sexta-feira, 28 de junho de 2024

Bolhas de sabão nas ondas do mar

                                                                                                                                                  Isabel Pires

Um gosto de sal na pele, areia no cabelo. Banho de torneira no quintal. Voltar da praia cansada e deitar no chão, vendo tevê. Fechando os olhos, podia sentir ainda o doce marulhar das ondas, pra baixo, pra cima. Pé no chão, short, cabelo molhado. No meio da rua. Pé sangra, corte fundo, no caco de garrafa atirado por alguém (falta de educação) na rua. Esparadrapo e algodão. Curativo enorme, tomando quase o pé inteiro. Que peninha. E exibia vitoriosa o pé machucado.

Havia dois coqueiros em frente da casa. Não exatamente na rua, nem no jardim, mas no jardim da casa em frente, cobertos até a metade pelo muro que a cercava. A avó na janela do quarto, ouvindo mais o farfalhar do vento nas palhas dos coqueiros, do que vendo-os propriamente. A avó com catarata. A avó sempre na janela do quarto, cantando canções de outro tempo e ouvindo o coqueiro. Ouviria estrelas? Às vezes, no meio do sono, vinha a imagem, sempre a mesma: os coqueiros desabando sobre a casa em frente, esmagando o pintor e sua estranha mulher, que vivia com um lenço molhado atado à testa, matando até o cachorro perdigueiro de focinho cor-de-rosa. Acordava soluçando, suada. Bebia sôfrega a água que a avó trazia.

O gato Dengoso, mistura de angorá com uma raça indefinível. A avó sempre criara gatos. Por que a avó não gostava de cachorros? Dengoso brincava com Pantera, a gata da casa vizinha. Era uma pequena gata amarela, espantadiça, arredia e selvagem. Caçava borboletas no jardim com uma precisão incrível. Saltava de pata aberta, unhas arreganhadas, certeira na vítima.

O pé de mamão-da-Índia no terreiro da casa. Um dia, de tão carregado, o pé de mamão quebrou, e rolou mamão verde pra todo lado, no cimento do terreiro. Dos maiores, a avó fez doce. Dos talos das folhas, foram feitos canudos para soprar bolhas de sabão, na porta da casa. Competição para ver quem soprava a bolha maior, sem arrebentar.

As ondas arrebentando na praia, nas pedras. E deixando um gosto de sal na pele. Areia no cabelo. “Menina, olha esse pé sujo de areia”. O banho na torneira do quintal. Sonolenta, deitava na almofada da sala. Podia sentir o embalo do mar. O formato das ondas na areia. As bolhas espocando no ar.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Vermelho brilhante luar

Isabel Pires

...devagar e a pé. a visitar bodegas reles, lugares bizarros, botequins inconcebíveis

(João do Rio, in A alma encantadora das ruas)

 

Se eu soubesse, não teria desperdiçado as últimas gotas do meu perfume francês. Naquela época, eu ainda me iludia muito com lagostas e mexilhões. Um submundo nas portas dos banheiros sujos, vasos sanitários vomitados, a poça de xixi no chão. Era isso ou os monstros debaixo da cama.

A filosofia de botequim praticada por nietzschianos bêbados dos anos perdidos.

O cabeludo das camisas xadrezes vinha toda quinta-feira, uísque com muito gelo às nove em ponto. Um mal-entendido, e ele sentou-se uma noite à nossa mesa. Minha e do Saulo. Cadeira cativa de terça a domingo. O boteco não abria às segundas-feiras. O cara – era Fernando, seu nome – contava, fumando, muitas piadas. Todas sem graça. Sabe o que é ser o pivô da separação dos pais, causada especificamente por um chute do pai no traseiro da mãe? Pois o filho dele, quatro aninhos de idade, sabia, apesar dos chocolates com figurinhas brilhantes a cada quinze dias. Muito cedo ele aprendera que cóccix é um pequeno osso no final da coluna vertebral. Constava do processo, que as partes liam em voz alta, cada uma por seu turno.

Como se fosse uma questão de lógica, acabamos, eu e o Saulo, trocando a filosofia pela psicologia. Viramos psicólogos de botequim, com direito a analisar as repressões mais recônditas, complexificar freudianamente todos os cigarros que o chutador de cóccix fumava, às quintas-feiras. Às nove em ponto. Também havia Lacan e linguística saussereana aplicada. Voltamos para a filosofia via Horácio. Ele chegava já trincado, a língua enrolada. À meia-luz, a cicatriz no rosto parecia mais visível, resultado de uma queda de cavalo. Horácio foi criado numa fazenda onde tomava filosóficos banhos de rio.

Precisávamos muito de mitos para ordenar o caos de nossos pequenos mundos. Foi quando Saulo conheceu Silvinha e todas as suas tatuagens. Ela estava no quinto aborto, que correspondia, numa oposição sinistramente simétrica, à quinta gravidez de Elenice. O bebê anterior nascera franzino. Ela o pendurava ao seio e sugava por sua vez a espuma branca do colarinho do chope. Os pés dela, inchados, rebentavam pequenas bolhas de pus nos dedos. O médico dissera ser “baixa resistência”.

Começamos a pensar muito seriamente nas segundas-feiras. Então, vieram o bar da Mara, o Nirvana, o Verdeazul, o bar do Lulu. No Das 7 às 7 conhecemos Heitor, que morreu afogado em vodka no mar do Espírito Santo. Estação do Chopp só dava pé de vez em quando. Quem aturava toda aquela feira livre de camisetas silkadas? E também teve o Telaviv.

À essa altura, nos sentíamos, eu e o Saulo, sobreviventes, entre chopes, caldos verdes e porções de fritas. O Heitor parecia ser apenas mais um elo da cadeia de mortes que ameaçava prender-nos a todos, e para a qual alguns de nós, mais imaginosos, concebiam ligações secretas, enredos policiais.

Definitivamente, não. Quê que tinha a ver o Heitor ter abraçado uma onda mortífera com o fato de o Cesinha ter metido o carro e seus vinte e três anos num poste?! Laura, por exemplo. Quê que tinha a ver a overdose dela – dura e roxa, gelada – com o suicídio esquisito da Rose? As duas nem sequer se conheciam...

Era simples, muito simples, super banal. Um círculo amarelo dentro de uma circunferência vermelha, com dois círculos pequenos vermelhos formando os olhos e um feliz traço evidentemente vermelho, acompanhando a circunferência, completava o sorriso do sol.

Com quantos sorrisos de sol se ganha a vida? Pois o Sérgio ganhou a conta da cadeia de lojas Marisol, espalhando sóis sorridentes nos cartazes pela cidade. Um sol brilhou sorrindo vermelho e amarelo no seu pequeno escritório de publicidade. Sérgio, rosa-cruz, metódico e seriíssimo, andava pensado em se casar. Quando a galera quis enlouquecer um pouco mais na Cachoeira das Andorinhas, ele andava muito ocupado. Os preparativos do casamento. Emprestou a barraca para três. Dormiram sete.

Na mesa, fumegante, uma enorme tigela de caldo exageradamente decorada com cebolinhas verdes picadas. Do outro lado, a cara lisa do Edson e seu rosto rosa-bebê. O resto da noite, beijei uma plantação de cebolinhas. O Saulo amuou. Estava ficando possessivo, além do mais. Sérgio e cebolinhas, interessante combinação. Pois ele não ia se casar com aquela moça que ele conhecera na feira? Como era mesmo seu nome?

Certo, esta história não é do tempo dos contos de fadas, inventados especialmente para nos consolar – embora alguns nos aterrorizem, mas isto não vem ao caso. Com dados assim, por demais aleatórios, ninguém conseguirá reconstituir tantos fatos. Por que há fatos para serem reconstituídos, indubitavelmente?

A chorar a minha mãe, chora a dele, foi quando pensei quando brigamos feio. Eu que não ia me trancar no quarto, escutando Pink Floyd, que minha mãe não merecia, disso eu tinha quase certeza. A mãe dele que chorasse, sem economia de água. A chorar minha mãe, chora a dele.

As bochechas do Saulo, infladas para baixo, pareciam arrastar consigo o peso dos seus pensamentos muito negros. Kardecismo, reencarnações e operações espirituais. Mais de uma vez, a família quis interná-lo num hospital psiquiátrico.

Espantar para sempre os monstros de debaixo da cama.

Silvinha no sexto aborto. Filho dele, do Saulo, aquela massa meio mole meio dura, vermelha.

Eu que não ia pra casa com aquele troço vermelho e informe entalado na garganta. Vomitei tudo, chope, caldo verde, fritas, trancada no banheiro.

Quando voltei, Serginho estava lá, discorrendo sobre as vantagens da vida a dois. Foi embora cedo, que agora era homem casado.

O suicídio da Rose não teve mesmo nada a ver com a overdose da Laura, restava mais que provado. As duas nem se conheciam. Embora ambas conhecessem o Sandrinho.

A Rose foi ao casamento do Serginho, não foi? Toda produzida, com aquele vestido de calda de sereia azul claro, parecia Iemanjá. Rose, com seu vestido de Iemanjá-sereia, fazia planos para o futuro, tipo saldar pequenas dívidas, reformar a mobília, criar gatos. Mês seguinte se matou, enrolada num lençol encharcado de gasolina.

Seis meses depois foi a vez do Serginho. A lua, não o sol. A lua veio buscá-lo, foice minguante parada no céu. Um casal de recém-casados bebia vinho e via a lua do telhado do edifício. Noite fria, de julho. Serginho morreu afogado no luar da imensa caixa d’água que abastecia os quinze andares do prédio onde um sol um dia saiu sorrindo de um pequeno escritório de publicidade.