sábado, 22 de julho de 2023

P. S.

 Isabel Pires

Os tons talvez fossem excessivamente frios, os verdes e os azuis predominando: céus luminosos, mar calmo, cercas-vivas à beira de caminhos sempre retos. Uns claros aqui e acolá. Nunca figuras humanas. Tons de terra havia, bem discretos. Mas não havia alaranjados ou rosas ou vermelhos. Verdes e azuis predominavam nas telas, algumas inacabadas, espalhadas pelo chão da sala vazia. No meio da sala, postado como um deus, o cavalete.

O colchão de casal, jogado no assoalho de madeira fosca, ocupava metade do espaço do quarto. A outra metade estava quase toda tomada por livros um tanto gastos – “Os grandes mestres da pintura” –, empilhados em desalinho. Na geladeira da cozinha mínima, um saco de pão de forma, laranjas, um copo de requeijão sempre pela metade, ovos. Em cima da geladeira, a garrafa de café e uma lata cheia de farinha de mandioca, para a farofa de ovos com café no meio da noite.

Pequenas celebrações havia, certamente, regadas a cerveja e a algum vinho barato. A galera não se importava de não ter onde sentar. Ou melhor, sentavam-se em almofadões, espalhados pelos cantos da sala. O som ligado no volume baixo, para não incomodar os vizinhos.

Numa dessas festinhas, alguém notou a assinatura no canto da tela: P. S. As iniciais de Paulo dos Santos. Na verdade, Paulão, o porteiro-zelador do prédio antigo de poucos andares e menos ainda moradores que pertencia a uma família que um dia havia sido rica e hoje andava bastante decadente. O prédio, de cinco andares e um elevador desengonçado, era um dos poucos imóveis que haviam restado, depois da morte do velho Antunes. Pagas as dívidas, os filhos, genros e noras herdaram o prédio, que dividiam com alguns inquilinos antigos e fiéis, e mais um restaurante de prato-feito, na esquina da rua.

Paulão veio de Minas para o Rio ainda pequeno, com a mãe, que se empregou de doméstica na casa de João Antunes, filho mais velho, recém-casado, do seu Antunes. Morrendo-lhe a mãe, anos depois, Paulão foi ficando, espécie de eterno protegido da família. Arrumaram-lhe um quarto-e-sala no último andar do prédio, de fundos, e deram-lhe emprego de porteiro-zelador. Em troca, ele era o faz-tudo. Qualquer um que precisasse, lá ia ele, prestar serviços de encanador, eletricista e até pintor de paredes. Mas nas horas vagas, que eram muitas, gostava de pintar suas telas, algumas compradas com os trocados que conseguia juntar com os pequenos trabalhos avulsos, outras presenteadas por dona Branca, mulher do João Antunes, espécie de mãe adotiva e sua Mecenas particular. Tinha um vago desejo de, um dia, virar um artista de verdade. Por que não? Jeito ele tinha, repetia dona Branca, que sempre lhe arranjava livros para ele “se inspirar”.

— É só uns instante, seu Paulão... Dona Branca disse que o senhor podia ver para mim...

Parada à soleira da porta, a mulher aguardava, a filha pequena colada às suas saias, enquanto Paulão foi buscar a caixa de ferramenta, sob a pia da cozinha. A menina, com uns cachos escuros despenteados e olhos castanhos muito abertos, fitava com interesse as telas enfileiradas no chão da sala.

Paulão acompanhou as novas inquilinas até o apartamento delas, do outro lado do andar. Um pedaço de fio solto na lâmpada do corredor, coisa sem importância.

— Quanto é?

— Não foi nada, não se preocupe.

— Ora...

Sempre arrastando a garota consigo, dona Tereza, um final de tarde, apareceu novamente à soleira da porta de Paulão com um pedaço de bolo de coco que acabara de fazer. Era para o lanche.

— Estou dando trabalho...

— Ora, não é nada...

Chovia muito quando o carteiro entrou no prédio para entregar as correspondências. Meio-dia.

— E aí, artista? Muito trabalho por aqui? – perguntou o carteiro em tom de ironia. Vai, dá seu autógrafo aí.

Paulão rubricou uma ficha e a devolveu ao funcionário dos correios sem dizer palavra. Dona Tereza voltava com a filha da escola e aproveitou para pegar as contas.

— Que chuva, hein seu Paulão? E ainda por cima só chega conta...

Sacudiu um pouco o guarda-chuva, antes de apanhar as correspondências.

— Você também pinta? – perguntou de repente a menina.

— Ah, desculpe – disse dona Tereza, e explicou –, é que ela anda tendo aulas de pintura na escola, e como viu os quadros na sua casa...

Enquanto a mãe falava, a garota abaixou-se, abriu a pesada mochila e retirou dali uma pequena tela onde se via, com traços hesitantes mas nítidos, um casario ainda por terminar.

— Muito bem – elogiou Paulão. Pinta direitinho, hein?

O elevador já havia chegado e dona Tereza empurrou a menina, a mochila e a tela dentro da caixa móvel.

— Vamos, Natália, que já estou atrasada com o almoço. Até logo, seu Paulão.

Às vezes, Paulão era surpreendido pelos grandes olhos castanhos de Natália, à soleira de sua porta. Bastava um descuido qualquer e lá estava ela, pedindo para ver os quadros.

Paulão tentava se livrar dela, mas a menina insistia. De vez em quando, levava o casario debaixo do braço, para Paulão opinar. Um telhado vermelho, uma parede amarela, portas verdes, janelas marrons. Aos poucos, o casario ia sendo concluído.

Um dia, Natália entregou a ele uma foto sua.

— Pinta para mim?

Paulão tomou a fotografia, examinou-a por algum tempo e a devolveu à menina.

— Não sei pintar gente – disse afinal.

Natália empurrou de volta a foto sobre a pequena mesa de fórmica da portaria. Nunca aceitava um não facilmente. Era preciso convencê-la.

— Olha, Natália, acho que sua mãe não vai gostar...

— Minha mãe? – surpreendeu-se ela.

Natália tinha dez anos de idade e um gênio de quinze.

— Pode deixar, eu falo com ela – decretou, obstinada.

Paulão guardou a fotografia da menina no bolso do uniforme de porteiro e por uns dias esqueceu o assunto até que Natália cobrou.

— Já fez meu retrato? – perguntou, ao passar na portaria, de volta da escola.

Dona Tereza, distraída com umas sacolas de compras, não prestou muita atenção na conversa deles.

— Até logo, Paulão.

Enfim, o retrato começava a nascer. Apenas um esboço, ainda. Mas já se podia distinguir o contorno de um corpo, cabelos longos e escuros dominando o retângulo da tela. Uns olhos enormes bem abertos. Indubitavelmente Natália.

— E o retrato?

— Passa lá para ver. Tá ficando legal.

A soleira da porta, a porta aberta. Natália.

— Entra aí, Natália. Dá uma olhada.

A menina, passos meio titubeantes, entrou, magnetizada. Na tala de oitenta centímetros de altura por cinquenta de largura, suspensa no cavalete no meio da sala, destacava-se a silhueta branca de seu corpo, vestido, tal como na fotografia, num minúsculo biquíni vermelho.

A mãe da menina entrou logo atrás dela e saiu em seguida, arrastando a filha.

Chovia muito por aqueles dias. Meio-dia em ponto, quando dona Branca passou pela portaria.

“Ué? Ela não devia estar no restaurante?”, estranhou Paulão com seus botões.

— Paulão, preciso falar com você. Te espero lá em casa, ok?

— Ok...

Os braços muito brancos de dona Branca pareciam uma pera madura, marcados aqui e ali com leves traços amarronzados.

— Paulão, precisamos demitir você.

— Como, dona Branca!?

— Houve uma queixa de uma moradora. Uma queixa muito grave.

O rosto branco da mulher não deixava dúvida de que a coisa era mesmo séria. Por fim, ela desabou, estridente.

— Pedofilia, Paulão?!

— O quê?!

Dona Branca quis ver o retrato. Subiram ao quinto andar. Paulão, atônito ainda, abriu vagarosamente a porta. O quadro de Natália pousado sobre o cavalete no meio da sala. Inacabado.

— É este?

Cabisbaixo, Paulão confirmou com a cabeça.

— Foi a Natália que pediu... Eu não vi mal nenhum...

Dona Branca mirava o quadro atentamente, antes de dar um veredito.

— Mas, Paulão, como foi... que ela... vocês dois aqui, ela posando para você, assim?...

— Não, dona Branca, ela me deu uma foto.

E Paulão foi pegar a foto para mostrá-la a dona Branca. Mas onde mesmo a havia colocado? Revirou suas coisas, esvaziou a mala puída, folheou os livros todos e nada. A Natália da fotografia se escondia, enquanto a outra, no meio da sala...

— Vou conversar com o João – dona Branca disse, afinal, e saiu dali, arrastando o peso do corpo, o coração mais pesado que este.

Era noite alta quando Paulão deixou o prédio, a mala escura debaixo do braço, uma grande sacola plástica com algumas telas e pincéis enfiados dentro. O caminho inteiramente aberto à sua frente, na noite borrada de pequenos pontos de luz que se desmanchavam na chuva fina como tintas deslizando sobre uma tela. Parou um instante sob a marquise do restaurante, na esquina. Acendeu um cigarro e prosseguiu, desviando-se aqui e ali dos buracos cheios de água da calçada de pedras portuguesas.

***

 

 

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