Isabel Pires
A chuva caía forte. Era cedo ainda, mas ela seguia, protegida por um imenso guarda-chuva. Parado no ponto final, o ônibus, magnífico sob o aguaceiro. Fechou o guarda-chuva e entrou.
—
Coloca aqui, olha.
O
seu companheiro de banco tomou-lhe o guarda-chuva encharcado e pendurou-o no
ferro do banco em frente. A moça deu um meio-sorriso de agradecimento e fixou o
olhar na pequenina poça d’água que já se formava no chão. No ônibus lotado,
alguém, impaciente com a demora, batia com o pé no assoalho.
Sob
a espessa cortina d’água, o ônibus se pôs lentamente em marcha. Um homem, de
pé, entreabrira a camisa, e no seu peito gotas de suor se misturavam às da
chuva. Fazia calor.
—
Posso levar seu pacote?
Uma
moça tomou o embrulho, apoiando-o na palma da mão esquerda. Pesava. Através do
papel pardo já quase desmanchado, sentiu o frio do aço. Um objeto metálico? E
quadrado, sólido. Num dos bancos, um casal conversava, animado.
—
Esse horário é fogo. Com chuva, então... – Disse o homem.
Os
olhos da mulher se abriam em espanto, contando os detalhes do dia anterior.
—
Aí sabe o que o meu gerente fez? – Ela perguntou, enquanto o homem ao seu lado
observava o trânsito sob o temporal. – Pegou um revólver de brinquedo, encheu de
chumbinho e esperou a garota subir a escada.
—
Atirou? – Ele voltou-se, repentinamente curioso.
O
risinho estridente dela tilintou, prazeroso.
—
Ela quase morreu de susto. Olha, meu gerente é fogo. Inventa cada coisa para
assustar as meninas da loja... Só eu que não caio. Quando vou lá em cima, subo
devagarinho, olhando para todos os lados. Meu gerente é fogo – repetiu, e
forçou um sorriso.
O
ônibus se sacudiu na curva.
—
Sabe, outro dia foi um estilingue – recomeçou a mulher. Mas o seu interlocutor
se concentrava na demora do ônibus, consultando, nervoso, o relógio.
Mais
à frente, um chapéu de palha destacava-se entre os passageiros. Pertencia a um
idoso. O movimento brusco do ônibus fez com que um jovem, de pé, pendurado por
um braço no ferro do ônibus, atingisse, num golpe da mão livre, o chapéu de
palha. O chapéu deu um pulo, quase saltando da cabeça do homem. O dono do
chapéu voltou-se. Seu olhar fixou o jovem, insistentemente. Mas este olhava,
através do vidro enfumaçado, a rua alagada, atulhada de ônibus e carros. O
velho consertou o chapéu de palha na cabeça. Mais alguns minutos e levantou-se,
rompendo cabisbaixo a massa compacta dos passageiros em pé. Distraído, o jovem
não ocupou o lugar deixado pelo velho. Nem mesmo percebeu quando ele deixou o
ônibus. Quando outra pessoa sentou no lugar do velho, o jovem, pousando o olhar
no novo passageiro, sem saber que era o chapéu de palha, sentiu vaga falta de
alguma coisa.
O
ônibus ia aos solavancos pela pista esburacada. Mas os buracos eram apenas
pressentidos. A moça do enorme guarda-chuva relanceou um olhar pelo vidro
completamente embaçado, no qual o seu vizinho de banco escrevera com o dedo as
palavras “Carla” e “eu te amo”. Ela sorriu. E tentou acompanhar os caminhos que
as gotas de água iam fazendo pelo lado de fora do vidro. Mas eles, como
lágrimas, desmanchavam-se e embaralhavam-se uns nos outros, impossível
seguir-lhes.
O
rapaz da camisa entreaberta pegou o embrulho de volta. Ia ficar no próximo
ponto.
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