Isabel Pires
Chegaram
à cidadezinha no começo da noite – um casal e uma criança de pouco mais de
três anos de idade.
Havia
animação na praça. Uma agitação qualquer tomava conta do lugar. Era noite de
festa, e os moradores enchiam as ruas da pequena cidade.
Em
ocasiões assim, quando havia muita gente reunida, é que ele gostava de atacar,
pois aí a féria seria maior. Chamavam-lhe Tenório, mas ninguém sabia se, de
fato, era esse o seu nome de batismo. Cabelos já grisalhos, corpo bem disposto,
estatura mediana. Aparentava uns cinquenta anos de idade. De pouca conversa,
tinha um olhar entre enfadado e impaciente. Não usava revólver nem armas de
espécie alguma. Assaltava sempre de bicicleta. Chegava montado na “magrela” –
que o povo apelidou de “Lurdinha” – e parava no meio da multidão. Sem muito
esforço, fazia o serviço calma e eficientemente e ia-se embora, pedalando
sossegado.
A
sua fama se espalhara pela cidade e arredores, infundindo o terror entre os
habitantes, embora fosse uma figura quase que apenas lendária. Diziam que,
durante o ataque, ninguém ousava contrariá-lo, apesar de não se ter notícia de
qualquer ato violento cometido por Tenório.
Os
visitantes escutaram a história no bar, onde pararam para beber algo. Acharam
prosaica, apenas.
Quando
a animação na rua estava no auge, com os festejos em ritmo acelerado, altas
horas da noite, chegou Tenório montado na sua Lurdinha. Ninguém prestou-lhe
atenção, mais um na festa pública. Somente quando parou a bicicleta no meio do
povo, no gesto característico de fincar um pé no chão, o outro pousado no
pedal, esperando, tranquilamente, que o reconhecessem.
Assim
foi. À boca miúda, o nome dele multiplicou-se: “É Tenório! É Tenório!”. A
multidão, apavorada, escondeu-se como pôde por todos os cantos, atrás dos
carros estacionados em cima das calçadas. A música cessou, todo mundo imóvel.
Esperavam. A lenda rezava que Tenório chamava uma a uma as suas vítimas para
que lhe entregassem o dinheiro. Sempre na mesma sequência: o sujeito precisava
antes contar uma história que fosse do agrado do bandido, depois este recolhia
a assinatura do cidadão numa grande folha de papel e por fim solicitava que lhe
fosse entregue o dinheiro. Caso a história não fosse do agrado de Tenório, o
sujeito poderia ser torturado, ou até coisa pior...
Tenório,
montado na sua bicicleta no meio da praça, um pé fincado no chão, espalhava o
terror. Quem seria o primeiro a ser chamado?
O
clima tenso contaminou os visitantes, que trataram de esconder-se, como os
demais, atrás de um dos carros estacionados sobre a calçada. Porém, ao
contrário dos habitantes da cidade, que se mantinham imóveis, petrificados mesmo,
os três arrastavam-se sorrateiramente pelo chão, desviando-se de braços, pernas
e outros obstáculos da melhor forma possível, na esperança de não produzirem
nenhum ruído que pudesse chamar a atenção de Tenório. As pessoas olhavam-nos,
embasbacadas. A mulher carregava a criança, embora estivesse quase em posição
horizontal. Em seguida, como continuação das pernas dela, vinha o marido,
guiando-a pelas melhores passagens. O povo abria caminho como podia, sem se
mexer do lugar.
Foi
quando viram um portão entreaberto. Foram penetrando por ali, procurando não
esbarrar no portão de ferro pintado de marrom. Uma luz acesa no alto da parede
lateral da casa desenhava no chão, bem próximo a Tenório, a sombra do portão
semiaberto. Qualquer esbarrão nele, pois, poderia despertar a atenção do
terrível bandido parado lá no meio da praça.
Entretanto,
os três chegaram a salvo ao jardim da casa, um minúsculo retângulo, cheio de
galhas que se precipitavam abundantes para fora do muro. Qualquer toque numa
das galhas poderia ser fatal, pois Tenório, montando guarda no meio da praça,
poderia atentar para o fato. A mulher soube, nesse momento, como era difícil
esconder um homem e uma criança, e ainda esconder-se também. Um enorme homem,
que precisava fazer um grande esforço para manter o topo da cabeça abaixo da
linha do pequeno muro do jardim onde estavam. E um menino de pouco mais de três
anos de idade, irrequieto por causa mesmo da idade. No entanto, os três
mantinham-se calmos, esperando apenas uma oportunidade para alcançarem a janela
aberta. Mas como, se a janela era bem de frente para a rua, bem na mira de
Tenório? Impossível, pois, alcançá-la.
Lá
na praça, Tenório já havia começado o trabalho. Muitos já lhe tinham contado as
histórias, assinado a célebre folha de papel e por fim entregue o dinheiro,
sendo dispensados a seguir. Alguns, os mais medrosos, haviam se urinado nas
calças diante de Tenório, mas este, num gesto de extrema condescendência, fingira não perceber – embora não deixasse de torcer o canto do lábio, num sorrisinho
de escárnio.
Tenório
chamou o próximo – um jovem bastante alto e excessivamente magro. Cabelos
cheios de brilhantina, partidos de lado, o rapaz foi caminhando um tanto afoito
em direção ao bandido.
Tenório
olho-o de alto a baixo, desconfiado. Temeroso talvez de ouvir mais uma história
sem graça, inutilmente, em troca da parcas moedas, foi logo perguntando, meio
que afirmando:
— Você não tem dinheiro aí, tem?
O rapaz, desculpando-se muito,
confirmou: realmente, não trazia nada consigo, infelizmente não poderia dar sua
contribuição naquele momento. Porém, gostaria muito de aproveitar aquela grande
oportunidade para pedir-lhe uma coisa, se possível, claro, e se não fosse
incomodar...
— O que é? – quis saber Tenório,
impaciente.
Gaguejando, o rapaz pediu-lhe um
autógrafo, pois desde há muito o admirava e...
Tenório olhou de banda, mais
desconfiado. Aquiesceu, porém.
O jovem, sacando do bolso um pedaço de papel e caneta, disparou, completamente feliz, em direção a Tenório.
Era a oportunidade esperada. O
casal de forasteiros, aproveitando os segundos em que Tenório se mantinha
distraído, autografando, pulou rapidamente a janela da casa, aos trambolhões, a
mulher sempre agarrada à criança.
Caíram num quarto, bem em cima de
uma cama de casal revirada de lençóis e travesseiros. Estavam a salvo, e em
definitivo, do terrível Tenório.
Nisso, chegou o dono da casa, que havia sido dispensado por Tenório há pouco. Vinha acabrunhado por ter cedido tão facilmente à intimação quase que hipnótica do bandido. Desolado, entrou no quarto, o fino bigodinho com as pontas caídas sobre os lábios tristes, desenhando uma linha de amargura sobre a boca meio murcha, quando deparou-se, estarrecido, com os três estranhos.
— O que é isto? Que fazem aqui?!
O homem e a mulher puseram-se a
explicar, atropeladamente. O dono da casa, indignado, não aceitava o fato de
terem, aqueles forasteiros, escapado da intimação de Tenório. Resolveu ir até a
praça, para delatá-los ao bandido. A mulher entrou em pânico. Seu marido segurou o outro
homem, impedindo-o o de sair. Trancou todas as portas e janelas e ficou de
posse das chaves, montando guarda no sofá da sala.
O dono da casa, de larga barriga
e pernas finas, chapéu de feltro preto à cabeça, refletia, sentado numa das
cadeiras da mesa, sob o olhar vigilante dos invasores. Subitamente, lembrou-se
do revólver guardado há anos na gaveta da mesinha à cabeceira da cama. Foi
buscá-lo.
O casal, de posse das chaves da
casa, respirava tranquilo, sem se preocupar com a saída do homem da sala.
Afinal, estavam no controle da situação, não estavam? Então, inesperadamente, o
dono da casa invadiu a saleta, ameaçando os visitantes com seu velho revólver.
A mulher levantou-se,
repentinamente enfurecida, o rosto vermelho de raiva, os olhos saltados das
órbitas.
— O quê?! Escuta aqui, seu
covarde. Um homem assalta a cidade inteira sem nenhuma arma, e o senhor vem
ameaçar pessoas indefesas com esse revólver? É muita covardia... Não respeita nem
a criança, seu covarde! – vociferava ela, fora de si.
O homem com o revólver avançou
para ela, colérico. A mulher deu um grito estridente e correu para o quarto.
Ele foi atrás, enlouquecido de raiva. Falava entre dentes, tremendo:
— Covarde, eu? Ninguém me chama
de covarde! Vou mostrar quem é covarde.
Agarrou a mulher pela gola da
roupa, sacudindo-a. E como era muito mais baixo do que ela, a cena tornava-se
grotesca. O chapéu de feltro caiu, tombando no chão. A mulher, apavorada, olhos
esbugalhados, não emitia sequer um grunhido. Viu o cano do revólver
aproximar-se do seu peito e encontrou forças apenas para dizer sufocada “Ele
vai me matar!”.
O marido assistia à cena sem se
mover do lugar. A criança olhava tudo de olhos bem abertos.
A mulher, como que hipnotizada,
via o cano do revólver colado ao seu peito. Era agora. Ele já o engatilhava.
Talvez tivesse sido melhor enfrentarem Tenório, afinal de contas, pensou ela,
num lampejo de lucidez.
Então o homem puxou o gatilho.
Ouviu-se um estampido surdo e a
mulher deu um grito abafado, fechando os olhos e tapando o rosto com as mãos.
Não queria testemunhar a própria morte.
Porém, nada mais aconteceu. O
baixinho olhava espantado para o revólver traidor. A bala parecia ter
engasgado, entalada dentro do cano da arma. A mulher, aproveitando o milagre,
abaixou-se rapidamente. Alguns segundos depois, a bala finalmente saiu, quase
que em câmera lenta, ricocheteando na parede e indo estacionar mansamente no
chão, sobre o tapete gasto da pequena sala de visitas. Era, na verdade, a
primeira bala a ser atirada daquele velho revólver, nele já há mais de dez
anos.
Os forasteiros, espantados,
acompanharam com olhos esbugalhados a trajetória da bala. Estupefatos,
deixaram-se cair no sofá e repentinamente caíram na gargalhada. Não se
continham, torcendo-se de tanto rir. Levantaram-se, cambaleando, sacudidos pelo
riso. Apanharam as chaves, abriram a porta da rua e saíram, levando consigo o
menino, que não entendia direito o que havia se passado.
Estático, o homenzinho permanecia na sala, sem dizer palavra. Olhava com desgosto para o revólver entre as mãos, uma raiva surda entalando-lhe a garganta.
Os três forasteiros chegaram à
rua a tempo de ver, destacando-se contra o fundo negro da noite, a figura de
Tenório, pedalando despreocupado sua bicicleta.
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