sábado, 24 de dezembro de 2022

O templo

 

Isabel Pires

 

A rua era comprida, infinita. Durante o dia, as pessoas iam e vinham. E pareciam sempre as mesmas, na rua comprida e estreita. Mas à noite a rua parecia se alargar, vazia. Não se via ninguém, à exceção de raros e sombrios vultos apressados.

Durante o dia, ninguém parecia notar o templo. E as pessoas que passavam à noite davam um rápido olhar em sua direção e seguiam. Mas o templo permanecia lá, imponente, embora de paredes corroídas, cheias de limo, rachões na calçada. O templo.

Foi construído em formato circular, ninguém sabe quando nem por quê. Parecia uma tigela de borco. E ao pôr-do-sol sua silhueta de meia-lua se destacava contra o céu vermelho.

A porta principal vivia aberta de par em par. De dia e de noite. Mas ninguém entrava ou saía. Da rua não se podia ver o interior do templo, pois como que uma luminosidade opaca, difusa, vedava a visão. Mas ninguém nem mesmo demonstrava qualquer curiosidade de saber o que havia lá dentro.

Durante o dia, o templo parecia uma coisa esquecida, jogada fora. Uma coisa inútil, ocupando espaço, bloqueando a passagem das pessoas. À noite, porém, o imenso templo preenchia a solidão da rua.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Tenório, o Terrível

 Isabel Pires

 

Chegaram à cidadezinha no começo da noite – um casal e uma criança de pouco mais de três anos de idade.

Havia animação na praça. Uma agitação qualquer tomava conta do lugar. Era noite de festa, e os moradores enchiam as ruas da pequena cidade.

Em ocasiões assim, quando havia muita gente reunida, é que ele gostava de atacar, pois aí a féria seria maior. Chamavam-lhe Tenório, mas ninguém sabia se, de fato, era esse o seu nome de batismo. Cabelos já grisalhos, corpo bem disposto, estatura mediana. Aparentava uns cinquenta anos de idade. De pouca conversa, tinha um olhar entre enfadado e impaciente. Não usava revólver nem armas de espécie alguma. Assaltava sempre de bicicleta. Chegava montado na “magrela” – que o povo apelidou de “Lurdinha” – e parava no meio da multidão. Sem muito esforço, fazia o serviço calma e eficientemente e ia-se embora, pedalando sossegado.

A sua fama se espalhara pela cidade e arredores, infundindo o terror entre os habitantes, embora fosse uma figura quase que apenas lendária. Diziam que, durante o ataque, ninguém ousava contrariá-lo, apesar de não se ter notícia de qualquer ato violento cometido por Tenório.

Os visitantes escutaram a história no bar, onde pararam para beber algo. Acharam prosaica, apenas.

Quando a animação na rua estava no auge, com os festejos em ritmo acelerado, altas horas da noite, chegou Tenório montado na sua Lurdinha. Ninguém prestou-lhe atenção, mais um na festa pública. Somente quando parou a bicicleta no meio do povo, no gesto característico de fincar um pé no chão, o outro pousado no pedal, esperando, tranquilamente, que o reconhecessem.

Assim foi. À boca miúda, o nome dele multiplicou-se: “É Tenório! É Tenório!”. A multidão, apavorada, escondeu-se como pôde por todos os cantos, atrás dos carros estacionados em cima das calçadas. A música cessou, todo mundo imóvel. Esperavam. A lenda rezava que Tenório chamava uma a uma as suas vítimas para que lhe entregassem o dinheiro. Sempre na mesma sequência: o sujeito precisava antes contar uma história que fosse do agrado do bandido, depois este recolhia a assinatura do cidadão numa grande folha de papel e por fim solicitava que lhe fosse entregue o dinheiro. Caso a história não fosse do agrado de Tenório, o sujeito poderia ser torturado, ou até coisa pior...

Tenório, montado na sua bicicleta no meio da praça, um pé fincado no chão, espalhava o terror. Quem seria o primeiro a ser chamado?

O clima tenso contaminou os visitantes, que trataram de esconder-se, como os demais, atrás de um dos carros estacionados sobre a calçada. Porém, ao contrário dos habitantes da cidade, que se mantinham imóveis, petrificados mesmo, os três arrastavam-se sorrateiramente pelo chão, desviando-se de braços, pernas e outros obstáculos da melhor forma possível, na esperança de não produzirem nenhum ruído que pudesse chamar a atenção de Tenório. As pessoas olhavam-nos, embasbacadas. A mulher carregava a criança, embora estivesse quase em posição horizontal. Em seguida, como continuação das pernas dela, vinha o marido, guiando-a pelas melhores passagens. O povo abria caminho como podia, sem se mexer do lugar.

Foi quando viram um portão entreaberto. Foram penetrando por ali, procurando não esbarrar no portão de ferro pintado de marrom. Uma luz acesa no alto da parede lateral da casa desenhava no chão, bem próximo a Tenório, a sombra do portão semiaberto. Qualquer esbarrão nele, pois, poderia despertar a atenção do terrível bandido parado lá no meio da praça.

Entretanto, os três chegaram a salvo ao jardim da casa, um minúsculo retângulo, cheio de galhas que se precipitavam abundantes para fora do muro. Qualquer toque numa das galhas poderia ser fatal, pois Tenório, montando guarda no meio da praça, poderia atentar para o fato. A mulher soube, nesse momento, como era difícil esconder um homem e uma criança, e ainda esconder-se também. Um enorme homem, que precisava fazer um grande esforço para manter o topo da cabeça abaixo da linha do pequeno muro do jardim onde estavam. E um menino de pouco mais de três anos de idade, irrequieto por causa mesmo da idade. No entanto, os três mantinham-se calmos, esperando apenas uma oportunidade para alcançarem a janela aberta. Mas como, se a janela era bem de frente para a rua, bem na mira de Tenório? Impossível, pois, alcançá-la.

Lá na praça, Tenório já havia começado o trabalho. Muitos já lhe tinham contado as histórias, assinado a célebre folha de papel e por fim entregue o dinheiro, sendo dispensados a seguir. Alguns, os mais medrosos, haviam se urinado nas calças diante de Tenório, mas este, num gesto de extrema condescendência, fingira não perceber – embora não deixasse de torcer o canto do lábio, num sorrisinho de escárnio.

Tenório chamou o próximo – um jovem bastante alto e excessivamente magro. Cabelos cheios de brilhantina, partidos de lado, o rapaz foi caminhando um tanto afoito em direção ao bandido.  

Tenório olho-o de alto a baixo, desconfiado. Temeroso talvez de ouvir mais uma história sem graça, inutilmente, em troca da parcas moedas, foi logo perguntando, meio que afirmando:

— Você não tem dinheiro aí, tem?

O rapaz, desculpando-se muito, confirmou: realmente, não trazia nada consigo, infelizmente não poderia dar sua contribuição naquele momento. Porém, gostaria muito de aproveitar aquela grande oportunidade para pedir-lhe uma coisa, se possível, claro, e se não fosse incomodar...

— O que é? – quis saber Tenório, impaciente.

Gaguejando, o rapaz pediu-lhe um autógrafo, pois desde há muito o admirava e...

Tenório olhou de banda, mais desconfiado. Aquiesceu, porém.

O jovem, sacando do bolso um pedaço de papel e caneta, disparou, completamente feliz, em direção a Tenório.

Era a oportunidade esperada. O casal de forasteiros, aproveitando os segundos em que Tenório se mantinha distraído, autografando, pulou rapidamente a janela da casa, aos trambolhões, a mulher sempre agarrada à criança.

Caíram num quarto, bem em cima de uma cama de casal revirada de lençóis e travesseiros. Estavam a salvo, e em definitivo, do terrível Tenório.

Nisso, chegou o dono da casa, que havia sido dispensado por Tenório há pouco. Vinha acabrunhado por ter cedido tão facilmente à intimação quase que hipnótica do bandido. Desolado, entrou no quarto, o fino bigodinho com as pontas caídas sobre os lábios tristes, desenhando uma linha de amargura sobre a boca meio murcha, quando deparou-se, estarrecido, com os três estranhos.

— O que é isto? Que fazem aqui?!

O homem e a mulher puseram-se a explicar, atropeladamente. O dono da casa, indignado, não aceitava o fato de terem, aqueles forasteiros, escapado da intimação de Tenório. Resolveu ir até a praça, para delatá-los ao bandido. A mulher entrou em pânico. Seu marido segurou o outro homem, impedindo-o o de sair. Trancou todas as portas e janelas e ficou de posse das chaves, montando guarda no sofá da sala.

O dono da casa, de larga barriga e pernas finas, chapéu de feltro preto à cabeça, refletia, sentado numa das cadeiras da mesa, sob o olhar vigilante dos invasores. Subitamente, lembrou-se do revólver guardado há anos na gaveta da mesinha à cabeceira da cama. Foi buscá-lo.

O casal, de posse das chaves da casa, respirava tranquilo, sem se preocupar com a saída do homem da sala. Afinal, estavam no controle da situação, não estavam? Então, inesperadamente, o dono da casa invadiu a saleta, ameaçando os visitantes com seu velho revólver.

A mulher levantou-se, repentinamente enfurecida, o rosto vermelho de raiva, os olhos saltados das órbitas.

— O quê?! Escuta aqui, seu covarde. Um homem assalta a cidade inteira sem nenhuma arma, e o senhor vem ameaçar pessoas indefesas com esse revólver? É muita covardia... Não respeita nem a criança, seu covarde! – vociferava ela, fora de si.

O homem com o revólver avançou para ela, colérico. A mulher deu um grito estridente e correu para o quarto. Ele foi atrás, enlouquecido de raiva. Falava entre dentes, tremendo:

— Covarde, eu? Ninguém me chama de covarde! Vou mostrar quem é covarde.

Agarrou a mulher pela gola da roupa, sacudindo-a. E como era muito mais baixo do que ela, a cena tornava-se grotesca. O chapéu de feltro caiu, tombando no chão. A mulher, apavorada, olhos esbugalhados, não emitia sequer um grunhido. Viu o cano do revólver aproximar-se do seu peito e encontrou forças apenas para dizer sufocada “Ele vai me matar!”.

O marido assistia à cena sem se mover do lugar. A criança olhava tudo de olhos bem abertos.

A mulher, como que hipnotizada, via o cano do revólver colado ao seu peito. Era agora. Ele já o engatilhava. Talvez tivesse sido melhor enfrentarem Tenório, afinal de contas, pensou ela, num lampejo de lucidez.

Então o homem puxou o gatilho.

Ouviu-se um estampido surdo e a mulher deu um grito abafado, fechando os olhos e tapando o rosto com as mãos. Não queria testemunhar a própria morte.

Porém, nada mais aconteceu. O baixinho olhava espantado para o revólver traidor. A bala parecia ter engasgado, entalada dentro do cano da arma. A mulher, aproveitando o milagre, abaixou-se rapidamente. Alguns segundos depois, a bala finalmente saiu, quase que em câmera lenta, ricocheteando na parede e indo estacionar mansamente no chão, sobre o tapete gasto da pequena sala de visitas. Era, na verdade, a primeira bala a ser atirada daquele velho revólver, nele já há mais de dez anos.

Os forasteiros, espantados, acompanharam com olhos esbugalhados a trajetória da bala. Estupefatos, deixaram-se cair no sofá e repentinamente caíram na gargalhada. Não se continham, torcendo-se de tanto rir. Levantaram-se, cambaleando, sacudidos pelo riso. Apanharam as chaves, abriram a porta da rua e saíram, levando consigo o menino, que não entendia direito o que havia se passado.

Estático, o homenzinho permanecia na sala, sem dizer palavra. Olhava com desgosto para o revólver entre as mãos, uma raiva surda entalando-lhe a garganta. 

Os três forasteiros chegaram à rua a tempo de ver, destacando-se contra o fundo negro da noite, a figura de Tenório, pedalando despreocupado sua bicicleta.

 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Na próxima primavera

 

Isabel Pires

 

Ela penteava com cuidado os cabelos espessos e verdes. Começou vagarosamente uma trança, alisando os cabelos esverdeados. Antigamente eles tinham sido dourados e ralos. Mas isso foi logo quando ela nasceu, há muito tempo. À medida em que foi crescendo, seu cabelo foi ficando verde, adquirindo uma tonalidade verde-escuro, de musgo. Pelo que se lembrava, nunca o havia cortado, exceto daquela vez...

... a tesoura tinha um brilho metálico. Cortou a unha do indicador. Doeu. Grande demais, a tesoura. Largou-a no chão, atenta ao som frio do aço caindo no piso do quarto. Dentro do retângulo claro do sol no assoalho. De um lado, a tesoura era uma pequenina poça de líquido no chão, com um sol miniaturizado lá no fundo no fundo no fundo. Do outro lado, a lâmina era um pedaço escuro, sem reflexo, sem sol. Sem vida. Aproximou-se do objeto aberto em xis no chão. O cabelo batia no rosto. Ela, debruçada sobre o retângulo que prendia a tesoura. E o cabelo verde...

(a merenda grudava no céu da boca, sem conseguir engoli-la. Não enxergava o pátio cinzento e sombreado do recreio. As figuras desmanchavam-se à sua frente, para se refazerem em seguida, enormes e impiedosas. O cimento do pátio parecia uma onda cinzenta que ameaçava engolir a roda de saias pregueadas e calções colegiais. Mas eles se recompunham mais firmes, girando e entoando a medonha cantilena: “Cabelo verde! Cabelo verde!”. Ia gritar “Meu cabelo não é verde!”, quando o som agudo e ensurdecedor susteve por segundos sua respiração, aliviando-a. Acabara o recreio)

... batia no rosto. A tesoura aberta brilhando ao sol. Pegou-a, ávida. O aço estava morno, sem pressa. Mas não havia muito tempo. Seguiu para o quarto grande e sentou-se compenetrada na banqueta macia da penteadeira. Afastou com a mão livre os potes de creme e estojos de maquiagem espalhados pela superfície lisa do móvel. A escova de cabelo deslizou sobre o verniz. Desprezou-a. Tec tec tec tec tec tec. O som metálico golpeava o final de tarde, assustando as sombras que espreitavam dos cantos. Olhou-se no espelho. O cabelo não mais caía-lhe desordenado pelo rosto. E os olhos, escuros e penetrantes, mostravam-se agora inteiros. Mas o cabelo continuava verde. Ainda mais verde. A tesoura, descansando sobre a penteadeira da mãe, tinha a lâmina úmida e pegajosa das hastes de cabelo densamente verde, que agora estavam úmidas e pegajosas, como folhas verdes trituradas.

Terminou finalmente a trança grossa, amarrando a ponta com uma tira de pano. Ajeitou-a com cuidado, colocando-a para um lado. Aspirou satisfeita o aroma que rescendia do cabelo verde recém-lavado. Havia que manter as raízes úmidas e vigorosas. De vez em quando, podava as pontas sem seiva. A dor se fez quase presente de novo, atravessando o tempo. Apanhara muito naquele dia. E recordou a nitidez do chinelo vibrando em suas nádegas. Foi chorar na cama da avó abraçada à boneca de pano. Depois, queimou a boneca. Apanhou de novo.

Mas seus cabelos verdes cresceram outra vez, selvagemente, verde-escuros e úmidos. Alisou com suavidade a trança domada e bem tratada que descia-lhe pelo ombro. Sorriu. Tocou o pé no ladrilho frio da varanda, arrepiada com o vento incômodo. Encolheu-se dentro do agasalho. Sentia frio nas raízes do cabelo, devido à constante umidade. Era-lhe penoso o inverno. Abandonou a varanda, penetrando na casa escurecida. Fechou as janelas e acendeu as lâmpadas. A sala agora era uma estufa quente e úmida. Sentou-se confortavelmente no canto mais canto, e inevitavelmente mais úmido, do sofá-estufa, e soltou os cabelos, desatando a fita frouxa que pendia da ponta da enorme trança. As ramagens verde-escuras espalharam-se pelo encosto do sofá. Ela fechou delicadamente as pálpebras, respirando pela boca entreaberta. E ficou esperando a primavera, quando dos seus cabelos, contrastando com o verde escuro e profundo, as pequeninas flores brancas desabrochariam, abundantes. 

***

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A patroa

 

Isabel Pires

 

Sob a leve camada de poeira, os móveis adquiriam um tom opaco. Aos poucos, no ar parado, o retângulo alaranjado de sol no chão ia ganhando espaço, se avolumando. Sentada no sofá, enlaçando as pernas com os braços, ela contou as badaladas do relógio. Uma. Duas. Três. Quatro. Atirou uma das pernas para cima, furando o ar, e se colocou de pé, atravessando o retângulo alaranjado cheio de partículas de poeira suspensas no ar, e abriu mais a janela. Voltou-se, falando em voz alta:

— Deo, ô Deo, tem um suco aí nessa geladeira?

Ninguém respondeu.

Ela foi em direção à cozinha mas, à meio caminho, estacou o passo, sentando-se numa das cadeiras da enorme mesa, na sala de jantar.

— Deolinda, o que você está fazendo nessa cozinha às quatro horas da tarde, hein? Tá preparando um lanche pra mim?

Pausa.

— Não? – riu meio sem vontade. – Ah, já sei. Vai descascar batatas, acertei?

Um ruído quase imperceptível vinha da cozinha. Ela levantou-se e chegou até a porta.

— Você agora está fazendo greve de silêncio comigo, é isso, Deo? – fez um muxoxo.

A cozinheira ergueu os olhos, interrompendo por instantes o seu afazer.

— Ah, dona Josefina. A senhora sabe que a patroa não gosta de lhe ver aqui na cozinha.

— Dona? Senhora? Que história é essa, Deo? Você sabe que não suporto essas frescuras. E não me chame de Josefina que eu não gosto. Você sempre me chamou de Jô... – Olhou para o trabalho da cozinheira. – O que é isso? – Avançou um passo e meteu o dedo na tigela cheia de massa. – Oba! Bolo para o lanche.

— Tira a mão daí. – Deolinda deu um tapa amistoso na mão da outra. Não é bolo não, nem é para o lanche.

— Argh! Massa salgada! – Jô fez uma careta, enquanto dava uma lambida no dedo encharcado de massa crua. Limpou o dedo na toalha da mesa da cozinha. – Queria me pregar uma peça com essa massa salgada, Deo?

Deolinda achou graça.

— Pregar peça? Que ideia. Essa massa é para uma...

— Psiu! – Fez a moça, o indicador sobre os lábios. No rosto, um ar atento.

— O que foi? – perguntou Deolinda com voz angustiada.

— Ouço barulho no jardim.

— Barulho no jardim? – uma expressão de alarme surgiu no rosto da cozinheira.

— Agora tá ficando cada vez mais perto. Ouça. – A voz dela saía sussurrada, enquanto os olhos mexiam-se inquietos nas órbitas. – Passos! E estão vindo na direção da casa. – Olhou para a cozinheira, franzindo as sobrancelhas.

— Passos... E agora? – A voz de Deolinda soou entrecortada de susto.

Ouviu-se o estalido do trinco da porta da sala de jantar que dava para o jardim. Deolinda levou a mão à boca, prendendo o grito, os olhos arregalados. Jô encarou-a e, de repente, explodiu na risada. Curvou-se, encostando a boca no ouvido da outra.

— Ô Deo, será que você não reconhece esses passos dentro de casa?

Um rosto sério sob um penteado sóbrio apareceu na porta por cima do ombro de Josefina.

— De novo aqui na cozinha? – A voz, dura, dirigiu-se à cozinheira. – Isto é a massa da torta do jantar?

— É, sim senhora.

— Vê se faz tudo como ensinei. Vou tomar um banho e venho controlar o resto, senão não tem condições de sair um jantar decente. – Lançou um olhar à Josefina. – Vamos ter visita para o jantar.

O rosto empertigado desapareceu da porta da cozinha. As duas ouviram os passos subindo a escada. Aguardaram até que se extinguissem.

— Vamos ter visita para o jantar! Vamos ter visita para o jantar! Ouviu, Deolinda? Faça tudo direito porque vamos ter visita para o jantar!

Deolinda abanou a cabeça, voltando a bater a massa com a colher de pau.

— Se ela escuta... – Sorriu. – Agora é melhor você sair daqui, senão a patroa vai ter um piripaque quando voltar.

Jô ficou séria. Apanhou o pano de prato sobre a mesa, girando-o no ar e ameaçando atirá-lo na cabeça da cozinheira. O pano de prato voou e foi cair dentro da pia. A moça enfiou novamente o dedo na massa, levando-o à boca. Estacou a mão, o dedo espetado no ar.

— Oh! Esqueci. É massa salgada. – Limpou o dedo na toalha da mesa e saiu da cozinha.

 

***

 

— Deolinda!

 

Uma. Duas. Três. Quatro. Quatro badaladas fatais, como pedras atiradas uma a uma no fundo de um poço. Ao cair, fazem barulho, protestando. Anunciando a sua chegada lá embaixo. Quatro horas. Quatro horas da tarde, numa tarde ardente e cáustica. As coisas parecem querer pegar fogo a qualquer instante. Tudo. Numa grande bola avermelhada. Quente demais, essa casa. E sem ar. Um mausoléu, cheirando a mofo. Cheiro de coisa velha cuidadosamente guardada. A um leve sopro, desmorona-se tudo sob uma nuvem de pó. Ruínas, cacos. E a poeira cobrindo tudo, sufocando tudo. Preciso de ar. Mas não existe ar no mausoléu mofado.

O céu parece uma fita azul, seca e limpa, cobrindo o amontoado de paredes brancas e telhados vermelhos do casario de aspecto barroco. Rente ao canteiro, uma fila de formigas marcha para o seu inexorável destino de formiga. As folhas das plantas, petrificadas, não produzem mais oxigênio. Não existe mais ar sobre a face da Terra. Um líquido, por favor, senão morro sufocada.

— Deo, ô Deo, tem um suco aí nessa geladeira?

Até as cadeiras parecem sem ar nessa tarde quente. E cansadas.

— Deolinda, o que você está fazendo nessa cozinha às quatro horas da tarde, hein? Tá preparando um lanche pra mim?

Cadeiras cansadas... Essa é boa. Eu é que estou cansada dessa casa velha...

— Não? Ah, já sei. Vai descascar batatas, acertei?

É bom olhar para Deolinda. Parece um tronco salvador. Estou me afogando, e vejo um imenso tronco à minha frente. Agarro-me a ele, e é Deolinda, transformada em tronco de árvore.

— Você agora está fazendo greve de silêncio comigo, é isso, Deo?

Deolinda me salva, sempre. E posso enfim respirar aliviada. Mas ela me chamou de quê?

— Dona? Senhora? Que história é essa, Deo? Você sabe que não suporto essas frescuras. E não me chame de Josefina que eu não gosto. Você sempre me chamou de Jô... O que é isso? Oba! Bolo para o lanche.

Que delícia. Pelo menos vamos ter um bolinho hoje nessa casa. Tomara que seja de chocolate.

— Argh! Massa salgada! Queria me pregar uma peça com essa massa salgada, Deo?

Mas agora que estou salva, me transformo em algoz da minha própria salvadora. Ingrata. Ou vingativa, por ela não feito um bolo de chocolate para mim.

— Psiu! Ouço barulho no jardim.

Pobre Deolinda. Seu rosto bom transpira medo. E eu me sinto infinitamente má. Mas peço de novo socorro. Os passos se aproximam, acelerados.

— Agora tá ficando cada vez mais perto. Ouça. Passos! E estão vindo na direção da casa.

A fera no meu encalço. Socorro, Deolinda! Socorro! Mas Deolinda desta vez não me salva. Está longe, fora de alcance, o tronco protetor.

— Ô Deo, será que você não reconhece esses passos dentro de casa?

Sinto o hálito da fera às minhas costas: “Vamos ter visita para o jantar”. 

— Vamos ter visita para o jantar! Vamos ter visita para o jantar! Ouviu, Deolinda? Faça tudo direito porque vamos ter visita para o jantar!

O jantar da fera. A fera banqueteando-se. O que servirá de recheio para essa torta? A fera vai devorar a torta inteira, sem piedade, e dentro dela, meu coração picadinho com cebola e alho. E é Deolinda quem vai fazer a torta de coração – meu coração! – para o jantar. Vai rechear a torta com o meu coração e vai dar para a fera comer. Mas Deolinda não tem culpa. Foi a fera quem mandou. Ninguém pode desobedecer a fera. Nem Deolinda. Muito menos Deolinda, que cozinha tão bem e que está fazendo uma torta de coração para o jantar, em vez de fazer um bolo de chocolate.

— Oh! Esqueci. É massa salgada.

*** 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Titica

 Isabel Pires

 

O apelido pegou: ele era o... Titica. Pelo menos na sua ausência, visto que, na frente dele, os inimigos ainda não haviam criado coragem suficiente para atirar-lhe na cara o xingamento. Mas era mesmo uma titica, o homem. Alguém falou, referindo-se talvez à sua pouca estatura, e ficou: Titica.

No trabalho, onde ocupava um posto de gerente, colecionara desafetos ao longo dos seus quinze anos de total subserviência aos mandachuvas da empresa. Tanto que também haviam tentado impingir-lhe a alcunha de “Lambe-botas”. Contudo, foi “Titica” que pegou, tal foi a imediata identificação entre o objeto denominado e o nome que o designava. No entanto, tinha lá os seus fãs: meia dúzia de gatos pingados que seguiam à risca o seu exemplo e as suas instruções. Uns cagões, diziam uns. Bajuladores, diziam outros.

Titica colecionava desafetos na mesma medida em que sua fama de boa-bisca crescia e se espalhava. As opiniões eram quase unânimes, não fossem aqueles fãs de última hora... Como eram minoria, porém, esses fãs não eram, de modo algum, levados a sério. E falava-se mal abertamente de Titica. Na sua ausência, é claro. Contavam-se piadas, rogavam-lhe as mais injuriosas pragas e infâmias. Todos pareciam querer vê-lo morto. À exceção, é lógico, dos fãs mais ardorosos. Até mesmo o gerente substituto, escolhido a dedo pelo próprio Titica, queria vê-lo mortinho da silva, e era o primeiro a espalhar suas histórias de malvadezas e perseguições.

Uma peste, enfim, aquele Titica.

Alheio aos comentários, entretanto, o gerente seguia exercendo soberana, quase que divinamente, a sua tirania, indiferente àquele zé-povinho. Só não engolia o tal gerente substituto, este, verdadeira pedra no seu sapato, a roubar-lhe um pouco do seu infinito poder.

Por sua vez, Titica maldizia o substituto, já arrependido de tê-lo colocado no cargo, e, também, queria a sua morte. Aos fãs, dizia horrores do outro.

Que nem ligava. Ficava sabendo, de um jeito ou de outro, e dava de ombros, esbanjando um largo sorriso, satisfeito por ter, enfim, conseguido “cutucar o bicho”.

À hora do almoço, quando todos se reuniam no refeitório, o assunto era invariavelmente o Titica, que para muitos tornou-se tema das mais grotescas anedotas. Estava-se tornando uma lenda viva, o homem.

Até que um dia a coisa toda caiu-lhe nos ouvidos. Pois não é que alguma daquelas almas, não se sabe ao certo se bondosa ao extremo ou por demais impiedosa, não poupou-lhe sequer um ponto, sequer uma vírgula? Contou tudo, tintim por tintim. Que queriam vê-lo morto, que lhe desejavam mal, que lhe rogavam pragas, que lhe juravam vingança, que faziam-lhe chacotas mil e, finalmente, que o estavam chamando de...

À esta altura, seu informante refreou-se, quase que por instinto. Como dizer ao Titica que o estavam chamando de “titica”?

O homem desconfiou, quis saber o que era. O outro enrolou o quanto pôde, e finalmente saiu-se com esta: que o gerente substituto ficava sabendo “de tudo”. De tudo? Sim, tudinho. E em bom português, o outro esclareceu: que o substituto sabia que ele falava mal dele. Pronto, era isto.

Titica arqueou as sobrancelhas, apreensivo. Naquela noite, não dormiu, rolando insone com a pergunta a latejar-lhe os nervos: quem seria o “leva-e-traz”? Desconfiou de muitos, mas não chegava a qualquer conclusão.

No dia seguinte, chegou ao trabalho meia hora atrasado, indo desculpar-se imediatamente com o seu superior. Que quase nem reparou em Titica. Autorizou-lhe logo a saída da sala, pouco interessado nas desculpas do outro.

Titica veio andando pelo corredor, a raiva subindo-lhe no peito. Sentia-se até maior, mais poderoso. Abriu a porta do seu departamento e deu de cara com o contínuo, um garoto franzino e novato no serviço. Titica quase agarrou-lhe o pescoço, quando perguntou se “por acaso” ele, contínuo, sabia quem andava contando ao gerente substituto que ele falava mal dele.

O contínuo, completamente surpreso e confuso, estranhou o teor da pergunta. Com simplicidade, respondeu que nunca ouvira falar que alguém falava mal de alguém ali na empresa. Depois, pensando na pergunta do gerente, ficou matutando, matutando. E com seus botões, perguntou-se: “o que será que tem na cabeça uma pessoa que faz uma pergunta dessas?”.

 

***

domingo, 18 de dezembro de 2022

Para ir a uma festa

 Isabel Pires

Sinto o olhar dele grudado nos contornos da minha boca enquanto passo o batom. Ele me olha através do espelho, sentado na poltrona perto da janela. Meu olhar também está concentrado nos meus próprios lábios, refletidos no espelho à minha frente, mas posso sentir o olhar dele. E a sensação de saber que ele me observa vai subindo gelada pela minha espinha, como uma lâmina afiada e fina, até chegar à nuca. Volto a cabeça rapidamente, a tempo de surpreender o olhar dele mudando de direção.

— Estou demorando?

— Tem tempo de sobra ainda.

Eu poderia dizer que não, não me importo de esperar. Gosto de vê-la se maquiando, passando o batom lentamente sobre os lábios até deixá-los assim, espessos, irreais. “Estou demorando?”. Está sim, mas não me importo de esperar a eternidade inteira, de ficar olhando-a enquanto se maquia. Mas eu sei que ela prefere que eu saia do quarto. A minha presença deve incomodar, talvez pesar como um pedra.

— Vou tomar um drinque.

— Não vou demorar.

Vai tomar um drinque. Quando eu chegar lá na sala, ele já bebeu quase toda a garrafa. Depois, vai ficar insuportável, dizendo coisas desagradáveis. E rindo, rindo como um debiloide. Engraçado como a ausência dele incomoda também. Porque sei que ele está lá na sala, tomando um porre de uísque. Com muito gelo. Gelo que não derrete. E a presença dele também não, pairando insistente no ar, penetrando na minha cabeça, nervo por nervo. Minha imagem me olha do fundo do espelho e retorce a boca, numa expressão de escárnio. Ri do meu desejo de liberdade. Sabe das correntes que vão crescendo mais e mais, monstruosas, nos sufocando, me sufocando, à medida em que o tempo passa. Novamente o olhar dele, parado junto à porta, me observando enquanto passo o perfume.

— Já estou pronta. Gosta do perfume?

— Adorável.

Mentira. Nem sei que cheiro tem. Só sinto o cheiro do uísque, tão bom esse torpor gelado na língua que vai subindo para minha cabeça, deixando-a oca, vazia de pensamentos. Ela fecha o frasco de perfume e dá os últimos retoques em frente ao espelho. Está linda. Deve estar cheirosa também. Lançou-me um olhar apreensivo. Sabe que bebi. Tem medo de mim quando bebo, eu sei. Mas assim mesmo ergue a cabeça, altiva. Vai andando à minha frente, como uma deusa orgulhosa. E posso apenas pressentir as ondas de perfume que se desprendem dela.

— Vou tirar o carro da garagem.

— Eu dirijo.

Ele me olha, o rosto pétreo, sem expressão. Depois, o olhar é de surpresa, e, na sequência, de ironia. Sorri, divertido, balançando as chaves diante de mim. Retira o carro da garagem, exagerando os cuidados. Faz questão de vir abrir-me a porta, contornando a frente do carro. Entro no carro como uma madame. Enquanto dirige, não pode me observar. Mas sinto seu pensamento deslizando pelos meus braços, subindo pelo meu pescoço. Abro a janela do carro para sentir o vento frio da noite. Muito frio. Estremeço e volto a fechar o vidro. Dentro, o ar é morno e repentinamente aconchegante. Ele liga o rádio, baixinho, e o som fragmentado da música se mistura com restos de uísque e perfume, viajando juntos dentro da noite.


sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um olhar profundo

  

Isabel Pires

 

A criançada corria solta pelo terraço. A hora do parabéns se aproximava e as mães, celulares em punho para as fotos, tentavam reunir os pequenos em volta da mesa dos doces para cantarem para o aniversariante. No meio da mesa, o bolo de três camadas reinava soberano, decorado em forma de uma cabeça sorridente de urso panda.

Cinco anos de idade, sim senhor!

O avô tentou pegar o menino no colo, mas ele fugiu, correndo atrás do amiguinho.

Dois coroas, a um canto, jogavam conversa fora, talvez somente esperando a hora de irem embora. Um deles comentou:

— Quando vou a aniversário de criança, sempre me lembro de um que fui, há muito tempo atrás. Naquele tempo, nem tinha celular.

O outro interessou-se. Gostava de histórias antigas, dos tempos que, agora, pareciam até de outro mundo. Esticou-se na cadeira, para ouvir melhor. O primeiro pegou o copo de cerveja já quase quente, e começou a narração.

“Naquela noite eu havia planejado ficar em casa comigo mesmo, descansando e descansado. Mas a gente nem sempre faz o que gostaria. Os outros estão constantemente decidindo, direta ou indiretamente, a nossa vida. E acabamos, sem mais nem menos, envolvidos em coisas que não nos diz respeito, mas que terminam nos envolvendo e afetando. Foi assim naquela noite.

“Como eu ia dizendo, eu estava absolutamente só em casa, e queria permanecer assim. Por isso, fiquei bem chateado quando ouvi a campainha.

“Estavam me chamando às pressas no apartamento do andar de cima. Eu sabia que ia haver por lá uma festinha de aniversário, dessas que reúnem alguns vizinhos e uns poucos parentes. Era anos da filha caçula do casal. O recado era para eu aparecer por lá para ajudar com as fotos. Afinal, eu era fotógrafo.

“Fiquei muito aborrecido mesmo, mas, enfim, não custava nada ir até lá. E me vi, a contragosto, subindo as escadas com a minha velha máquina fotográfica a tiracolo.

“Quando entrei na sala, fiquei surpreso com duas presenças que não esperava encontrar no mesmo recinto: Janete e Zilda. Eram duas das minhas vizinhas. Todo mundo sabia que elas não se davam bem, e alguém havia comentado comigo que Janete havia dito, sobre a festinha: ‘Se ela for, eu não vou’.

“Mas estavam lá, as duas. Zilda, como sempre, muito quieta, muito calada. Janete, por sua vez, conversava o tempo todo, ora com uma ora com outra pessoa, se mexendo muito no sofá. E de vez em quando olhava de esguelha para Zilda.

“Cantamos o ‘Parabéns pra você’, tirei muitas fotos, que somente seriam reveladas depois...”

— Não era como hoje, que a gente já vê as fotos na hora, ali, no celular... – atalhou o ouvinte.

— Pois é, veja como evolui a tecnologia – comentou o narrador –. Já teve até um tempo em que fotografia era uma arte...

E continuou a narrativa, após beber um gole da cerveja.

“Fotos tiradas, já ia me retirar, quando o anfitrião insistiu para eu ficar mais um pouco ‘bebendo uma cervejinha’. Fiquei. Afinal, já tinham mesmo acabado com meus planos de paz e sossego. Entre uma conversa e outra, pude observar o comportamento daquelas duas.

“Janete fingia o tempo todo não estar vendo Zilda. Mas Zilda parecia que, de fato, não via mesmo Janete, nem ninguém mais, tão alheia estava à tudo.

“Zilda era jovem e muito bonita. Mas tinha fama de esquisita. Tratava bem a todos no prédio, sempre simpática, mas tinha manias estranhas. Nunca sorria, falava pouco. Estava sempre séria, talvez pensando em alguma coisa muito profunda.

— Também tenho uma vizinha assim, bem esquisita – atalhou novamente o ouvinte –. São difíceis de lidar, hein?

O outro continuou, dessa vez ignorando o comentário:

“E naquela noite Zilda estava mesmo bem esquisita. Olhava profunda e fixamente na direção da lâmpada, no teto, sem reparar em nada à sua volta.

“Para fazer o arranjo de balões e fitas de papel crepom, que pendia do teto com a faixa de ‘Parabéns’, haviam retirado o globo que envolvia a lâmpada e os fios elétricos estavam à mostra, horríveis, ajudando a segurar o arranjo de balões. E era naquela direção que Zilda olhava, com seu olhar profundo.

“E de repente, sem ninguém esperar nem saber como, voaram balões para todos os lados. Despencaram os fios elétricos. Um dos fios, preso ainda à corrente elétrica, foi na direção de Janete, sentada no sofá. Um grito agudo se fez ouvir e alguém desceu correndo as escadas para desligar a chave geral do prédio. Mas era tarde. Janete morreu eletrocutada.

— Nossa! Que tragédia! – interrompeu novamente o coroa, abanando a cabeça – E a outra, a esquisita? Como era mesmo o nome dela?

“Depois de tanto tempo, ainda me lembro perfeitamente de tudo, e não consigo tirar da mente aquele olhar fixo da Zilda nos fios elétricos. Aquele olhar tão profundamente fixo. Pode ser apenas imaginação. Mas, mesmo assim, não consigo deixar de me perguntar: será que Zilda podia imaginar ou adivinhar o que iria acontecer? É bem verdade que ela, como todos que estavam naquela festinha, ficou chocada com o acidente. Mas nunca se sabe...”

— Vamos, já estão cantando o Parabéns pra Você.

Os dois coroas levantaram-se, e foram caminhando lentamente em direção à mesa cercada de crianças e mães fotógrafas de celulares.

No caminho, um deles, o ouvinte, comentou, pensativo:

— É verdade. Coisas estranhas acontecem.

— Sim. Coisas inexplicáveis e inesperadas, e que acabam nos envolvendo, mesmo sem a gente querer.

 *** 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

De epígrafes e epitáfios

 

Isabel Pires

My heart,

 

Sinto saudades. Não falo de uma saudade literária, menos ainda de saudades abstratas. Creio que você sabe muito bem o que quero dizer. Falo dessa coisa concreta que chega a doer e que, no meu caso, deixa mais cinza o carpete sob meus pés.

Lembra da última vez que nos vimos? Havia chovido há pouco, e havia um arco-íris com pontas que se enterravam nos telhados de zinco dos barracos que a gente via da janela do décimo primeiro andar, e você comentou “como é bela a paisagem”. Não pude perceber a paisagem a que você se referia, porque, eu, só conseguia ver os barracos. A diferença entre ver a coisa-em-si e ver para além da coisa. Quer um exemplo literário? (já que a vida é feita de referências literárias...)

“Caímos no canapé, e ficamos a olhar para o ar. Minto; ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas eu creio que Capitu olhava para dentro de si mesma enquanto eu fitava deveras o chão” (página? ?)

Não, não estou te cobrando os livros. Pode ficar mais um tempo com eles. É que apenas gosto demais das ambiguidades machadianas. Tá bom, eles me fazem um pouquinho de falta, sim, mas não estou com saudade deles não...

Ontem à noite fomos, eu e Sassá, à casa de Carol comer lasanha, que aliás estava uma delícia. Sassá entusiasmou-se e fez discurso em homenagem às lasanhas. Bebeu muito vinho e, como sempre, estragou tudo. Até o discurso em homenagem à lasanha, que ele vomitou no tapete verde da sala da Carol. Digo, vomitou a lasanha, literalmente. Dá para acreditar que ele tem amnésia alcoólica?

Continuo esperando tua resposta sobre a nossa viagem no final do ano. A galera toda vai. A Cidinha, o Vitinho, Neusa, Fernando, Mônica. O Eduardo, a Simone. Até o Sassá. E os dois Gustavos. Aviso que a viagem é bem longa. Vê se dá notícias concretas. Nada de “o que ficar resolvido tá bom”. Precisamos nos falar.  

Lembra dos textos que vão ser publicados em livro? Só de “autores inéditos”? Parece ironia. Você mesmo disse uma vez que, à essa altura, ninguém pode mesmo ter ideias originais, e que tudo acaba se resumindo a um interminável trabalho de copia-e-cola. Mas citar o trabalho de um autor como se fosse de outro? A boa notícia é que o livro vai sair. Mesmo.

Ah, outra coisa: coloquei de última hora uma epígrafe no meu texto (mais um copia-e-cola hehe!). Depois, li um artigo que faz uma aproximação – um tanto forçada, é verdade – entre epígrafes e epitáfios. Ai, meu texto!

 

 

sábado, 3 de dezembro de 2022

Papagaio de papel

 

Isabel Pires

 

Seu nome era Carlos Eduardo. Mas somente para a professora do quarto ano. Para a molecada da rua era:

— Duda, traz a bola!

E Duda, nove anos incompletos de idade, disparava rua afora com a bola debaixo do braço, pois ele não sabia jogar bola. Se soubesse, levaria a bola chutando-a desde o quarto, que nem o Neco da dona Marta que, num desses ímpetos de grande jogador, acabou estilhaçando o vidro da janela da sala de casa. Dona Marta danou. E contou pro marido, que deu uma sova no Neco e fez a bola em tiras, com a faca de carne bem afiada.

Duda era muito cuidadoso. Morria de medo de quebrar o vaso chinês de dona Alzira – “Chinês!”, dizia ela, orgulhosa –, que nem sua mãe era, feito dona Marta era mãe do Neco. Dona Alzira era sua madrasta, mas era uma “boadrasta”, e vivia dizendo para as vizinhas:

— O Duda é um menino muito bonzinho! Não dá um pingo de trabalho!

E acrescentava:

— Não é que nem esses moleques atrevidos, que pulam o muro do quintal dos outros para apanhar fruta sem pedir licença! Duda, não! Duda é um menino de ouro!

Mesmo assim, apesar de tantos elogios, Duda tinha um cuidado danado ao passar pela sala de dona Alzira, a bola bem segura debaixo do braço.

Duda entregava a bola para os outros meninos e se sentava no meio-fio da calçada, gritando muito quando o Neco fazia uma daquelas brilhantes defesas. Porque o Neco, apesar de ter complexos de artilheiro, era sempre escalado como goleiro.

— Duda, vem jogar – chamava Neco.

Mas Duda não queria jogar bola. A paixão de Duda era mesmo papagaio. Dia de muito vento, lá estava ele, soltando seu papagaio feito cuidadosamente de papel de seda azul-claro.

— Mas, meu filho, assim ninguém vai ver o papagaio – dizia dona Alzira que, embora fosse apenas sua madrasta, insistia em chamá-lo de filho a toda hora: “Meu filho, já escovou os dentes?”. “Vem papá, filhinho”. “Já fez os exercícios, filho?”.

Duda já tinha feito os exercícios da escola, sim, e agora lá estava ele, todo feliz, soltando seu papagaio azul-claro, num céu mais azul-claro ainda.

— Basta saber que ele tá lá, meu papagaio tão azulzinho.

Num dia de muito vento e muito sol, lá estava Duda empinando seu papagaio azul-claro, num céu também claro, com a camisa azul – mas da cor dos seus olhos, azuis escuros – aberta no peito queimado de sol. O papagaio subia cada vez mais alto, fazendo o entusiasmo de Duda crescer.

— Mas como esse menino sabe onde está o papagaio? – comentava uma vizinha, apertando os olhos para o azul do céu.

De repente, o papagaio azul-claro de Duda começou a perder altura. E foi caindo, caindo. Urgia fazer algo. A linha era muita, e não adiantava enrolá-la, pois o papagaio – tão bonito que ficou esse! – caía cada vez mais rápido. Numa tentativa de suster seu papagaio nas alturas, Duda desceu a rua correndo, correndo, mais depressa, mais depressa. Ah! Agora, sim! Seu papagaio não ia mais cair. Só mais um pouco.

— Corre! Corre! – gritava a molecada da rua, que por um minuto parara a pelada para torcer por Duda.

Em seguida ficaram todos petrificados. Primeiro, com o baque. E depois com a visão de Duda estendido no chão, a camisa tão azul tingindo-se rapidamente de vermelho. O dono do carro, com as mãos na cabeça, ao lado do corpo inerte do menino no chão.

— O quê que eu faço? Por favor, me ajudem. Vocês viram, eu não tive culpa, tive?!

E lá no chão, bem ao lado da bola que, de raiva, o Neco havia chutado longe, estava Duda, a camisa cada vez mais empapada.

Lentamente, o papagaio azul-claro veio descendo, agora vem visível de encontro ao casario, e pousou junto ao corpo do menino. Podia-se ver uma das pontas do papagaio de papel tingida de vermelho, quando tocou de leve na camisa azul.