terça-feira, 8 de novembro de 2022

O morto

                                                                                                                                     Isabel Pires

O retrato na sala era de um homem de cenho franzido e olhar brilhante. Tinha a boca apertada num contorno que parecia prender uma estrondosa gargalhada. E tudo parecia escutar com suas orelhas de abano. Nenhum dos nove filhos era sua reprodução fiel, mas todos tinham algum dos seus traços.

O homem dentro do caixão no centro da sala de visitas da casa que um dia fora do homem do retrato era seu genro, casado com a filha mais nova. Filha que casou tarde, quarentona já. Não chegara a conhecer esse genro, agora morto como ele.

Dentro do caixão, o morto, alheio a tudo em volta. À ausência de flores, de velas. De orações e de lágrimas. Alheio à própria ausência de vísceras na sua carcaça escurecida e maltratada pelos golpes da autópsia.

O zum-zum percorria o ar abafado da sala cheia de gente. Alguém se lembrou de abrir as janelas. Lá fora, a manhã seguia indiferente e ensolarada, sob um céu sem nuvens. Num dos cantos da sala apinhada, duas mulheres trocavam informações.

— Sabia que fizeram o serviço com ele já passado?

A outra se escandalizava, prazerosamente:

— Passado, é? Mas então o remédio não vai durar nada...

— E dizem que foi caro, o tal embalsamamento...

Num outro canto da sala, duas meninas, uma loura e uma morena, entre quatro e cinco anos, se enfrentavam num duelo mudo. Bisnetas do homem do retrato, a menina loura tinha os cabelos crespos, bem cheios, e tinha olhos azuis e a pele muito branca. E lábios vermelhos. Vestia-se bem, mas calçava chinelos de borracha. A outra menina, a morena, vestia-se de modo simples, embora calçasse sapatos de verniz. Tinha cabelos curtos e castanhos. E olhos pretos e brilhantes. As duas meninas, indiferentes ao que se passava em volta, só tinham olhos uma para a outra. A menina morena retirou da cabeça um arco faceiro, de cetim branco com um lacinho azul. Retirou-o dos cabelos castanhos e ficou exibindo-o para a menina loura, que olhava hipnotizada para o lacinho de fita azul-claro. A menina morena recolocou o arco na cabeça, cingindo os cabelos castanhos com o cetim branco do enfeite. Os olhos azuis da menina loura acompanharam o movimento das mãozinhas morenas da outra menina. A menina loura passou a mão pelos seus cabelos louros e crespos e arrancou deles um pequeno prendedor de plástico cor-de-rosa. Exibiu-o à outra menina, querendo trocá-lo pelo arco de cetim. Mas a menina morena negaceou, balançando a cabeça e segurando o arco com as duas pequenas mãos morenas.  

Mais adiante, duas mulheres seguravam no colo dois meninos. Eram noras do homem preso no caixão, mas não tinham nenhuma relação com o homem do retrato, já que seus maridos eram filhos de um primeiro casamento do homem a quem velavam. Um dos meninos no colo da mãe tinha nas mãos um pequeno livro de hinos bíblicos. O outro queria o livro, mas como o menino negasse, o outro menino abriu a bolsa da mãe, retirando de lá um livro idêntico ao do outro menino. Segurou o livro fechado, para que o outro o imitasse. O outro menino fechou o livro, acompanhando o movimento feito pelo menino que tentava medir o tamanho dos livros. O dono da ideia sorriu. Seu livro era maior.

O homem dentro do caixão nada via. E ninguém podia ver-lhe os traços deformados. Os curiosos tentavam distinguir algo através do vidro grosso da tampa do caixão. Mas gotículas suadas se aderiam ao vidro, embaçando-o e ao mesmo tempo como que protegendo o rosto escuro e inchado lá dentro.

Morto, preso no caixão que lhe toldava definitivamente a vida, enquanto o sogro, preso também na moldura do retrato, parecia no entanto estranhamente vivo, embora não pudesse de lá saltar para mudar mais nada.

— É o meu namorado – disse a velhinha de cabelos ralos e dourados, sentada no sofá. Balançou as pernas no ar e soltou uma risadinha matreira, vendo algo que só ela e o homem do retrato viam.

***

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