou, ameaçando queimar.
Tocaram a campainha,
chamando-a à realidade, e ela então verificou as panelas. No quintal, o
cachorro latia, impaciente. Foi ver. O setter irlandês, de pelo vermelho vivo, moveu-se inquieto quando ela chegou. Os dentes dele
brilhavam, pontiagudos, na luz fosca do final de tarde.
A imagem elegante e
robusta do cão revolveu-a toda. Ela recuou, refugiando-se no calor da cozinha. Decidiu:
também faria uma sobremesa. Pudim caramelizado. Abriu a gaveta, extraindo dela
o velho caderno de receitas que fora de sua mãe. A página marcada com uma
pequena dobra no canto de cima. “Começar pela calda”, dizia o pequeno oráculo
culinário. Pegou uma xícara de açúcar no pote de plástico e levou ao fogo para
caramelizar. Quando o açúcar começou a avermelhar, ela desligou o fogo, e enquanto
mexia a calda percebeu que era da mesma cor do setter irlandês.
Estava só, mas não se
importava mais. Afinal o cão, no fundo do quintal, também não estava
completamente só? E preso, no seu minicurral cercado de cuidados. Tudo pronto, enfim. Pegou a faca de descascar legumes sobre a mesa e mirou-se na lâmina, como se
fora um espelho. Verificou os dentes, escurecidos pelo cigarro. Não conseguiu
lembrar-se da última vez que os escovara.
Foi quando o marido
chegou. Surpreso com o jantar, deu-lhe um beijo na face e foi para o banho.
Resignada, ela seguiu
atrás dele. Da porta do quarto, observou vagarosamente a cama de casal, ladeada
pelos criados-mudos. Mirou sua figura no espelho da penteadeira, e sentiu que
precisava lixar as unhas, prender os cabelos. Talvez, um pouco de maquiagem.
Fez um gesto para pegar o roupão, mas desistiu, adiando o banho para depois do
jantar. Parada à soleira da porta do quarto, percebeu que, agora, quase quase
nada da sua quase alegria de durante uma parte da tarde havia sobrado, esmagada
totalmente pela poderosa presença-ausência do marido. Constatou que o buraco
negro vinha, mais uma vez, à tona, tragando-a impiedoso.
O clic da maçaneta da
porta do banheiro cortou-lhe os pensamentos. O marido, cabelos escorrendo água,
ruidoso como um leão, reclamava por comida. Ela encarou seus olhos tenros e
ternos. Uma onda de calor invadiu-a, inundando seu peito. Esperou, paciente, o
marido vestir-se e o acompanhou ao jantar.
À mesa, ele traçava o
frango com apetite voraz. A mulher apenas engolia a comida, mastigando sem
fome. Os olhos dela esbarraram na faca suja de gordura e suas mãos tremeram.
Por que não pensara nela? Não tinha revólver nem veneno, mas a faca...
Por um instante
entreviu a lâmina metálica, afiada e ávida, adentrando a carne do marido,
enquanto o sangue vermelho e quente envolveria o tapete da sala de completo
amor. Pois a cor do amor não era o vermelho-quente? Estremeceu de gozo,
pensando na cara que ele faria, certamente surpreso de vê-la ali, cravando
fundo a faca em seu peito, que se abriria numa cascata vermelha e quente. Vermelha e quente. Como a calda de caramelo do pudim.
Empurrando o prato,
satisfeito, o marido levantou-se, declarando que iria levar o cachorro para
passear.
Ela voltou à realidade, piscando os olhos para a mesa cheia de pratos e talheres gordurentos. “Espera, tem pudim de caramelo”, já ia dizer, mas desistiu. Súbito, sentiu o cansaço tomar-lhe as entranhas. Quis deitar, fechar os olhos e descansar, deixando para lá os pratos, o banho, o marido e o cachorro.
***