sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Marcha nupcial

Isabel Pires 

O noivo, já pronto, aguardava sentado na cama do seu quarto de solteiro. Contemplava, entre as mãos, o convite de casamento, o rosto sem expressão.

Bateram à porta, avisando-o de que o carro que o levaria até a igreja havia chegado.

Largou o convite sobre a mesinha de cabeceira e saiu, o coração acelerado. Junto à calçada, o carro preto o aguardava. Entrou e sentou-se no banco traseiro. Passou a mão pela testa, despregando os cachos molhados de suor. Só então reparou na motorista à sua frente, de penteado sóbrio no cabelo repartido ao meio e enrodilhado num coque acima da nuca. Seu vestido preto, de alças, também tinha um tom discreto.

A motorista pôs o carro em movimento. Voltou-se no banco e o encarou, sorrindo. Aquele rosto lembrava-lhe um tempo já esquecido. Quem seria? O suor na testa aumentou. Pegou o lenço, esfregando-o quase que por todo o rosto. Respirava com dificuldade, sufocado pelo calor da tarde de verão.

Saíram da avenida principal e começaram a rodar por ruas paralelas, infindavelmente. Depois, alcançaram outra avenida ampla e vazia. Passaram por conjuntos de prédios, postos de gasolina, e agora, de quando em quando, surgiam apenas alguns motéis à beira da estrada. Aquele não era, sem dúvida, o caminho da igreja. Ele tocou de leve no ombro da motorista, que lhe pareceu etéreo, irreal, cingido por uma fina alça de cetim preto.

— Para onde está me levando?

A voz veio de longe, emoldurada de algas, uma cantiga sob a água. Ele não entendeu a resposta. O rosto plácido, de contornos difusos, que por um momento voltara-se para ele, tornou a concentrar-se na estrada aberta à frente. Os pneus engoliam o asfalto, implacáveis.

Finalmente estacionaram. Deixaram o carro sob uma árvore meio desfolhada e foram caminhando junto a um muro alto, infinitamente comprido, cravado de cacos de vidro colorido. Como num conto de Lygia Fagundes Telles, ultrapassaram um pequeno portão enferrujado, e só então ele pareceu se dar conta de que estavam num cemitério. Olhou perplexo para tudo aquilo e encarou a mulher. Ela, de preto, seguia com passos seguros por entre as lajes.

Os túmulos se sucediam. Súbito, ela parou. Ajoelhou-se piedosamente diante de uma laje recém-colocada ali. O mármore, sem um rachão, contrastava com a decadência dos túmulos em volta. Contrita, a jovem mulher rezava. Grossas lágrimas rolavam pelas suas faces, contraídas numa expressão de completa dor.

Desajeitadamente, o rapaz começou a ler a inscrição na laje. Parou, estupefato. Era seu nome ali, na laje fria. “Falecido em...”. Não pôde continuar. Uma dor funda atravessou-lhe o peito. Caiu de joelhos, apertando o rosto com as mãos, o corpo todo sacudido por soluços entrecortados.

Permaneceu algum tempo assim, as mãos úmidas comprimidas contra o rosto intumescido. Aos poucos, os soluços foram se espaçando, mas ele continuava a apertar os olhos com as mãos. Ouviu, ao longe, umas batidas leves, semelhantes a dedos tamborilando na madeira. Aquele toque se repetiu ainda duas, três vezes, agora mais perto, mais firme. Mais alto. De repente, o barulho metálico do trinco de uma porta se fez ouvir, nítido. Alguém enfiou a cara dentro do quarto e falou algo sobre “olha a hora” e “assim a noiva desiste”, num tom entre sério e brincalhão. Hora? Noiva? Ah, sim. A noiva, a igreja, o casamento. Seu casamento.

O noivo pôs-se de pé num pulo. Lavou o rosto e marchou solene para a sala, onde os amigos o aguardavam para levá-lo até a igreja.

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