Isabel Pires
“...devagar e a pé. a visitar bodegas reles, lugares bizarros, botequins inconcebíveis”
(João do Rio, in A alma encantadora das ruas)
Se eu soubesse, não teria
desperdiçado as últimas gotas do meu perfume francês. Naquela época, eu ainda
me iludia muito com lagostas e mexilhões. Um submundo nas portas dos banheiros
sujos, vasos sanitários vomitados, a poça de xixi no chão. Era isso ou os
monstros debaixo da cama.
A filosofia de botequim
praticada por nietzschianos bêbados dos anos perdidos.
O cabeludo das camisas
xadrezes vinha toda quinta-feira, uísque com muito gelo às nove em ponto. Um
mal-entendido, e ele sentou-se uma noite à nossa mesa. Minha e do Saulo.
Cadeira cativa de terça a domingo. O boteco não abria às segundas-feiras. O
cara – era Fernando, seu nome – contava, fumando, muitas piadas. Todas sem
graça. Sabe o que é ser o pivô da separação dos pais, causada especificamente
por um chute do pai no traseiro da mãe? Pois o filho dele, quatro aninhos de
idade, sabia, apesar dos chocolates com figurinhas brilhantes a cada quinze
dias. Muito cedo ele aprendera que cóccix é um pequeno osso no final da coluna
vertebral. Constava do processo, que as partes liam em voz alta, cada uma por
seu turno.
Como se fosse uma questão
de lógica, acabamos, eu e o Saulo, trocando a filosofia pela psicologia.
Viramos psicólogos de botequim, com direito a analisar as repressões mais
recônditas, complexificar freudianamente todos os cigarros que o chutador de
cóccix fumava, às quintas-feiras. Às nove em ponto. Também havia Lacan e
linguística saussereana aplicada. Voltamos para a filosofia via Horácio. Ele
chegava já trincado, a língua enrolada. À meia-luz, a cicatriz no rosto parecia
mais visível, resultado de uma queda de cavalo. Horácio foi criado numa fazenda
onde tomava filosóficos banhos de rio.
Precisávamos muito de
mitos para ordenar o caos de nossos pequenos mundos. Foi quando Saulo conheceu
Silvinha e todas as suas tatuagens. Ela estava no quinto aborto, que
correspondia, numa oposição sinistramente simétrica, à quinta gravidez de Elenice.
O bebê anterior nascera franzino. Ela o pendurava ao seio e sugava por sua vez
a espuma branca do colarinho do chope. Os pés dela, inchados, rebentavam
pequenas bolhas de pus nos dedos. O médico dissera ser “baixa resistência”.
Começamos a pensar muito
seriamente nas segundas-feiras. Então, vieram o bar da Mara, o Nirvana, o
Verdeazul, o bar do Lulu. No Das 7 às 7 conhecemos Heitor, que morreu afogado
em vodka no mar do Espírito Santo. Estação do Chopp só dava pé de vez em
quando. Quem aturava toda aquela feira livre de camisetas silkadas? E também
teve o Telaviv.
À essa altura, nos
sentíamos, eu e o Saulo, sobreviventes, entre chopes, caldos verdes e porções
de fritas. O Heitor parecia ser apenas mais um elo da cadeia de mortes que ameaçava
prender-nos a todos, e para a qual alguns de nós, mais imaginosos, concebiam ligações
secretas, enredos policiais.
Definitivamente, não. Quê
que tinha a ver o Heitor ter abraçado uma onda mortífera com o fato de o Cesinha
ter metido o carro e seus vinte e três anos num poste?! Laura, por exemplo. Quê
que tinha a ver a overdose dela – dura e roxa, gelada – com o suicídio
esquisito da Rose? As duas nem sequer se conheciam...
Era simples, muito
simples, super banal. Um círculo amarelo dentro de uma circunferência vermelha,
com dois círculos pequenos vermelhos formando os olhos e um feliz traço
evidentemente vermelho, acompanhando a circunferência, completava o sorriso do
sol.
Com quantos sorrisos de
sol se ganha a vida? Pois o Sérgio ganhou a conta da cadeia de lojas Marisol,
espalhando sóis sorridentes nos cartazes pela cidade. Um sol brilhou sorrindo
vermelho e amarelo no seu pequeno escritório de publicidade. Sérgio, rosa-cruz,
metódico e seriíssimo, andava pensado em se casar. Quando a galera quis
enlouquecer um pouco mais na Cachoeira das Andorinhas, ele andava muito
ocupado. Os preparativos do casamento. Emprestou a barraca para três. Dormiram
sete.
Na mesa, fumegante, uma
enorme tigela de caldo exageradamente decorada com cebolinhas verdes picadas.
Do outro lado, a cara lisa do Edson e seu rosto rosa-bebê. O resto da noite,
beijei uma plantação de cebolinhas. O Saulo amuou. Estava ficando possessivo,
além do mais. Sérgio e cebolinhas, interessante combinação. Pois ele não ia se
casar com aquela moça que ele conhecera na feira? Como era mesmo seu nome?
Certo, esta história não
é do tempo dos contos de fadas, inventados especialmente para nos consolar –
embora alguns nos aterrorizem, mas isto não vem ao caso. Com dados assim, por
demais aleatórios, ninguém conseguirá reconstituir tantos fatos. Por que há
fatos para serem reconstituídos, indubitavelmente?
A chorar a minha mãe,
chora a dele, foi quando pensei quando brigamos feio. Eu que não ia me trancar
no quarto, escutando Pink Floyd, que minha mãe não merecia, disso eu tinha
quase certeza. A mãe dele que chorasse, sem economia de água. A chorar minha
mãe, chora a dele.
As bochechas do Saulo,
infladas para baixo, pareciam arrastar consigo o peso dos seus pensamentos
muito negros. Kardecismo, reencarnações e operações espirituais. Mais de uma
vez, a família quis interná-lo num hospital psiquiátrico.
Espantar para sempre os
monstros de debaixo da cama.
Silvinha no sexto aborto.
Filho dele, do Saulo, aquela massa meio mole meio dura, vermelha.
Eu que não ia pra casa
com aquele troço vermelho e informe entalado na garganta. Vomitei tudo, chope, caldo verde, fritas,
trancada no banheiro.
Quando voltei, Serginho
estava lá, discorrendo sobre as vantagens da vida a dois. Foi embora cedo, que
agora era homem casado.
O suicídio da Rose não
teve mesmo nada a ver com a overdose da Laura, restava mais que provado. As
duas nem se conheciam. Embora ambas conhecessem o Sandrinho.
A Rose foi ao casamento
do Serginho, não foi? Toda produzida, com aquele vestido de calda de sereia
azul claro, parecia Iemanjá. Rose, com seu vestido de Iemanjá-sereia, fazia
planos para o futuro, tipo saldar pequenas dívidas, reformar a mobília, criar
gatos. Mês seguinte se matou, enrolada num lençol encharcado de gasolina.
Seis meses depois foi a vez do Serginho. A lua, não o sol. A lua veio buscá-lo, foice minguante parada no céu. Um casal de recém-casados bebia vinho e via a lua do telhado do edifício. Noite fria, de julho. Serginho morreu afogado no luar da imensa caixa d’água que abastecia os quinze andares do prédio onde um sol um dia saiu sorrindo de um pequeno escritório de publicidade.
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