domingo, 18 de dezembro de 2022

Para ir a uma festa

 Isabel Pires

Sinto o olhar dele grudado nos contornos da minha boca enquanto passo o batom. Ele me olha através do espelho, sentado na poltrona perto da janela. Meu olhar também está concentrado nos meus próprios lábios, refletidos no espelho à minha frente, mas posso sentir o olhar dele. E a sensação de saber que ele me observa vai subindo gelada pela minha espinha, como uma lâmina afiada e fina, até chegar à nuca. Volto a cabeça rapidamente, a tempo de surpreender o olhar dele mudando de direção.

— Estou demorando?

— Tem tempo de sobra ainda.

Eu poderia dizer que não, não me importo de esperar. Gosto de vê-la se maquiando, passando o batom lentamente sobre os lábios até deixá-los assim, espessos, irreais. “Estou demorando?”. Está sim, mas não me importo de esperar a eternidade inteira, de ficar olhando-a enquanto se maquia. Mas eu sei que ela prefere que eu saia do quarto. A minha presença deve incomodar, talvez pesar como um pedra.

— Vou tomar um drinque.

— Não vou demorar.

Vai tomar um drinque. Quando eu chegar lá na sala, ele já bebeu quase toda a garrafa. Depois, vai ficar insuportável, dizendo coisas desagradáveis. E rindo, rindo como um debiloide. Engraçado como a ausência dele incomoda também. Porque sei que ele está lá na sala, tomando um porre de uísque. Com muito gelo. Gelo que não derrete. E a presença dele também não, pairando insistente no ar, penetrando na minha cabeça, nervo por nervo. Minha imagem me olha do fundo do espelho e retorce a boca, numa expressão de escárnio. Ri do meu desejo de liberdade. Sabe das correntes que vão crescendo mais e mais, monstruosas, nos sufocando, me sufocando, à medida em que o tempo passa. Novamente o olhar dele, parado junto à porta, me observando enquanto passo o perfume.

— Já estou pronta. Gosta do perfume?

— Adorável.

Mentira. Nem sei que cheiro tem. Só sinto o cheiro do uísque, tão bom esse torpor gelado na língua que vai subindo para minha cabeça, deixando-a oca, vazia de pensamentos. Ela fecha o frasco de perfume e dá os últimos retoques em frente ao espelho. Está linda. Deve estar cheirosa também. Lançou-me um olhar apreensivo. Sabe que bebi. Tem medo de mim quando bebo, eu sei. Mas assim mesmo ergue a cabeça, altiva. Vai andando à minha frente, como uma deusa orgulhosa. E posso apenas pressentir as ondas de perfume que se desprendem dela.

— Vou tirar o carro da garagem.

— Eu dirijo.

Ele me olha, o rosto pétreo, sem expressão. Depois, o olhar é de surpresa, e, na sequência, de ironia. Sorri, divertido, balançando as chaves diante de mim. Retira o carro da garagem, exagerando os cuidados. Faz questão de vir abrir-me a porta, contornando a frente do carro. Entro no carro como uma madame. Enquanto dirige, não pode me observar. Mas sinto seu pensamento deslizando pelos meus braços, subindo pelo meu pescoço. Abro a janela do carro para sentir o vento frio da noite. Muito frio. Estremeço e volto a fechar o vidro. Dentro, o ar é morno e repentinamente aconchegante. Ele liga o rádio, baixinho, e o som fragmentado da música se mistura com restos de uísque e perfume, viajando juntos dentro da noite.


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