sábado, 5 de novembro de 2022

O circo na chuva

                                                                                                                             Isabel Pires

A chuva caía forte. Era cedo ainda, mas ela seguia, protegida por um imenso guarda-chuva. Parado no ponto final, o ônibus, magnífico sob o aguaceiro. Fechou o guarda-chuva e entrou.

— Coloca aqui, olha.

O seu companheiro de banco tomou-lhe o guarda-chuva encharcado e pendurou-o no ferro do banco em frente. A moça deu um meio-sorriso de agradecimento e fixou o olhar na pequenina poça d’água que já se formava no chão. No ônibus lotado, alguém, impaciente com a demora, batia com o pé no assoalho.

Sob a espessa cortina d’água, o ônibus se pôs lentamente em marcha. Um homem, de pé, entreabrira a camisa, e no seu peito gotas de suor se misturavam às da chuva. Fazia calor.

— Posso levar seu pacote?

Uma moça tomou o embrulho, apoiando-o na palma da mão esquerda. Pesava. Através do papel pardo já quase desmanchado, sentiu o frio do aço. Um objeto metálico? E quadrado, sólido. Num dos bancos, um casal conversava, animado.

— Esse horário é fogo. Com chuva, então... – Disse o homem.

Os olhos da mulher se abriam em espanto, contando os detalhes do dia anterior.

— Aí sabe o que o meu gerente fez? – Ela perguntou, enquanto o homem ao seu lado observava o trânsito sob o temporal. – Pegou um revólver de brinquedo, encheu de chumbinho e esperou a garota subir a escada.

— Atirou? – Ele voltou-se, repentinamente curioso.

O risinho estridente dela tilintou, prazeroso.

— Ela quase morreu de susto. Olha, meu gerente é fogo. Inventa cada coisa para assustar as meninas da loja... Só eu que não caio. Quando vou lá em cima, subo devagarinho, olhando para todos os lados. Meu gerente é fogo – repetiu, e forçou um sorriso.

O ônibus se sacudiu na curva.

— Sabe, outro dia foi um estilingue – recomeçou a mulher. Mas o seu interlocutor se concentrava na demora do ônibus, consultando, nervoso, o relógio.

Mais à frente, um chapéu de palha destacava-se entre os passageiros. Pertencia a um idoso. O movimento brusco do ônibus fez com que um jovem, de pé, pendurado por um braço no ferro do ônibus, atingisse, num golpe da mão livre, o chapéu de palha. O chapéu deu um pulo, quase saltando da cabeça do homem. O dono do chapéu voltou-se. Seu olhar fixou o jovem, insistentemente. Mas este olhava, através do vidro enfumaçado, a rua alagada, atulhada de ônibus e carros. O velho consertou o chapéu de palha na cabeça. Mais alguns minutos e levantou-se, rompendo cabisbaixo a massa compacta dos passageiros em pé. Distraído, o jovem não ocupou o lugar deixado pelo velho. Nem mesmo percebeu quando ele deixou o ônibus. Quando outra pessoa sentou no lugar do velho, o jovem, pousando o olhar no novo passageiro, sem saber que era o chapéu de palha, sentiu vaga falta de alguma coisa.

O ônibus ia aos solavancos pela pista esburacada. Mas os buracos eram apenas pressentidos. A moça do enorme guarda-chuva relanceou um olhar pelo vidro completamente embaçado, no qual o seu vizinho de banco escrevera com o dedo as palavras “Carla” e “eu te amo”. Ela sorriu. E tentou acompanhar os caminhos que as gotas de água iam fazendo pelo lado de fora do vidro. Mas eles, como lágrimas, desmanchavam-se e embaralhavam-se uns nos outros, impossível seguir-lhes.

O rapaz da camisa entreaberta pegou o embrulho de volta. Ia ficar no próximo ponto.

O ônibus seguia pela avenida na manhã encharcada. Parava nos pontos e arrancava novamente, aos saltos. A moça tomou o guarda-chuva, preparando-se para levantar. E, antes que o ônibus desse outro arranco, viu, lá fora, por entre os claros das letras no vidro, a lona colorida de um circo, cujas cores pareciam mais vivas sob a chuva.

***

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