segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O nadador da manhã

 

Isabel Pires

Trazia não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. (Machado de Assis, in Dom Casmurro)

A segunda-feira não prometia aliviar: manhã chuvosa, trânsito insuportável. Chuvosa, não: chuvarenta. Manhã de segunda-feira chuvarenta, um temporal inchado no ar, contido nas nuvens maduras que ameaçavam cair em bagas sobre as ruas, alagando tudo. Feliz de quem podia estar em casa, no recesso do lar, àquela hora de buzinas infernais, desmesuradamente ampliadas pelas sirenes das ambulâncias e dos carros de polícia.

Foi quando veio a notícia, e ela quase engasgou ao telefone. Sem entender, mas entendendo perfeitamente. E sem poder se desesperar, porque, bem diante dela, tomando calmamente seu café da manhã, estava o marido.

— Um minuto, Matilde – ela pediu, olhando para ele que, imperturbável, sequer levantou os olhos quando a campainha do telefone da mulher soou. O garoto jogando videogame, o ruído eletrônico impedindo-a de assimilar direito o que acabara de escutar. Fez um sinal, chamando o marido. E em voz baixa: – É a Matilde. Vou falar lá no quarto. Aqui está difícil de escutar com esse videogame.

— Acidente? Que acidente, Matilde?

Antes de desabar lá fora, a tempestade caía toda dentro de seu peito, em raios que o rompiam de alto a baixo. Matilde era a secretária do doutor Joaquim, praticamente um amigo de infância. Estudaram juntos na mesma escola até o secundário. Depois, cada um seguindo seu próprio caminho, ficaram sem se ver por exatos nove anos. Até que um dia, por uma absoluta coincidência, reencontrou-o, na sala de espera de um consultório dentário. Ela viera por causa de um canal, uma restauração e uma obturação infiltrada. Ele, a fileira de dentes perfeitos entre os lábios, estava ali em simples visita de rotina.

Parecia uma cantada barata, a primeira coisa que ele falou depois daqueles nove anos sem se verem. “Não te conheço de algum lugar?”. Ah, sim. Dos bons tempos do colégio. Das excursões, das festas julinas (um mês depois das provas), das prosaicas feiras de ciências no pátio da escola, das festas de quinze anos das meninas... Ele não fora à sua, em férias em Cabo Frio com a família.

Combinaram encontros familiares, em que iriam o marido dela e o filho. Ele levaria a esposa e os dois filhos – um menino e uma menina, lindos, se se parecessem com o pai. De concreto, apenas o cartão dele de advogado, com o telefone e o endereço do escritório no centro da cidade, pertinho do dentista. “Sei onde é”. Semana seguinte, depois do tratamento do canal, ela deu uma passada por lá. Mais para matar a curiosidade. E, antes de perceber os pesados livros de direito civil, penal e processual, rigorosamente alinhados na estante sólida, deparou-se com uma fileira de porta-retratos na mesa dele, as poses da família sorrindo feliz para as fotos coloridas tiradas pela mulher, amante de fotografia. Crianças lindas. “Sua mulher é muito bonita”. Teresa, ela se chamava.

Novamente, a promessa de se encontrarem todos, que eles iam adiando a cada visita dela ao escritório de advocacia. Matilde, sempre gentil, tornou-se uma espécie de amiga dela. Sabia talvez que não se tratava exatamente de uma cliente, aquela visita rápida das quartas-feiras, mas que mal há nisso? Simpatizaram-se mutuamente, de graça, ela e Matilde. “Uma velha amiga de infância”, foi como ele a apresentara à secretária, piscando, cúmplice, um olho absurdamente verde. E ela passou a desconfiar que a mulher do ex-colega de turma talvez fosse, na verdade, uma megera. Uma megera fotógrafa.

Em casa, silenciava sobre o reencontro com o amigo de juventude. O marido, sabia, jamais entenderia. Doutor Joaquim quem? Advogado de quê? Visitas ao escritório dele? Eram coisas ininteligíveis para a compreensão do marido. “Apenas bons amigos” – quem, além de Matilde, iria acreditar? Embora ela também soubesse que jamais poderiam sair inocentemente juntos de novo para ir ver um filme, tomar um sorvete ou comer uma pizza, como nos velhos tempos de há mais de nove anos atrás, em que ia toda a turma.

E relembravam casos antigos, piadas já fora de contexto. Cada despedida ficava mais difícil, a vontade ilimitada de seguir relembrando o passado em comum, atando os fios da memória de um e de outro, revisando acontecimentos que cada um julgava ter se dado de um jeito, e não de outro. “Foi assim, então?”. E riam, perdidos nas lembranças de adolescentes. Nessas horas, o gesto de despedida sempre suspenso no ar. “Você volta?”. O olho verde brilhando muito.

Na sala de visitas, sentado no sofá vendo o noticiário na tevê, alheio à tormenta em que naufragava a mulher, o marido constatava, nas notícias alarmantes do dia, que o mundo era mesmo muito feio. Trancada no quarto, a custo ela continha as lágrimas. Por fim, sem mais poder resistir, elas irromperam, pesadas, grossas, como a chuva que finalmente desabava lá fora.

 

A água cinzenta, coberta por uma fita pálida de céu, parecia pouco convidativa. Sem o sol escaldante, vazia de azul, a praia, semiabandonada, atraía poucos, no outono carioca. Ele não pensara em cair na água quando saiu de casa. Mesmo assim, vestiu o calção de banho por baixo da bermuda jeans. Amarrou o tênis e saiu, de camiseta regata, para uma corrida no calçadão.

O mar, de ressaca, espantava os banhistas do domingo sem sol. Uns poucos turistas se aventuravam na areia da praia de Copacabana. Na altura do posto seis, ele parou para tomar fôlego, junto a um Drummond de pedra que, de costas para o mar, ignorava as ondas revoltas.

Não fosse o mau tempo, ele teria vindo mais cedo. Contudo, ainda era manhã. Resolveu dar um mergulho, mas precisava deixar suas coisas em algum lugar. O barraqueiro que alugava cadeiras e vendia cerveja e refrigerante guardou a bermuda, a camiseta, o tênis. “O doutor vai arriscar? A água tá fria...”. Ao pisar com os pés descalços na areia, porém, ele constatou que estava quase morna. E até macia, aquela areia amarela e grossa. Sem pressa, dirigiu-se para a água. As espumas das ondas, lambendo-lhe os pés, encorajaram-no, retirando-lhe qualquer dúvida.

Embora um pouco fria, a água estava boa, naquela manhã preguiçosa. A cada braçada, ele sentia mais vontade de ficar ali, indefinidamente. Saiu um pouco exausto, cambaleante, e se estendeu, em decúbito dorsal, os braços abertos, na faixa de areia molhada. No entanto, urgia seguir em frente, espantar o sedentarismo que as audiências no fórum, por vezes agitadas, não conseguiam dissipar.

Foi caminhando lentamente pela areia, a água rastejando a seus pés. A todo instante, o sol parecia querer brotar do meio das nuvens cinzas, um disco luminoso forçando por romper a massa escura no céu. Mas a ilusão se desfazia com o leve sopro, frio e constante, que vinha do mar.

Ele caminhou até quase alcançar a praia do Leme. Na volta, entre os postos três e quatro, a meio caminho entre os dois Fortes – do Leme e de Copacabana , talvez para se refazer da caminhada, seguiu para o mar aberto.

 

Aglomerados à beira d’água, vários curiosos, surgidos não se sabe de onde. As muitas versões das testemunhas tentavam reconstituir o fato: “com mar bravo não se brinca”; “foi cãibra que ele teve”. Retiraram o corpo inerte e pesado de dentro da água. O helicóptero do corpo de bombeiros, sempre a postos, fazendo muito barulho. Um salva-vidas musculoso fizera-lhe respiração boca-a-boca, massagem cardíaca. Em vão. Os olhos verdes, muito abertos, refletiam o cinza turvo do céu, e, aos poucos, iam se tornando cinza também.

 

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