Isabel Pires
Fui abrindo lentamente
os olhos, um peso insuportável comprimindo a cabeça por dentro, aumentando infinitamente a enxaqueca.
— Essa aqui não para
de se mexer, é mole?! – disse, meio rispidamente, uma mulher à minha frente,
vestida com um uniforme de enfermeira. – Isso é só um soro,
não é nenhum bicho-papão, viu, minha flor?
Ela percebera que eu
havia me assustado e tratou de suavizar a voz, enquanto pegava o tubo de
plástico e encaixava-o novamente na minha veia.
— O que é isto? Um
hospital? – perguntei, e ouvi meu próprio fiapo de voz.
Ela deu um risinho
abafado.
— Hospital? Isso aqui
é o purgatório. Veja, o paraíso é mais adiante – disse, e apontou um maca à
frente, onde um homem agonizava.
— Está quase fazendo
a passagem – informou. Chegou aqui de madrugada, coberto de sangue. Mais de dez
tiros. Os médicos operaram. Mas já vi muitos casos. Esse aí não tem jeito.
Ela pegou meu braço e
começou a aplicar uma injeção.
— Tem uns que chegam
tão ruins, que antes de entrarem no bloco cirúrgico já estão frios. Os maqueiros
só mudam o rumo. Levam direto para o necrotério.
“Maqueiros” são os
funcionários que levam as macas pelos corredores, esclareceu ela.
— Tá na hora da troca
de turno. Daqui a pouco o médico vem lhe ver, minha flor.
Ela saiu, carregando
a bandeja da medicação. Um homem de uniforme laranja esfregava no chão um pano
úmido, enrolado num enorme rodo, e o cheiro de água sanitária ia aos poucos
ardendo nas minhas narinas.
A minha perna
esquerda, toda enrolada em ataduras, estava suspensa por grossos fios que
desciam do teto. Dona Carmem – chamava-se Dona Carmem, a enfermeira – me
contou: colocaram pelo menos uns oito pinos. Soube também que a canela esquerda
tinha ido parar em cima do ombro direito.
O médico veio me ver
e disse que seriam necessárias mais algumas cirurgias. O rim esquerdo ia ser
retirado, assim como o útero. Lembrei de Manuel Bandeira. “Então, doutor, não é
possível tentar um pneumotórax?”.
— No seu caso, só uma
histerectomia resolve – disse o médico, e se foi.
Eu fiquei, tentando
me lembrar.
Era uma hora da tarde,
aproximadamente. Calor ofegante de verão em plena Copacabana. A rua repleta. A
senhora que passou rente a mim usava uma roupa toda branca que soltava faíscas
sob o sol escaldante, atingindo de cheio, como facas afiadíssimas, meus olhos
desprotegidos. As sombras, encolhidas sob as solas dos sapatos, pareciam
assustadas com o burburinho da rua. De repente...
Pá-pum. Uma multidão
curiosa se formou, acotovelando-se a meu redor. Calma, moça, dizia um. A
senhora está bem?, perguntava outro. Não se mexa. Os bombeiros já estão
chegando.
Bombeiros? Eu não
sentia absolutamente nada, ali, estatelada no asfalto. Não estava mais em
Copacabana, pude perceber, confusa. O filho-da-puta fugiu num carrão preto, o
rosto protegido por vidros fumê.
Faltava apenas uma
quadra até a Galeria Menescal, sim, era isto. Minha luneta mágica – meus óculos
de lentes UVB, italiano-de-camelô – me fazia uma falta danada, naquele sol
escaldante. Havia esquecido os benditos óculos sobre a mesa do escritório. Pesquei
o celular no fundo da bolsa e, protegida sob uma marquise de banco, liguei para
o trabalho, para avisar que ia me atrasar.
No escritório,
ninguém atendia, nem mesmo a Marina, cão-de-guarda do doutor Acácio. E o Renan?
Onde andava o Renan? Por que o doutor Clarindo implicava tanto com ele?
Coitado! Desliguei o celular, jogando-o de volta na bolsa, com medo de que
alguém pudesse me tomar o aparelho, e fiquei mais um pouco sob a marquise,
aproveitando a sombra. Foi quando me deparei com o cartaz afixado na parede do
banco. Um pequeno cartaz amarelo com letras pretas que diziam: “Madame Carlota.
Vidente. Leitura de mão. Jogo búzios, tarô”. E em destaque, tentador, o aviso:
“primeira consulta GRÁTIS”. O grátis assim, em convidativas garrafais, dentro
de um círculo rodeado por pequenas estrelas místicas. Não havia nenhum
endereço, apenas um número de celular.
Outra enfermeira, com
cara de poucos amigos e menos ainda conversa, veio tirar minha temperatura.
— Já tomou a
medicação?
Respondi que sim.
Devia ser a injeção que a Dona Carmem aplicara. Ela perguntou se eu queria
comer alguma coisa.
Não tinha fome,
apenas vontade de seguir juntando os fiapos de lembranças do dia anterior,
tentando recompor o acontecido. Foi no dia anterior, não?
Bom... já que ninguém atendia mesmo no trabalho...
Do outro lado da linha, uma voz envolvente e gentil. Madame Carlota em pessoa! O “consultório” ficava próximo ao metrô da Cardeal Arcoverde. Não era muito longe, mas era uma boa caminhada. Nem pensar, decidi, e segui firme o meu objetivo, que era ir a uma clínica odontológica fazer um Raio-X de boca inteira, solicitado pelo neurologista a quem recorri por conta de uma enxaqueca que não me deixava em paz.
No elevador do prédio
quase vacilei entre o Raio-X e a Madame Carlota. Mas a voz imperiosa do
ascensorista anunciando o andar me trouxe de volta à realidade, e a realidade
era uma sala entulhada de equipamentos de Raio-X. O exame ficou pronto na hora.
Na Nossa Senhora,
peguei um ônibus até a Gávea. Praça do Lido, Princesa Isabel, Avenida Pasteur,
Madame Carlota. Madame Carlota? Ela não parava de vir à tona em meus
pensamentos. O ônibus, deslizando vagaroso pela São Clemente em direção ao
Jardim Botânico, me fazia especular de onde mesmo a conhecia? Madame Carlota...
Madame Carlota... Claro, Madame Carlota! Macabéa e sua “hora de estrela”. O
príncipe encantado e gringo que montava um lindo cavalo branco. A estrela
radiante. Pá-pum. Macabéa no chão, um filete de sangue pintando seus lábios
como um batom de Marilyn Monroe.
Sim, eu havia lido o
livro. Um exemplar encardido, comprado num sebo da Praça Tiradentes. Raquel,
outra colega do escritório, estudante de Letras num curso noturno, havia me
emprestado, entusiasmada. Trabalho da faculdade, ela dissera.
Macabéa, a heroína do
livro – ou anti-heroína? – era uma menina complicada, e sua história era
contada por um narrador que revela que escreve para fugir do desespero, do
cansaço e da solidão. Escrevendo, ele busca novidades sem as quais teria
morrido simbolicamente, todos os dias. O narrador de Macabéa utiliza a sua
história catarticamente, enfim. Ora se identifica com aquela nordestina
esquisita, perdida no Rio de Janeiro, ora se apieda dela e de sua existência
miserável, ora a repele energicamente, com todo o seu ser.
Eu, que estou
contando a minha própria história, apenas tento me lembrar. Meu nome é Vera.
Vera Lúcia Sampaio. Trabalho num escritório de contabilidade, no centro da
cidade. Eu e mais outra moça e um rapaz. Dividimos um cubículo onde atendemos a
clientela do doutor Acácio Francelino de Oliveira. Sou secretária formada. Tem
a Marina – Marina Sílvia Rocha – que trabalha comigo. E divide um quarto-e-sala
comigo. E morre de inveja de mim. Nosso patrão, o doutor Acácio, está sempre de
mau-humor, o rabugento. Também tem o doutor Clarindo, o advogado. Muito legal,
ele. De vez em quando, traz chocolates para as meninas, na volta do almoço. “É
para adoçar a vida”, ele sempre diz. Para o Renan, nosso boy, o doutor Clarindo
nunca traz nada. Até implica com ele, coitado. Não gosto de coca-cola e odeio
cachorro-quente. Gosto de internet. Comida preferida? Qualquer uma, desde que
seja feita pelos outros. Não tenho talento para a cozinha. Esporte preferido?
Ver filmes. Mas também gosto de praia e de namorar.
Os bombeiros não
demoraram, afinal. De alguma forma, eu ali, estatelada no chão, apreciava
aquele espetáculo de músculos impecáveis sob uniforme cáqui, o carrão vermelho
dando show no asfalto.
Um bombeiro
aproximou-se, e seu sorriso era quase terno.
— Está tudo bem.
Vamos tirar você daí, está bem?
— Fique calma – disse
outro bombeiro de uniforme cáqui e olhos verdes.
Eu não estava
nervosa. Lamentava apenas que não estivesse com a minha melhor roupa. A calça,
por exemplo. Podia ter vestido aquela, que a Marina tanto invejava. Não havia
dado tempo sequer de retocar o batom. Queria me compor. Não ficava bem aquela
posição diante de tantos rapazes. Tentava discretamente mexer a perna, juntá-la
à outra, e não conseguia. Alguma coisa dentro da cabeça não funcionava.
Às quartas-feiras o
neurologista atendia na Gávea, num consultório na Praça Santos Dumont. A visão
do jóquei me fez lembrar que o ponto estava próximo. Dei sinal e saltei.
Durante a consulta,
uma força irresistível, como ímã, fazia meu pensamento retornar à imagem do
cartaz da cartomante, colado na parede do banco.
Finalmente o
neurologista me dispensou, junto com um monte de novos pedidos de exames.
No trajeto da volta,
enquanto atravessava a praça, ia pensando banalidades. Não queria ceder à
tentação absurda de me consultar com uma cartomante. Só me faltava essa agora,
pensei quase sorrindo, quando vi, do outro lado da rua, o ônibus, parado no
ponto próximo ao jóquei. Atravessei sem pestanejar. Pá-pum. Não me lembro dos
detalhes. Nem posso dizer como os bombeiros me recolheram do chão. Apenas sei
que acordei neste hospital, com a perna cheia de parafusos.
***
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