Isabel
Pires
A
tarde está cinza. Flocos de ar cinzento invadem o espaço reduzido do
apartamento, da cidade, do mundo. Já é tarde para pôr em prática os planos da
manhã. Muito tarde. Que se espera deste fim de tarde? Uma coisa é certa: depois
que este brilho fosco e cinzento se dispersar, cairá a escuridão sobre todas as
coisas. E então será noite. Por enquanto, as folhas das árvores estão imóveis,
mas um pardal as balança, à procura de alguma fruta esquecida. Em alguma parte
do planeta, alguém pensa no que responder a outro alguém, ou que pergunta
fazer, ou quem sabe não responder nem perguntar nada a ninguém. Muito tarde em
verdade. Alguém escreve algo confidencial no papel virtual da tela do
computador, e chama esse papel virtual de diário, e acredita ser esse diário um
amigo. O pardal foi embora e de novo as árvores estão inertes, prenúncio talvez
de tempestade. Barulho de água escorrendo na pia. Barulho de carros na rua.
Barulho de portas abrindo e fechando. A tarde não é preguiçosa. Uma rede se
move num canto da parede. O cachorro pequinês corre pela casa. Não, a tarde não
é, em definitivo, preguiçosa. Livros descansam na estante, também eles inertes.
Uma caneta inútil, jogada sobre a mesa. Um lápis, ainda mais inútil, ao lado. A
estante cheia de livros parece triste, com o peso de tantos pensamentos sobre
ela. Subitamente, o som da campainha se faz ouvir. O pequinês se agita. A porta
foi aberta. Engano. É sempre engano. É engano a vida. Também a morte é engano. A
tarde prossegue, no seu contínuo engano de tarde feliz, apesar do tom cinzento.
Tarde morna e docemente cansada. De quê? A pilha de pratos parece uma torre de
Pisa sobre o mármore compenetrado de seu papel de mármore de pia de cozinha. O
trilho da janela tem um som enferrujado, de trem correndo sobre trilhos velhos
em viagens antigas. Lá fora, o mundo também está cinza, até as plantas parecem
cinzentas. Adiante, uma poça de água reflete a parede cor de cinza do edifício
em frente.
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