sábado, 15 de outubro de 2022

Almoço ajantarado

 Isabel Pires

O marido, aposentado, continuava sentado muito quieto na cadeira de vime, na varanda da casa, entre vasos de plantas e a rede à sua frente. Lia tranquilo as principais notícias do dia, no tablet que o filho lhe dera de presente de dia dos pais. De vez em quando, mastigava furtivo um biscoito de água-e-sal. Sua mulher, por sua vez, movimentava-se impaciente pela casa, abrindo e fechando portas com estrondo, à exceção da porta da cozinha, que permanecia cerrada.

— Absurdo!, dizia ela. Quase quatro da tarde, e nada de almoço! Estou morrendo de fome! Se não comer logo, vou ter um troço!

O marido chamou-a, pigarreando antes o catarro preso na garganta, efeito do cigarro que fumara por mais de trinta anos:

— Dulce! – queria talvez oferecer à mulher um dos seus biscoitos de água-e-sal, mas Dulce dirigiu-se à porta trancada da cozinha e bateu de leve, a boca encostada no portal, quase suplicando:

— Abram, por favor! Quero entrar só um pouquinho! – E alteando a voz: Abre isso!

Ouviu uma das cozinheiras:

— Espera só mais um pouco, dona Dulce. O almoço já está quase pronto. Falta só terminar a farofa.

— Farofa... – gemeu baixinho dona Dulce, a boca já salivando. Farofa de quê? – E mais alto: Terminem isso, já são quatro horas. Vou acabar desmaiando de fome!

Outra voz, autoritária, ressoou lá de dentro:

— Não adianta, dona Dulce. São três e vinte ainda. Às três e meia, o almoço vai para a mesa. Pode esperar um pouco.

Dona Dulce deu um violento soco na porta. Atravessou o corredor e trancou-se no quarto. Sentou-se na cama, com as pernas dobradas, os lábios se apertando de raiva.

Pouco depois ouviu os rumores dos passos cautelosos das duas cozinheiras, que iam e viam da copa para cozinha, pondo a mesa para o almoço do casal. Os ruídos dos talheres e pratos chegavam ao quarto, junto com o aroma da comida. A mulher sentada na cama levantou-se, foi até a penteadeira, e se pôs a escovar freneticamente os cabelos. Olhou-se demoradamente no espelho e, mais calma, deixou o quarto.

Na sala de jantar, as duas mulheres em volta da mesa se riam e conversavam alegremente, contentes talvez com o resultado do seu trabalho, disposto nas travessas sobre a mesa: lombo de porco assado, arroz colorido, salada de maionese, farofa de banana da terra. Ainda tinha a sobremesa: pudim de leite com calda caramelizada!

A mais velha das duas mulheres voltou-se para dona Dulce, parada no limiar da porta:

— Tá vendo, dona Dulce? Não precisava tanta pressa. O almoço já está servido.

Dona Dulce girou sobre si mesma e voltou a se trancar no quarto. O marido, que entrava naquele exato instante, atravessou a sala de jantar, balançando a cabeça. Bateu delicada, mas firmemente, na porta do quarto.

— Abre, Dulce, vem almoçar. Deixa de bobagem. Você não estava morrendo de fome? Então?

Nada. Mais batidas, mais súplicas. Silêncio no quarto. As duas mulheres aguardavam de pé diante da mesa.

— E agora, seu Valter? O que fazemos?

Seu Valter – era o nome do marido – olhou-as e, com um gesto, mandou que se retirassem.

Na mesa, o lombo de porco com farofa esfriava, a maionese de legumes esquentava. Depois de mais algumas insistências junto à porta do quarto, seu Valter desistiu. Sentou-se à mesa e começou a servir-se. Nesse instante, a porta do quarto abriu-se e surgiu o rosto lívido de dona Dulce. Atravessou solenemente a sala de jantar. Sentou-se à mesa, sem olhar para os lados. Contemplou um instante as travessas repletas e, então, atacou vorazmente a comida. Sua fome parecia insaciável. Empanturrava-se de uma coisa, de outra, devorando tudo inteiro.

Findo o almoço, seu Valter foi se balançar na rede da varanda, ainda lambendo a calda de caramelo do pudim, que escorria pelos seus beiços. Dispensara o cafezinho. Dona Dulce trancou-se no quarto e, meia hora depois, pedia um sal de frutas.

A cozinheira mais nova entrou no quarto com o copo na mão. Espichada na cama, dona Dulce contorcia-se toda, apertando o estômago. Gemia.

— Bebe isso aqui, dona Dulce. Não fica assim não, fica calma.

Dona Dulce pegou o copo borbulhante de sal de frutas e tomou tudo, de um só gole.

— Ai, ai, estou passando muito mal. Chama a Luzia.

Luzia, a cozinheira mais velha, enfiou a cara dentro do quarto de dona Dulce:

— Estou aqui, dona Dulce.

— Ai, Luzia, se eu piorar, me faz um chá? Bem quente e forte, com pouco açúcar, viu? – Seu olhar era suplicante.

— Tá bem dona Dulce. Vou fazer um chá de camomila, então. Que é para acalmar.

Chamou a outra:

— Vem, vamos arrumar logo a cozinha. Tem muito serviço pra fazer.

As duas saíram do quarto. A mulher deitada continuou gemendo, agora baixinho. Instantes depois, pulou da cama, tremendo, pálida. Apertava a boca com uma mão. Com a outra, agarrou o trinco da porta. Mas não chegou a sair do quarto. Vomitou todo o almoço na soleira da porta.

As cozinheiras acudiram, prestimosas. Limparam tudo, deitaram a patroa na cama, deram-lhe um comprimido e ataram-lhe à cabeça uma compressa de água fria. Uma hora depois, entraram no quarto carregando uma bandeja de chá. Acordaram a mulher.

— Senta, dona Dulce. Bebe este chazinho aqui. Olha, tem torrada. E aquela broa que a senhora gosta. Como tudo!

E, diante dos fracos protestos da doente, retrucaram:

— A senhora precisa se alimentar, dona Dulce. Imagina, ficar assim com o estômago vazio. Faz mal. Se a senhora não se alimentar, vai ficar fraca.

— Verdade, disse a mais nova. Pode até adoecer!

Na varanda, o marido de dona Dulce palitava os dentes, balançando-se de leve na rede, sentindo no rosto a brisa fresca do final de tarde. Em pouco, adormecia. 

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