Isabel
Pires
O que significa “morrer
de depressão”? Pois o porteiro do prédio disse que ela havia “morrido de
depressão”, quando perguntei, diante do anúncio fúnebre afixado no saguão da
entrada, de quê que a dona Jerusa havia morrido.
Há apenas três dias
encontrei-a no elevador. Ela não me parecera em absoluto doente. Sequer deprimida.
Mas ela “morrera de depressão”, conforme tinha dito o porteiro, “seu” Antônio. Saímos
juntas do elevador e seguimos juntas pela rua até o supermercado, onde dona
Jerusa entrou e desapareceu por entre as prateleiras.
Como pode alguém deprimido
gostar tanto de supermercado? Dia sim, dia não, lá ia dona Jerusa ao
supermercado, de onde retornava com algumas sacolas de petiscos. Gulosa? À primeira
vista, aquela senhora de setenta e três anos, que usava largos óculos escuros e
pintava os cabelos de ruivo, parecia mais uma modelo anoréxica da terceira
idade. Não devia ser gulosa. Um corpo esbelto e as unhas tratadas toda semana
no salão da esquina atestavam o extremo cuidado de dona Jerusa com a própria
aparência.
Mas ela “morrera de depressão”,
era certo? Talvez, justamente por sofrer disso, fosse tanto ao supermercado. E ao
salão.
Dona Jerusa morava numa
cobertura de um prédio de classe média da Tijuca. A pensão do marido e algumas
rendas “de alugueres” – na terminologia do filho advogado – a deixavam viver
com folga. Ela e o filho. Filho único, aquele homem já meio calvo, um tanto acima
do peso e muito sério, sempre engravatado, indo e vindo de casa para o
escritório de advocacia no centro da cidade. Certamente, um belo escritório,
equipado com muitos livros de direito civil e penal, que deviam povoar as
prateleiras de uma sólida estante. Uma bela e consolidada carreira, para um
homem tão pacato, que aparentava não saber o que fosse paixão.
Aquele advogado sério e
caladão, com um jeito meio tímido de garoto apanhado em falta, aparentava
sequer saber imaginar o que fosse uma paixão. De casa para o trabalho, do
trabalho para casa, sem qualquer paixão atravessando-lhe o caminho. Especialista
em casos criminais, sua vida profissional talvez rendesse um bom romance
policial. Sua vida amorosa, porém, não daria um bolero gasto, menos ainda um
folhetim melodramático.
Mas nada disso vem ao
caso. Aqui, só dona Jerusa importa e sua súbita “morte por depressão”. O filho –
Adalberto, era seu nome –, agora órfão de pai e mãe, tratou de tudo com a
seriedade engravatada que lhe era peculiar. O enterro, no cemitério do Caju,
sem qualquer alarde. Bem discreto, como dona Jerusa e sua “morte por depressão”.
Refaçamos o trajeto
solitário de dona Jerusa até o supermercado, de onde ela voltava com suas
sacolas de petiscos. Comecemos pelos indefectíveis e largos óculos escuros de
dona Jerusa. Por detrás daquelas lentes, a depressão talvez escorresse
abundantemente nos olhos vermelhos que ninguém nunca via. Dona Jerusa podia ir
e vir. De casa para o supermercado. Do supermercado para casa. Era um trajeto
bem seguro, naquelas ruas tijucanas. Ainda que não deixassem de ser ruas do Rio
de Janeiro. Ela também podia se dar ao luxo de ficar deprimida. Em casa, no
elevador ou na rua. No supermercado, tinha a liberdade de ficar deprimida sobre
alfaces e morangas, que ninguém jamais desconfiaria. Também podemos intuir que,
mesmo sem os óculos largos e de lentes muito escuras, dona Jerusa poderia ficar
deprimida onde quisesse e à hora em que bem entendesse. Quem se importa com uma
senhora idosa, de cabelos ruivos e passos rápidos, que atravessa deprimida as
ruas do Rio de Janeiro?
O “seu” Antônio, o
porteiro, afirmou ainda que dona Jerusa vivia deprimida. Pois ela não “morrera
de depressão”?
Para dona Jerusa, viver
e morrer deviam ser igualmente simples. Talvez até indiferentes. O único alarde
de sua existência discreta expresso naquele cabelo vermelho, que se refletia
mais vermelho, faiscando raios de sol – quase um pedaço de vitral gótico cingindo
a cabeça de uma santa pós-moderna – quando ela atravessava, imperturbável, as
ruas da Tijuca em direção ao supermercado.
O que será que
significa “invadir todo o campo magnético”? Pois foi o que a dona Jerusa disse,
na última vez em que a encontrei no elevador. O elevador havia parado em um
andar qualquer, e um gigantesco carrinho de bebê entrou, guiado pela mãe e pela
avó. O carrinho, com um sorridente bebê dentro dele, ocupou todo o espaço,
espremendo a mim e a dona Jerusa contra o fundo do elevador. Por detrás das
lentes, ela murmurou qualquer coisa inaudível. E apenas consegui captar o
último trecho, algo sobre como “invadir todo o campo magnético”?
“Morreu como um
passarinho”, nas palavras do “seu” Antônio. Sem qualquer queixa da vida ou da
morte. Exceto por aquele absurdo e inexplicável comentário sobre a “invasão de
um campo magnético”, que poderia nem ser queixa, é verdade. Simples palavras
aleatórias e inofensivas, lançadas contra o fundo de um elevador, como as que
jogamos aleatoriamente pelo caminho, quando seguimos depois pela rua até dona
Jerusa entrar no supermercado.
Miúda, o caixão ficou
enorme para o corpo mignon de dona Jerusa.
O caixão de madeira maciça – “coisa fina, que o doutor Adalberto não ia
economizar”, dissera “seu” Antônio – desceu pelo elevador de serviço. Talvez tivesse
sido a primeira vez, em tantos e tantos anos, que a dona Jerusa descia pelo
elevador de serviço. O “seu” Antônio, o porteiro, ajudou a segurar com presteza
a alça dourada, como ajudava a carregar as sacolas de supermercado de dona
Jerusa. Ajudou a levar o caixão, com dona Jerusa dentro, até o carro da
funerária, que a levaria até o cemitério do Caju.
Junto do elevador, ao
terminar de ler o aviso fúnebre da “morte por depressão” de dona Jerusa,
escutei o “seu” Antônio responder: “Dona Jerusa? Morreu de depressão”. Mas eram
aquelas palavras incompreensíveis de dona Jerusa, dentro do elevador, e que
agora me pareciam misteriosas, até mesmo esotéricas, carregadas de um sentido
sobrenatural, que me vinham à mente. Por detrás daquelas largas lentes escuras,
ela havia falado, enigmaticamente, “invadir todo o campo magnético”?
Ao enterro, às quatro
horas da tarde de uma quarta-feira ensolarada, compareceram pouquíssimas
pessoas. Quase ninguém. Ninguém do prédio. Nos dias que se seguiram, ninguém do
prédio deu pela falta de dona Jerusa. Nem o “seu” Antônio. Nem as crianças que
brincavam no terraço, ao lado de sua casa, e a quem, de vez em quando, ela
levava caramelos, que a molecada pegava, sôfrega. Sempre com seus enormes
óculos escuros, aonde quer que fosse. O mundo para ela talvez tivesse sido
eternamente escuro, indistintos os dias e as noites. Mesmo quando ia ao
supermercado, buscar seus petiscos com os quais talvez chegasse a se deliciar,
embora extremamente deprimida.
Dias depois e um novo
aviso na portaria do prédio convidava os moradores para a missa de sétimo dia
de dona Jerusa. Alguns vizinhos, embora um tanto reticentes, compareceram à
basílica de Santa Terezinha, onde viram a chuva de pétalas de rosas cair em
intenção da alma de dona Jerusa. Tão deprimida.
O “seu” Antônio, o
porteiro, não foi, sempre às voltas com interfones e sacolas de supermercado. Se
tivesse ido, poderia ter visto o doutor Adalberto, o advogado criminalista da
cobertura, na primeira fila de bancos da igreja. Certamente, diria que, agora,
era o filho de dona Jerusa que estava deprimido, e que, em breve, iria morrer. De
depressão, naturalmente. De gravata, sentado sozinho no banco de madeira da igreja
de Santa Terezinha, aquele homem parecia isolado num estranho campo magnético. Placidamente
nervoso, limpava a todo instante o suor que gotejava da testa larga. No rosto,
uns grandes óculos escuros, de lentes imensas, através das quais – talvez – um par
de olhos deprimidos enxergassem o mundo como uma infinita noite eternamente escura
e sombria.
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