quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Dona Jerusa ou a arte de andar deprimida nas ruas tijucanas

 

Isabel Pires

 

O que significa “morrer de depressão”? Pois o porteiro do prédio disse que ela havia “morrido de depressão”, quando perguntei, diante do anúncio fúnebre afixado no saguão da entrada, de quê que a dona Jerusa havia morrido.

Há apenas três dias encontrei-a no elevador. Ela não me parecera em absoluto doente. Sequer deprimida. Mas ela “morrera de depressão”, conforme tinha dito o porteiro, “seu” Antônio. Saímos juntas do elevador e seguimos juntas pela rua até o supermercado, onde dona Jerusa entrou e desapareceu por entre as prateleiras.

Como pode alguém deprimido gostar tanto de supermercado? Dia sim, dia não, lá ia dona Jerusa ao supermercado, de onde retornava com algumas sacolas de petiscos. Gulosa? À primeira vista, aquela senhora de setenta e três anos, que usava largos óculos escuros e pintava os cabelos de ruivo, parecia mais uma modelo anoréxica da terceira idade. Não devia ser gulosa. Um corpo esbelto e as unhas tratadas toda semana no salão da esquina atestavam o extremo cuidado de dona Jerusa com a própria aparência.

Mas ela “morrera de depressão”, era certo? Talvez, justamente por sofrer disso, fosse tanto ao supermercado. E ao salão.

Dona Jerusa morava numa cobertura de um prédio de classe média da Tijuca. A pensão do marido e algumas rendas “de alugueres” – na terminologia do filho advogado – a deixavam viver com folga. Ela e o filho. Filho único, aquele homem já meio calvo, um tanto acima do peso e muito sério, sempre engravatado, indo e vindo de casa para o escritório de advocacia no centro da cidade. Certamente, um belo escritório, equipado com muitos livros de direito civil e penal, que deviam povoar as prateleiras de uma sólida estante. Uma bela e consolidada carreira, para um homem tão pacato, que aparentava não saber o que fosse paixão.

Aquele advogado sério e caladão, com um jeito meio tímido de garoto apanhado em falta, aparentava sequer saber imaginar o que fosse uma paixão. De casa para o trabalho, do trabalho para casa, sem qualquer paixão atravessando-lhe o caminho. Especialista em casos criminais, sua vida profissional talvez rendesse um bom romance policial. Sua vida amorosa, porém, não daria um bolero gasto, menos ainda um folhetim melodramático.

Mas nada disso vem ao caso. Aqui, só dona Jerusa importa e sua súbita “morte por depressão”. O filho – Adalberto, era seu nome –, agora órfão de pai e mãe, tratou de tudo com a seriedade engravatada que lhe era peculiar. O enterro, no cemitério do Caju, sem qualquer alarde. Bem discreto, como dona Jerusa e sua “morte por depressão”.

Refaçamos o trajeto solitário de dona Jerusa até o supermercado, de onde ela voltava com suas sacolas de petiscos. Comecemos pelos indefectíveis e largos óculos escuros de dona Jerusa. Por detrás daquelas lentes, a depressão talvez escorresse abundantemente nos olhos vermelhos que ninguém nunca via. Dona Jerusa podia ir e vir. De casa para o supermercado. Do supermercado para casa. Era um trajeto bem seguro, naquelas ruas tijucanas. Ainda que não deixassem de ser ruas do Rio de Janeiro. Ela também podia se dar ao luxo de ficar deprimida. Em casa, no elevador ou na rua. No supermercado, tinha a liberdade de ficar deprimida sobre alfaces e morangas, que ninguém jamais desconfiaria. Também podemos intuir que, mesmo sem os óculos largos e de lentes muito escuras, dona Jerusa poderia ficar deprimida onde quisesse e à hora em que bem entendesse. Quem se importa com uma senhora idosa, de cabelos ruivos e passos rápidos, que atravessa deprimida as ruas do Rio de Janeiro?

O “seu” Antônio, o porteiro, afirmou ainda que dona Jerusa vivia deprimida. Pois ela não “morrera de depressão”?

Para dona Jerusa, viver e morrer deviam ser igualmente simples. Talvez até indiferentes. O único alarde de sua existência discreta expresso naquele cabelo vermelho, que se refletia mais vermelho, faiscando raios de sol – quase um pedaço de vitral gótico cingindo a cabeça de uma santa pós-moderna – quando ela atravessava, imperturbável, as ruas da Tijuca em direção ao supermercado.

O que será que significa “invadir todo o campo magnético”? Pois foi o que a dona Jerusa disse, na última vez em que a encontrei no elevador. O elevador havia parado em um andar qualquer, e um gigantesco carrinho de bebê entrou, guiado pela mãe e pela avó. O carrinho, com um sorridente bebê dentro dele, ocupou todo o espaço, espremendo a mim e a dona Jerusa contra o fundo do elevador. Por detrás das lentes, ela murmurou qualquer coisa inaudível. E apenas consegui captar o último trecho, algo sobre como “invadir todo o campo magnético”?

“Morreu como um passarinho”, nas palavras do “seu” Antônio. Sem qualquer queixa da vida ou da morte. Exceto por aquele absurdo e inexplicável comentário sobre a “invasão de um campo magnético”, que poderia nem ser queixa, é verdade. Simples palavras aleatórias e inofensivas, lançadas contra o fundo de um elevador, como as que jogamos aleatoriamente pelo caminho, quando seguimos depois pela rua até dona Jerusa entrar no supermercado.

Miúda, o caixão ficou enorme para o corpo mignon de dona Jerusa. O caixão de madeira maciça – “coisa fina, que o doutor Adalberto não ia economizar”, dissera “seu” Antônio – desceu pelo elevador de serviço. Talvez tivesse sido a primeira vez, em tantos e tantos anos, que a dona Jerusa descia pelo elevador de serviço. O “seu” Antônio, o porteiro, ajudou a segurar com presteza a alça dourada, como ajudava a carregar as sacolas de supermercado de dona Jerusa. Ajudou a levar o caixão, com dona Jerusa dentro, até o carro da funerária, que a levaria até o cemitério do Caju.

Junto do elevador, ao terminar de ler o aviso fúnebre da “morte por depressão” de dona Jerusa, escutei o “seu” Antônio responder: “Dona Jerusa? Morreu de depressão”. Mas eram aquelas palavras incompreensíveis de dona Jerusa, dentro do elevador, e que agora me pareciam misteriosas, até mesmo esotéricas, carregadas de um sentido sobrenatural, que me vinham à mente. Por detrás daquelas largas lentes escuras, ela havia falado, enigmaticamente, “invadir todo o campo magnético”?

Ao enterro, às quatro horas da tarde de uma quarta-feira ensolarada, compareceram pouquíssimas pessoas. Quase ninguém. Ninguém do prédio. Nos dias que se seguiram, ninguém do prédio deu pela falta de dona Jerusa. Nem o “seu” Antônio. Nem as crianças que brincavam no terraço, ao lado de sua casa, e a quem, de vez em quando, ela levava caramelos, que a molecada pegava, sôfrega. Sempre com seus enormes óculos escuros, aonde quer que fosse. O mundo para ela talvez tivesse sido eternamente escuro, indistintos os dias e as noites. Mesmo quando ia ao supermercado, buscar seus petiscos com os quais talvez chegasse a se deliciar, embora extremamente deprimida.

Dias depois e um novo aviso na portaria do prédio convidava os moradores para a missa de sétimo dia de dona Jerusa. Alguns vizinhos, embora um tanto reticentes, compareceram à basílica de Santa Terezinha, onde viram a chuva de pétalas de rosas cair em intenção da alma de dona Jerusa. Tão deprimida.

O “seu” Antônio, o porteiro, não foi, sempre às voltas com interfones e sacolas de supermercado. Se tivesse ido, poderia ter visto o doutor Adalberto, o advogado criminalista da cobertura, na primeira fila de bancos da igreja. Certamente, diria que, agora, era o filho de dona Jerusa que estava deprimido, e que, em breve, iria morrer. De depressão, naturalmente. De gravata, sentado sozinho no banco de madeira da igreja de Santa Terezinha, aquele homem parecia isolado num estranho campo magnético. Placidamente nervoso, limpava a todo instante o suor que gotejava da testa larga. No rosto, uns grandes óculos escuros, de lentes imensas, através das quais – talvez – um par de olhos deprimidos enxergassem o mundo como uma infinita noite eternamente escura e sombria.

Nenhum comentário:

Postar um comentário