domingo, 23 de outubro de 2022

A flor

                                                                                                                                                   Isabel Pires

 

Uma flor.

Eu a vejo impregnada por todos os cantos: no armário antigo, no cofre-forte, no quadro onde há um pedaço de mar e um barco e uma casa. E nuvens pesadas ameaçando chuva. Talvez sejam elas, as nuvens do quadro, que deem este aspecto meio sombrio ao ambiente. Ou será ela, a flor?

Tudo burocraticamente irrevolvível.

Até as plantas, naturais, parecem de plástico, na sua imobilidade severa.

Um certo desleixo, entretanto, marca a sua ausência: uma cadeira meio fora do lugar.

Embora seja apenas uma flor, é daquelas vistosas, repolhudas. Uma rosa? Talvez. Muito viço, é certo. E ainda algum frescor. Tão séria, que seu rosto é isento de rugas e traços mais definidos. Uma máscara de lábios carnudos discretamente pintados. Uma máscara que não se move, não se crispa nem se contrai em lágrimas ou risos.

Mas possui defesas. Sim. Não pisem nos seus calos, que ela reage de imediato, como uma rosa indefesa se protege com seus espinhos diante de alguma ameaça.

Sim, uma rosa extremamente vistosa, cercada de espinhos, ilhada no seu próprio encanto e na sua própria solidão.

Embora ausente, é como se marcasse o ambiente com seu perfume impossível de se dissolver no ar, já impregnado e fixado nos velhos móveis, nos tapetes, nos papéis amarelecidos, nas cortinas empoeiradas.

O perfume de uma rosa vistosa, encantadora, solitária com seus espinhos.

Alguma coisa antiga vem de sua essência. É então que percebemos externada nos delicados aros dourados dos óculos de miopia. Uma rosa dourada? Talvez, amarela.

A imagem completa: uma rosa amarela, de um perfume antigo de rosa amarela, vistosa e cercada de espinhos por todos os lados. Mas ainda uma flor...

Embora rosa, e embora cheia de defesas com seus espinhos, e embora com perfume de rosa amarela – tão marcante e tão discreto – e embora tão vistosa...

Apenas uma flor.

— As flores são perecíveis, exceto as flores de plástico.

Não. Ao contrário das plantas naturais que aparentam ser de plástico, ela, a flor, não poderia nunca ser confundida com uma flor de plástico, que embora sem valor algum permanece... Não morre.

Os dentes morderam de leve os lábios carnudos, único movimento perceptível naquela máscara. Como se se revoltassem contra aquele estado de coisas, impossível de ser mudado.

Pois como podiam flores naturais transmutarem-se em flores de plástico? Havia que se apelar talvez para uma feiticeira? Como na história da sereiazinha que queria virar uma mulher comum e possuir duas pernas, em lugar de um rabo de sereia, para conquistar seu príncipe...

Uma mulher comum?

Preferiria a morte.

E era, na verdade, tudo o que definia seu estado puro de pura flor efêmera, cujo frescor se evadia a cada minuto – a conformação diante da própria morte, pois mesmo que a soubesse fatal, não havia ainda a rosa, o viço, o perfume?

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