Isabel Pires
Parou de digitar no laptop sobre o rack e, girando pela saleta, foi até à janela e aspirou o ar fresco do final de tarde. Lúcia estava no jardim, molhando a roseira.
— Lúcia, me traz um
suco de laranja?
Esperou o suco
recostada no pequeno sofá, as pernas esticadas, os pés descalços.
Lúcia depositou a
salva de prata no rack, ao lado do laptop.
— Não vai mais
escrever, dona Jô?
— Não. E não me chame
de dona, já te pedi. Faz me sentir uma velha.
Lúcia saiu do
escritório fechando a porta atrás de si. Espreguiçando-se como um gato, Jô foi
até o rack e sorveu o suco em lentos goles.
— Hoje estou tão
preguiçosa – disse, e olhou em volta. – Essa minha mania de falar sozinha. Se a
Lúcia ouve, vai achar que sou ainda mais louca – disse novamente em voz alta,
voltando a se espichar no pequeno sofá estofado que compunha o mobiliário do
modesto escritório.
Fechou os olhos
devagar e, de súbito, lembrou-se do analista.
— Ah, aquele bruxo
que se dane. Já não estou num divã? E tão gostoso...
Afundou-se mais na
almofada e ficou a olhar distraidamente para a tela do laptop, onde jazia,
inacabado, um texto aguardando ser finalizado.
Escrever para
crianças. Como fora se meter numa coisa dessas?
Escrevia para
crianças histórias pungentes, de órfãos ou de risonhos meninos que morriam no
final.
— Seu problema é um
trauma de infância. Rejeição – diagnosticou o analista, piscando por detrás das
lentes dos óculos totalmente embaçados.
Mas que trauma, que
rejeição?
— Fui uma criança super
mimada, doutor. De tão mimada que fui pelos meus pais, ninguém me suportava. Sabe,
eles me estragaram com tanto mimo. Um verdadeiro exagero.
Droga, mas por que eu
tinha que “matar” aquele menino tão fofinho no final? Poupar-lhe? De quê? O quê?
— Mas é aí que está a
tua piedade, meu anjo – Rafael dissera, enquanto enchia as taças de vinho.
Rafael não sabia de
nada. Era um bobo. “Materialista”, pensou, sem nem saber porquê, enquanto
engolia o vinho e sentia um travo amargo na boca.
O telefone tocou e Jô
nem se mexeu do lugar. “Número desconhecido”, o visor mostrou. Tocou mais algum
tempo e voltou a silenciar. É sempre a mesma coisa, quando eu atendo, aquele
silêncio do outro lado. Quem será? Que coisa mais besta. Se ligarem de novo,
mando um palavrão daqueles bem cabeludos. Mas o telefone não voltou a tocar.
Silenciou também o barulho da mangueira de água no jardim. Lúcia já entrava para ir preparar o jantar. Pensou em chamá-la. “Lúcia, não quero jantar. Vou sair.” Mas desistiu e continuou imóvel, escutando o silêncio que aumentava à medida que as sombras invadiam a saleta.
Sacudiu as pernas, como
que para afastar as sombras esparsas e, de um pulo, pôs-se de pé e apertou o
interruptor da lâmpada. Voltou a se estender no sofá, desta vez com as pernas
para cima, e ficou a examinar o fio elétrico pendendo toscamente do teto, a
lâmpada atarraxada desajeitadamente no bocal. “Amanhã chamo o eletricista e
mando instalar o lustre”, pensou decidida.
Era um bonito lustre
de um tom lilás-arroxeado, que, contudo, não escurecia o ambiente.
— Dá para escrever à
noite, como você gosta – disse Rafael, enquanto desembrulhava eufórico o
presente.
Sorriu. E se pôs a
imaginar a luz filtrada através do vidro colorido, a derramar-se por todos os
cantos, sobre a folha eletrônica do laptop, que adquiriria um leve tom lilás, sobre o sofá,
sobre ela mesma, envolvendo-a como uma mortalha.
***
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