Isabel Pires
O fio de aço do
pensamento cortando implacável, penetrando na carne cada vez mais fundo,
rasgando músculos e nervos até atingir aquele ponto onde não há mais matéria, até
atingir o espírito, incomodando-o, obrigando-o a desalojar-se do fundo escuro
onde se refugiou. A lâmina afiada continuando a devastação impiedosa, deixando
um rastro de sangue, chagas expostas, feridas há muito esquecidas, como folhas
secas na margem do caminho. Folhas secas e empoeiradas, rolando esquecidas e
perdidas por estradas tortuosas. O viajante curva sua fadiga e recolhe as
folhas secas, desamassando-as, refrescando-as, reavivando-as. Respingando-lhes
água. Água? Sangue vermelho, fresco. Jorra aos borbotões das próprias folhas
torturadas. Oh, melhor deixá-las reverberando sem razão, esquecidas de si
mesmo, até que virem pó, trituradas naturalmente pelo tempo. Mas sangram cada
vez mais, se renovando no próprio sangue, cada vez mais frescas, mais vivas,
mais expostas. Chagas que não encontram consolo. Nem sequer piedade.
A lâmina é impiedosa e
penetra cada vez mais fundo, varando a ferida, cutucando-a, removendo-lhe as
cascas que a recobrem tão artificialmente, denunciando-a. Aqui debaixo há uma
chaga mal curada que esconde uma fonte inesgotável de dores.
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