quarta-feira, 26 de julho de 2023

O lustre

Isabel Pires

Parou de digitar no laptop sobre o rack e, girando pela saleta, foi até à janela e aspirou o ar fresco do final de tarde. Lúcia estava no jardim, molhando a roseira.

— Lúcia, me traz um suco de laranja?

Esperou o suco recostada no pequeno sofá, as pernas esticadas, os pés descalços.

Lúcia depositou a salva de prata no rack, ao lado do laptop.

— Não vai mais escrever, dona Jô?

— Não. E não me chame de dona, já te pedi. Faz me sentir uma velha.

Lúcia saiu do escritório fechando a porta atrás de si. Espreguiçando-se como um gato, Jô foi até o rack e sorveu o suco em lentos goles.

— Hoje estou tão preguiçosa – disse, e olhou em volta. – Essa minha mania de falar sozinha. Se a Lúcia ouve, vai achar que sou ainda mais louca – disse novamente em voz alta, voltando a se espichar no pequeno sofá estofado que compunha o mobiliário do modesto escritório.

Fechou os olhos devagar e, de súbito, lembrou-se do analista.

— Ah, aquele bruxo que se dane. Já não estou num divã? E tão gostoso...

Afundou-se mais na almofada e ficou a olhar distraidamente para a tela do laptop, onde jazia, inacabado, um texto aguardando ser finalizado.

Escrever para crianças. Como fora se meter numa coisa dessas?

Escrevia para crianças histórias pungentes, de órfãos ou de risonhos meninos que morriam no final.

— Seu problema é um trauma de infância. Rejeição – diagnosticou o analista, piscando por detrás das lentes dos óculos totalmente embaçados.

Mas que trauma, que rejeição?

— Fui uma criança super mimada, doutor. De tão mimada que fui pelos meus pais, ninguém me suportava. Sabe, eles me estragaram com tanto mimo. Um verdadeiro exagero.

Droga, mas por que eu tinha que “matar” aquele menino tão fofinho no final? Poupar-lhe? De quê? O quê?

— Mas é aí que está a tua piedade, meu anjo – Rafael dissera, enquanto enchia as taças de vinho.

Rafael não sabia de nada. Era um bobo. “Materialista”, pensou, sem nem saber porquê, enquanto engolia o vinho e sentia um travo amargo na boca.

O telefone tocou e Jô nem se mexeu do lugar. “Número desconhecido”, o visor mostrou. Tocou mais algum tempo e voltou a silenciar. É sempre a mesma coisa, quando eu atendo, aquele silêncio do outro lado. Quem será? Que coisa mais besta. Se ligarem de novo, mando um palavrão daqueles bem cabeludos. Mas o telefone não voltou a tocar.

Silenciou também o barulho da mangueira de água no jardim. Lúcia já entrava para ir preparar o jantar. Pensou em chamá-la. Lúcia, não quero jantar. Vou sair. Mas desistiu e continuou imóvel, escutando o silêncio que aumentava à medida que as sombras invadiam a saleta.

Sacudiu as pernas, como que para afastar as sombras esparsas e, de um pulo, pôs-se de pé e apertou o interruptor da lâmpada. Voltou a se estender no sofá, desta vez com as pernas para cima, e ficou a examinar o fio elétrico pendendo toscamente do teto, a lâmpada atarraxada desajeitadamente no bocal. “Amanhã chamo o eletricista e mando instalar o lustre”, pensou decidida.

Era um bonito lustre de um tom lilás-arroxeado, que, contudo, não escurecia o ambiente.

— Dá para escrever à noite, como você gosta – disse Rafael, enquanto desembrulhava eufórico o presente.

Sorriu. E se pôs a imaginar a luz filtrada através do vidro colorido, a derramar-se por todos os cantos, sobre a folha eletrônica do laptop, que adquiriria um leve tom lilás, sobre o sofá, sobre ela mesma, envolvendo-a como uma mortalha.

***

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