Isabel Pires
Sinto o olhar dele grudado nos contornos da minha boca enquanto passo o batom. Ele me olha através do espelho, sentado na poltrona perto da janela. Meu olhar também está concentrado nos meus próprios lábios, refletidos no espelho à minha frente, mas posso sentir o olhar dele. E a sensação de saber que ele me observa vai subindo gelada pela minha espinha, como uma lâmina afiada e fina, até chegar à nuca. Volto a cabeça rapidamente, a tempo de surpreender o olhar dele mudando de direção.
—
Estou demorando?
—
Tem tempo de sobra ainda.
Eu
poderia dizer que não, não me importo de esperar. Gosto de vê-la se maquiando,
passando o batom lentamente sobre os lábios até deixá-los assim, espessos, irreais.
“Estou demorando?”. Está sim, mas não me importo de esperar a eternidade
inteira, de ficar olhando-a enquanto se maquia. Mas eu sei que ela prefere que
eu saia do quarto. A minha presença deve incomodar, talvez pesar como um pedra.
—
Vou tomar um drinque.
—
Não vou demorar.
Vai
tomar um drinque. Quando eu chegar lá na sala, ele já bebeu quase toda a
garrafa. Depois, vai ficar insuportável, dizendo coisas desagradáveis. E rindo,
rindo como um debiloide. Engraçado como a ausência dele incomoda também. Porque
sei que ele está lá na sala, tomando um porre de uísque. Com muito gelo. Gelo que
não derrete. E a presença dele também não, pairando insistente no ar,
penetrando na minha cabeça, nervo por nervo. Minha imagem me olha do fundo do
espelho e retorce a boca, numa expressão de escárnio. Ri do meu desejo de
liberdade. Sabe das correntes que vão crescendo mais e mais, monstruosas, nos
sufocando, me sufocando, à medida em que o tempo passa. Novamente o olhar dele,
parado junto à porta, me observando enquanto passo o perfume.
—
Já estou pronta. Gosta do perfume?
—
Adorável.
Mentira.
Nem sei que cheiro tem. Só sinto o cheiro do uísque, tão bom esse torpor gelado
na língua que vai subindo para minha cabeça, deixando-a oca, vazia de
pensamentos. Ela fecha o frasco de perfume e dá os últimos retoques em frente
ao espelho. Está linda. Deve estar cheirosa também. Lançou-me um olhar apreensivo.
Sabe que bebi. Tem medo de mim quando bebo, eu sei. Mas assim mesmo ergue a
cabeça, altiva. Vai andando à minha frente, como uma deusa orgulhosa. E posso
apenas pressentir as ondas de perfume que se desprendem dela.
—
Vou tirar o carro da garagem.
—
Eu dirijo.
Ele me olha, o rosto pétreo, sem expressão. Depois, o olhar é de surpresa, e, na sequência, de ironia. Sorri, divertido, balançando as chaves diante de mim. Retira o carro da garagem, exagerando os cuidados. Faz questão de vir abrir-me a porta, contornando a frente do carro. Entro no carro como uma madame. Enquanto dirige, não pode me observar. Mas sinto seu pensamento deslizando pelos meus braços, subindo pelo meu pescoço. Abro a janela do carro para sentir o vento frio da noite. Muito frio. Estremeço e volto a fechar o vidro. Dentro, o ar é morno e repentinamente aconchegante. Ele liga o rádio, baixinho, e o som fragmentado da música se mistura com restos de uísque e perfume, viajando juntos dentro da noite.
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