Isabel Pires
O
retrato na sala era de um homem de cenho franzido e olhar brilhante. Tinha a
boca apertada num contorno que parecia prender uma estrondosa gargalhada. E
tudo parecia escutar com suas orelhas de abano. Nenhum dos nove filhos era sua
reprodução fiel, mas todos tinham algum dos seus traços.
O
homem dentro do caixão no centro da sala de visitas da casa que um dia fora do homem do retrato era seu genro,
casado com a filha mais nova. Filha que casou tarde, quarentona já. Não chegara
a conhecer esse genro, agora morto como ele.
Dentro
do caixão, o morto, alheio a tudo em volta. À ausência de flores, de velas. De
orações e de lágrimas. Alheio à própria ausência de vísceras na sua carcaça
escurecida e maltratada pelos golpes da autópsia.
O
zum-zum percorria o ar abafado da sala cheia de gente. Alguém se lembrou de abrir
as janelas. Lá fora, a manhã seguia indiferente e ensolarada, sob um céu sem nuvens. Num
dos cantos da sala apinhada, duas mulheres trocavam informações.
—
Sabia que fizeram o serviço com ele já passado?
A
outra se escandalizava, prazerosamente:
—
Passado, é? Mas então o remédio não vai durar nada...
—
E dizem que foi caro, o tal embalsamamento...
Num outro canto da sala, duas meninas, uma loura e uma morena, entre quatro e cinco anos, se enfrentavam num duelo mudo. Bisnetas do homem do retrato, a menina loura tinha os cabelos crespos, bem cheios, e tinha olhos azuis e a pele muito branca. E lábios vermelhos. Vestia-se bem, mas calçava chinelos de borracha. A outra menina, a morena, vestia-se de modo simples, embora calçasse sapatos de verniz. Tinha cabelos curtos e castanhos. E olhos pretos e brilhantes. As duas meninas, indiferentes ao que se passava em volta, só tinham olhos uma para a outra. A menina morena retirou da cabeça um arco faceiro, de cetim branco com um lacinho azul. Retirou-o dos cabelos castanhos e ficou exibindo-o para a menina loura, que olhava hipnotizada para o lacinho de fita azul-claro. A menina morena recolocou o arco na cabeça, cingindo os cabelos castanhos com o cetim branco do enfeite. Os olhos azuis da menina loura acompanharam o movimento das mãozinhas morenas da outra menina. A menina loura passou a mão pelos seus cabelos louros e crespos e arrancou deles um pequeno prendedor de plástico cor-de-rosa. Exibiu-o à outra menina, querendo trocá-lo pelo arco de cetim. Mas a menina morena negaceou, balançando a cabeça e segurando o arco com as duas pequenas mãos morenas.
Mais adiante, duas mulheres seguravam no colo dois meninos. Eram noras do homem preso no caixão, mas não tinham nenhuma relação com o homem do retrato, já que seus maridos eram filhos de um primeiro casamento do homem a quem velavam. Um dos meninos no colo da mãe tinha nas mãos um pequeno livro de hinos bíblicos. O outro queria o livro, mas como o menino negasse, o outro menino abriu a bolsa da mãe, retirando de lá um livro idêntico ao do outro menino. Segurou o livro fechado, para que o outro o imitasse. O outro menino fechou o livro, acompanhando o movimento feito pelo menino que tentava medir o tamanho dos livros. O dono da ideia sorriu. Seu livro era maior.
O
homem dentro do caixão nada via. E ninguém podia ver-lhe os traços deformados.
Os curiosos tentavam distinguir algo através do vidro grosso da tampa do
caixão. Mas gotículas suadas se aderiam ao vidro, embaçando-o e ao mesmo tempo
como que protegendo o rosto escuro e inchado lá dentro.
Morto,
preso no caixão que lhe toldava definitivamente a vida, enquanto o sogro, preso
também na moldura do retrato, parecia no entanto estranhamente vivo, embora não
pudesse de lá saltar para mudar mais nada.
—
É o meu namorado – disse a velhinha de cabelos ralos e dourados, sentada no
sofá. Balançou as pernas no ar e soltou uma risadinha matreira, vendo algo que
só ela e o homem do retrato viam.
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