Isabel Pires
O
noivo, já pronto, aguardava sentado na cama do seu quarto de solteiro.
Contemplava, entre as mãos, o convite de casamento, o rosto sem expressão.
Bateram
à porta, avisando-o de que o carro que o levaria até a igreja havia chegado.
Largou
o convite sobre a mesinha de cabeceira e saiu, o coração acelerado. Junto à calçada,
o carro preto o aguardava. Entrou e sentou-se no banco traseiro. Passou a mão
pela testa, despregando os cachos molhados de suor. Só então reparou na motorista à sua frente, de penteado sóbrio no cabelo repartido
ao meio e enrodilhado num coque acima da nuca. Seu vestido preto, de alças,
também tinha um tom discreto.
A
motorista pôs o carro em movimento. Voltou-se no banco e o encarou, sorrindo.
Aquele rosto lembrava-lhe um tempo já esquecido. Quem seria? O suor na testa
aumentou. Pegou o lenço, esfregando-o quase que por todo o rosto. Respirava com
dificuldade, sufocado pelo calor da tarde de verão.
Saíram
da avenida principal e começaram a rodar por ruas paralelas, infindavelmente.
Depois, alcançaram outra avenida ampla e vazia. Passaram por conjuntos de
prédios, postos de gasolina, e agora, de quando em quando, surgiam apenas
alguns motéis à beira da estrada. Aquele não era, sem dúvida, o caminho da
igreja. Ele tocou de leve no ombro da motorista, que lhe pareceu etéreo,
irreal, cingido por uma fina alça de cetim preto.
—
Para onde está me levando?
A
voz veio de longe, emoldurada de algas, uma cantiga sob a água. Ele não
entendeu a resposta. O rosto plácido, de contornos difusos, que por um momento
voltara-se para ele, tornou a concentrar-se na estrada aberta à frente. Os
pneus engoliam o asfalto, implacáveis.
Finalmente
estacionaram. Deixaram o carro sob uma árvore meio desfolhada e foram
caminhando junto a um muro alto, infinitamente comprido, cravado de cacos de
vidro colorido. Como num conto de Lygia Fagundes Telles, ultrapassaram um
pequeno portão enferrujado, e só então ele pareceu se dar conta de que estavam
num cemitério. Olhou perplexo para tudo aquilo e encarou a mulher. Ela, de
preto, seguia com passos seguros por entre as lajes.
Os
túmulos se sucediam. Súbito, ela parou. Ajoelhou-se piedosamente diante de uma
laje recém-colocada ali. O mármore, sem um rachão, contrastava com a decadência
dos túmulos em volta. Contrita, a jovem mulher rezava. Grossas lágrimas rolavam
pelas suas faces, contraídas numa expressão de completa dor.
Desajeitadamente,
o rapaz começou a ler a inscrição na laje. Parou, estupefato. Era seu nome ali,
na laje fria. “Falecido em...”. Não pôde continuar. Uma dor funda
atravessou-lhe o peito. Caiu de joelhos, apertando o rosto com as mãos, o corpo
todo sacudido por soluços entrecortados.
Permaneceu
algum tempo assim, as mãos úmidas comprimidas contra o rosto intumescido. Aos
poucos, os soluços foram se espaçando, mas ele continuava a apertar os olhos
com as mãos. Ouviu, ao longe, umas batidas leves, semelhantes a dedos
tamborilando na madeira. Aquele toque se repetiu ainda duas, três vezes, agora
mais perto, mais firme. Mais alto. De repente, o barulho metálico do trinco de
uma porta se fez ouvir, nítido. Alguém enfiou a cara dentro do quarto e falou
algo sobre “olha a hora” e “assim a noiva desiste”, num tom entre sério e
brincalhão. Hora? Noiva? Ah, sim. A noiva, a igreja, o casamento. Seu
casamento.
O
noivo pôs-se de pé num pulo. Lavou o rosto e marchou solene para a sala, onde
os amigos o aguardavam para levá-lo até a igreja.
Nenhum comentário:
Postar um comentário