terça-feira, 29 de outubro de 2024

O viajante

 Isabel Pires

O fio de aço do pensamento cortando implacável, penetrando na carne cada vez mais fundo, rasgando músculos e nervos até atingir aquele ponto onde não há mais matéria, até atingir o espírito, incomodando-o, obrigando-o a desalojar-se do fundo escuro onde se refugiou. A lâmina afiada continuando a devastação impiedosa, deixando um rastro de sangue, chagas expostas, feridas há muito esquecidas, como folhas secas na margem do caminho. Folhas secas e empoeiradas, rolando esquecidas e perdidas por estradas tortuosas. O viajante curva sua fadiga e recolhe as folhas secas, desamassando-as, refrescando-as, reavivando-as. Respingando-lhes água. Água? Sangue vermelho, fresco. Jorra aos borbotões das próprias folhas torturadas. Oh, melhor deixá-las reverberando sem razão, esquecidas de si mesmo, até que virem pó, trituradas naturalmente pelo tempo. Mas sangram cada vez mais, se renovando no próprio sangue, cada vez mais frescas, mais vivas, mais expostas. Chagas que não encontram consolo. Nem sequer piedade.

A lâmina é impiedosa e penetra cada vez mais fundo, varando a ferida, cutucando-a, removendo-lhe as cascas que a recobrem tão artificialmente, denunciando-a. Aqui debaixo há uma chaga mal curada que esconde uma fonte inesgotável de dores.

Havia escárnio naquele riso, justamente o mais amado, o pensado com mais cuidado. A boca se movendo numa expressão de desprezo, se retorcendo de escárnio. Ah, dói. O riso frio rasga a pele, queima, dilacera. E zomba da ferida recém aberta. Mais tarde, ainda sobrevivem os últimos ecos daquele riso exuberante de sarcasmo. Ouvindo-os, acordes adormecidos subitamente despertos, os olhos queimam, ardem. As pálpebras piscam freneticamente, num ritmo louco. Batem, batem, em chamas, flamejantes. E começam finalmente os primeiros pingos quentes de lágrimas, pesados como os primeiros pingos de chuva, numa tempestade de verão. Troveja dentro do peito. As lágrimas escorrem finalmente abundantes, finalmente libertas, mas ainda quentes, por sobre o rosto intumescido. Aos poucos, porém, o horizonte se desanuvia. Não há mais tempestade. O vento bate no rosto, refrescando-o, purificando-o. E novamente as chagas são folhas secas, esquecidas à beira do caminho. 

O viajante retoma a jornada, reconciliado com seu destino.

***

O homem nu

Isabel Pires

Olha no relógio: quase onze horas da manhã. Aula infindável. O seminário se arrasta, monótono. A professora, impaciente com a apatia da turma, tenta despertar o interesse dos alunos com métodos coercitivos.

– Se ninguém quiser continuar o assunto que eu coloquei em discussão, vou ter que tomar uma medida muito séria.

Silêncio. A professora percorre com o olhar a sala, de ponta-a-ponta. Rostos sérios e graves, na maioria jovens, muito jovens.

– Afinal, vocês leram ou não o texto?

– Pro-fes-sora, o-olha, eu acho, eu acho que a questão

porcaria, por que não paro de gaguejar? Todo mundo deve estar me olhando e com vontade de estourar de rir. Na minha cara. Só porque eu gaguejo quando vou falar em público. A culpa é da professora. Autoritária. Nem parece que dá aula para universitários. E essa sala? Tem gente demais. Uns apáticos. E quando alguém resolve abrir a boca, ficam olhando com esse ar de superioridade de quem sabe tudo mas não está afim de falar. Porcaria. Por que é que eu tinha de abrir a boca? Antes ficar quieto, como esse bando de apáticos. O horário já está acabando mesmo

Enquanto fala para a assistência – metade das cadeiras ocupadas, a outra metade vazia –, ele gesticula. Esbarra o braço na pilha de livros sobre a carteira. Dois livros despencam no chão.

– Obrigado – recebe os livros apressadamente, que a jovem a seu lado entrega, com gestos calmos, tranquilos.

e ainda sorri, a cretina. Vê que estou nervoso e sorri. Quem ela pensa que é, com essa autossuficiência toda? Queria ver ela colocar em discussão o assunto que eu levantei. Cretina, convencida

Concentra-se no caderno aberto à frente. Folhas e folhas preenchidas de esquemas, resumos, lembretes, notas. Fixa as linhas simétricas, onde os garranchos das letras se equilibram. Sempre paralelas, nunca incomodam umas às outras, as linhas do caderno. Como os móveis do seu quarto. O quarto.

porcaria, quando tou estudando trancado no quarto, não tem nada disso. Sei perfeitamente o que eu vou falar no seminário, e quando chega o seminário, é essa gagueira toda. Porcaria

(Trancado no quarto, discorre sobre Comte, Marx, Maquiavel, além de temas atuais: a situação do índio no Brasil, o feminismo na América Latina, a crescente violência urbana, o eterno conflito no Oriente Médio. Dá voltas pelo recinto. A cama e o guarda-roupa pomposamente aguardam o pronunciamento. O orador se volta, faz uma reverência – sorriso para o criado-mudo – e prossegue a fala: “Segundo a teoria marxista, o conceito de classe social é um conceito que...”. O discurso vara a noite. De vez em quando, toma um gole de água – a garganta seca. Consulta o despertador – único ouvinte desatento, sempre irrequieto com seu tique-taque, mas não suficiente para interromper a palestra. Tão tarde? Enfia-se debaixo das cobertas, sorrindo ainda para a assistência)

por que as pessoas não são como os guarda-roupas? Ou mesmo como o despertador, que apesar do tique-taque, ainda é bem mais simpático que muita gente por aí?

– Professora, hum, só mais uma coisa, hum. Eu gostaria de voltar ao primeiro item, hum, porque

e esse arranhado na garganta. Estou rouco, completamente rouco. Agora que esses palhaços vão rebentar de rir de mim. Será que eu gripei? Hum, hum, alguém aí tem pastilha de hortelã? Nem que tivessem, não dariam. Uns egoístas, eu sei

Continua a gaguejar e, de repente, olha para a lousa atrás da professora. Fixa o olhar no quadrado branco, embutido na parede. A lousa branca. Como nunca reparou nela, nos dias de seminário? Olhando para a imponente lousa branca, ele não gagueja mais. Não há mais ninguém na sala – foram-se embora todos os apáticos. Ele está só, como no seu quarto. Ele e a lousa branca. Ele e o seu mundo. Mundo quadrado, em branco.

Para de falar e, mecanicamente, apoia a palma da mão na face. Continua encarando a lousa branca, agradecido. Seu rosto não queima mais.

A aula chega ao fim. Cadeiras se arrastam – os apáticos ainda estavam aí? O olhar de superioridade agora é seu. Sorriso iluminado. Quase pisca para a lousa branca. Recolhe os objetos e sai despido para o pátio da faculdade. 

***