sexta-feira, 21 de julho de 2023

Madame Carlota

 Isabel Pires

Fui abrindo lentamente os olhos, um peso insuportável comprimindo a cabeça por dentro, aumentando infinitamente a enxaqueca.

— Essa aqui não para de se mexer, é mole?! – disse, meio rispidamente, uma mulher à minha frente, vestida com um uniforme de enfermeira. – Isso é só um soro, não é nenhum bicho-papão, viu, minha flor?

Ela percebera que eu havia me assustado e tratou de suavizar a voz, enquanto pegava o tubo de plástico e encaixava-o novamente na minha veia.

— O que é isto? Um hospital? – perguntei, e ouvi meu próprio fiapo de voz.

Ela deu um risinho abafado.

— Hospital? Isso aqui é o purgatório. Veja, o paraíso é mais adiante – disse, e apontou um maca à frente, onde um homem agonizava.

— Está quase fazendo a passagem – informou. Chegou aqui de madrugada, coberto de sangue. Mais de dez tiros. Os médicos operaram. Mas já vi muitos casos. Esse aí não tem jeito.

Ela pegou meu braço e começou a aplicar uma injeção.

— Tem uns que chegam tão ruins, que antes de entrarem no bloco cirúrgico já estão frios. Os maqueiros só mudam o rumo. Levam direto para o necrotério.

“Maqueiros” são os funcionários que levam as macas pelos corredores, esclareceu ela.

— Tá na hora da troca de turno. Daqui a pouco o médico vem lhe ver, minha flor.

Ela saiu, carregando a bandeja da medicação. Um homem de uniforme laranja esfregava no chão um pano úmido, enrolado num enorme rodo, e o cheiro de água sanitária ia aos poucos ardendo nas minhas narinas.

A minha perna esquerda, toda enrolada em ataduras, estava suspensa por grossos fios que desciam do teto. Dona Carmem – chamava-se Dona Carmem, a enfermeira – me contou: colocaram pelo menos uns oito pinos. Soube também que a canela esquerda tinha ido parar em cima do ombro direito.

O médico veio me ver e disse que seriam necessárias mais algumas cirurgias. O rim esquerdo ia ser retirado, assim como o útero. Lembrei de Manuel Bandeira. “Então, doutor, não é possível tentar um pneumotórax?”.

— No seu caso, só uma histerectomia resolve – disse o médico, e se foi.

Eu fiquei, tentando me lembrar.

Era uma hora da tarde, aproximadamente. Calor ofegante de verão em plena Copacabana. A rua repleta. A senhora que passou rente a mim usava uma roupa toda branca que soltava faíscas sob o sol escaldante, atingindo de cheio, como facas afiadíssimas, meus olhos desprotegidos. As sombras, encolhidas sob as solas dos sapatos, pareciam assustadas com o burburinho da rua. De repente...

Pá-pum. Uma multidão curiosa se formou, acotovelando-se a meu redor. Calma, moça, dizia um. A senhora está bem?, perguntava outro. Não se mexa. Os bombeiros já estão chegando.

Bombeiros? Eu não sentia absolutamente nada, ali, estatelada no asfalto. Não estava mais em Copacabana, pude perceber, confusa. O filho-da-puta fugiu num carrão preto, o rosto protegido por vidros fumê.

Faltava apenas uma quadra até a Galeria Menescal, sim, era isto. Minha luneta mágica – meus óculos de lentes UVB, italiano-de-camelô – me fazia uma falta danada, naquele sol escaldante. Havia esquecido os benditos óculos sobre a mesa do escritório. Pesquei o celular no fundo da bolsa e, protegida sob uma marquise de banco, liguei para o trabalho, para avisar que ia me atrasar.

No escritório, ninguém atendia, nem mesmo a Marina, cão-de-guarda do doutor Acácio. E o Renan? Onde andava o Renan? Por que o doutor Clarindo implicava tanto com ele? Coitado! Desliguei o celular, jogando-o de volta na bolsa, com medo de que alguém pudesse me tomar o aparelho, e fiquei mais um pouco sob a marquise, aproveitando a sombra. Foi quando me deparei com o cartaz afixado na parede do banco. Um pequeno cartaz amarelo com letras pretas que diziam: “Madame Carlota. Vidente. Leitura de mão. Jogo búzios, tarô”. E em destaque, tentador, o aviso: “primeira consulta GRÁTIS”. O grátis assim, em convidativas garrafais, dentro de um círculo rodeado por pequenas estrelas místicas. Não havia nenhum endereço, apenas um número de celular.

Outra enfermeira, com cara de poucos amigos e menos ainda conversa, veio tirar minha temperatura.

— Já tomou a medicação?

Respondi que sim. Devia ser a injeção que a Dona Carmem aplicara. Ela perguntou se eu queria comer alguma coisa.

Não tinha fome, apenas vontade de seguir juntando os fiapos de lembranças do dia anterior, tentando recompor o acontecido. Foi no dia anterior, não?

Bom... já que ninguém atendia mesmo no trabalho...

Do outro lado da linha, uma voz envolvente e gentil. Madame Carlota em pessoa! O consultório ficava próximo ao metrô da Cardeal Arcoverde. Não era muito longe, mas era uma boa caminhada. Nem pensar, decidi, e segui firme o meu objetivo, que era ir a uma clínica odontológica fazer um Raio-X de boca inteira, solicitado pelo neurologista a quem recorri por conta de uma enxaqueca que não me deixava em paz.

No elevador do prédio quase vacilei entre o Raio-X e a Madame Carlota. Mas a voz imperiosa do ascensorista anunciando o andar me trouxe de volta à realidade, e a realidade era uma sala entulhada de equipamentos de Raio-X. O exame ficou pronto na hora. 

Na Nossa Senhora, peguei um ônibus até a Gávea. Praça do Lido, Princesa Isabel, Avenida Pasteur, Madame Carlota. Madame Carlota? Ela não parava de vir à tona em meus pensamentos. O ônibus, deslizando vagaroso pela São Clemente em direção ao Jardim Botânico, me fazia especular de onde mesmo a conhecia? Madame Carlota... Madame Carlota... Claro, Madame Carlota! Macabéa e sua “hora de estrela”. O príncipe encantado e gringo que montava um lindo cavalo branco. A estrela radiante. Pá-pum. Macabéa no chão, um filete de sangue pintando seus lábios como um batom de Marilyn Monroe.

Sim, eu havia lido o livro. Um exemplar encardido, comprado num sebo da Praça Tiradentes. Raquel, outra colega do escritório, estudante de Letras num curso noturno, havia me emprestado, entusiasmada. Trabalho da faculdade, ela dissera.

Macabéa, a heroína do livro – ou anti-heroína? – era uma menina complicada, e sua história era contada por um narrador que revela que escreve para fugir do desespero, do cansaço e da solidão. Escrevendo, ele busca novidades sem as quais teria morrido simbolicamente, todos os dias. O narrador de Macabéa utiliza a sua história catarticamente, enfim. Ora se identifica com aquela nordestina esquisita, perdida no Rio de Janeiro, ora se apieda dela e de sua existência miserável, ora a repele energicamente, com todo o seu ser.

Eu, que estou contando a minha própria história, apenas tento me lembrar. Meu nome é Vera. Vera Lúcia Sampaio. Trabalho num escritório de contabilidade, no centro da cidade. Eu e mais outra moça e um rapaz. Dividimos um cubículo onde atendemos a clientela do doutor Acácio Francelino de Oliveira. Sou secretária formada. Tem a Marina – Marina Sílvia Rocha – que trabalha comigo. E divide um quarto-e-sala comigo. E morre de inveja de mim. Nosso patrão, o doutor Acácio, está sempre de mau-humor, o rabugento. Também tem o doutor Clarindo, o advogado. Muito legal, ele. De vez em quando, traz chocolates para as meninas, na volta do almoço. “É para adoçar a vida”, ele sempre diz. Para o Renan, nosso boy, o doutor Clarindo nunca traz nada. Até implica com ele, coitado. Não gosto de coca-cola e odeio cachorro-quente. Gosto de internet. Comida preferida? Qualquer uma, desde que seja feita pelos outros. Não tenho talento para a cozinha. Esporte preferido? Ver filmes. Mas também gosto de praia e de namorar.

Os bombeiros não demoraram, afinal. De alguma forma, eu ali, estatelada no chão, apreciava aquele espetáculo de músculos impecáveis sob uniforme cáqui, o carrão vermelho dando show no asfalto.

Um bombeiro aproximou-se, e seu sorriso era quase terno.

— Está tudo bem. Vamos tirar você daí, está bem?

— Fique calma – disse outro bombeiro de uniforme cáqui e olhos verdes.

Eu não estava nervosa. Lamentava apenas que não estivesse com a minha melhor roupa. A calça, por exemplo. Podia ter vestido aquela, que a Marina tanto invejava. Não havia dado tempo sequer de retocar o batom. Queria me compor. Não ficava bem aquela posição diante de tantos rapazes. Tentava discretamente mexer a perna, juntá-la à outra, e não conseguia. Alguma coisa dentro da cabeça não funcionava.

Às quartas-feiras o neurologista atendia na Gávea, num consultório na Praça Santos Dumont. A visão do jóquei me fez lembrar que o ponto estava próximo. Dei sinal e saltei.

Durante a consulta, uma força irresistível, como ímã, fazia meu pensamento retornar à imagem do cartaz da cartomante, colado na parede do banco.

Finalmente o neurologista me dispensou, junto com um monte de novos pedidos de exames.

No trajeto da volta, enquanto atravessava a praça, ia pensando banalidades. Não queria ceder à tentação absurda de me consultar com uma cartomante. Só me faltava essa agora, pensei quase sorrindo, quando vi, do outro lado da rua, o ônibus, parado no ponto próximo ao jóquei. Atravessei sem pestanejar. Pá-pum. Não me lembro dos detalhes. Nem posso dizer como os bombeiros me recolheram do chão. Apenas sei que acordei neste hospital, com a perna cheia de parafusos.

***


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