terça-feira, 4 de julho de 2023

O pequinês

 Isabel Pires

 

— Eu tenho um pet! – anunciou a mulher entrando no salão repleto. Era uma festa. Uma festa de réveillon. Alguns convivas voltaram-se e examinaram sem muito interesse a recém-chegada.

A mulher, com gestos melífluos, exibia no dedo anular um solitário enorme.

— É verdade – insistiu. – Tenho um pet, sabe? Um pequinês. Ele me segue por toda parte. Vou ao mercado, lá vai ele abanando o rabinho. Vou ao shopping, ele vai junto. Vou ao banco, ele também vai. Vou a uma festa...

— O seu pet também veio? – interrompeu um homem que, com lentos movimentos circulares, mexia com o dedo o gelo no copo de uísque.

— No começo, sabe? – prosseguiu a mulher, sem ligar para a interrupção – era bom. Eu o exibia a todo mundo. Mas depois foi ficando cansativo. Um pet cansa – declarou, tomando um largo gole do copo que segurava. Fez uma careta – Bebida horrível! Garçom! – chamou, saindo da sala.

— Ué, pensei que ela morasse em apartamento – comentou um rapaz para a namorada.

— E daí? – retrucou ela – Muita gente cria cachorro em apartamento, não sabia? Ainda mais ela, que mora em uma puta cobertura... – e rindo empurrou o rapaz para a pista de dança onde vários braços já se acotovelavam ao som da música eletrônica.  

— Vamos dançar? – perguntou o homem de copo de uísque na mão, dirigindo-se a uma moça recostada a uma janela.

— Desculpe, mas não posso. Estou com o pé machucado – E a moça, discretamente, deixou o pé esquerdo à mostra, onde podia-se ver um pedaço de esparadrapo ocultando um pequenino corte.

— Ah!, que pena! – lamentou o homem, bebendo um gole curto do uísque – Você conhece aquele cara ali? – perguntou ele, observando o olhar da moça em direção a um jovem sentado a um canto, de cabeça baixa, parecendo totalmente alheio a tudo.

— Não. – A moça desviou o olhar – Desculpe mesmo, mas hoje não estou em clima de festa. Vou tomar ar. – E saiu em direção ao jardim.

O homem, ainda segurando o copo de uísque, dirigiu-se a um dos sofás e entabulou conversa com uma loura sorridentíssima que, decididamente, estava em clima de festa.

O rapaz, encolhido a um canto, tomou o último gole da sua vodca e, enfiando a mão na vasta cabeleira escura e cheia de anéis, desgrenhou-a, sacudindo os cachos. Pediu uma nova dose ao garçom que passava com a bandeja de copos e garrafas, e ficou mastigando, sem grande interesse, um tira-gosto qualquer.

A festa prosseguia, impelida pela súbita animação que se instalou. Contagem regressiva para o ano que se despedia. Contagem progressiva para a entrada do ano novo? Dez, nove, oito... Lá fora, os fogos de artifício espoucavam nos céus. As mulheres gritavam freneticamente. Alguns homens bebiam champanha no gargalo da garrafa. Os garçons, finalmente também eles, bêbados e sonolentos, distribuíam-se nos sofás, pelas almofadas no chão, no tapete.

No canto da sala permanecia, imutável, o rapaz de vasta cabeleira encaracolada, digerindo mais uma dose, servindo-se, agora ele próprio, da garrafa de vodca ao seu alcance.

Pela manhã, não havia mais ninguém, nem no salão, nem no jardim. Mas os vestígios da festa de réveillon eram visíveis por todos os lados, nítidos. Garrafas quebradas, copos espalhados, manchas nos estofados, buracos de cigarros nas cortinas, farelos pelos tapetes. E cobrindo tudo, compridas fitas de serpentinas coloridas.

Ao limpar a casa, uma das faxineiras encontrou, num dos cantos da sala, uma minúscula coleira de outro, cravejada de diamantes, com um nome de homem gravado no lado interno do delicado objeto.

 

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