Isabel
Pires
Olha no relógio: quase onze
horas da manhã. Aula infindável. O seminário se arrasta, monótono. A
professora, impaciente com a apatia da turma, tenta despertar o interesse dos
alunos com métodos coercitivos.
– Se ninguém quiser
continuar o assunto que eu coloquei em discussão, vou ter que tomar uma medida
muito séria.
Silêncio. A professora
percorre com o olhar a sala, de ponta-a-ponta. Rostos sérios e graves, na
maioria jovens, muito jovens.
– Afinal, vocês leram
ou não o texto?
– Pro-fes-sora, o-olha,
eu acho, eu acho que a questão
porcaria,
por que não paro de gaguejar? Todo mundo deve estar me olhando e com vontade de
estourar de rir. Na minha cara. Só porque eu gaguejo quando vou falar em
público. A culpa é da professora. Autoritária. Nem parece que dá aula para
universitários. E essa sala? Tem gente demais. Uns apáticos. E quando alguém
resolve abrir a boca, ficam olhando com esse ar de superioridade de quem sabe
tudo mas não está afim de falar. Porcaria. Por que é que eu tinha de abrir a
boca? Antes ficar quieto, como esse bando de apáticos. O horário já está
acabando mesmo
Enquanto fala para a
assistência – metade das cadeiras ocupadas, a outra metade vazia –, ele
gesticula. Esbarra o braço na pilha de livros sobre a carteira. Dois livros
despencam no chão.
– Obrigado – recebe os
livros apressadamente, que a jovem a seu lado entrega, com gestos calmos,
tranquilos.
e
ainda sorri, a cretina. Vê que estou nervoso e sorri. Quem ela pensa que é, com
essa autossuficiência toda? Queria ver ela colocar em discussão o assunto que
eu levantei. Cretina, convencida
Concentra-se no caderno
aberto à frente. Folhas e folhas preenchidas de esquemas, resumos, lembretes,
notas. Fixa as linhas simétricas, onde os garranchos das letras se equilibram.
Sempre paralelas, nunca incomodam umas às outras, as linhas do caderno. Como os
móveis do seu quarto. O quarto.
porcaria,
quando tou estudando trancado no quarto, não tem nada disso. Sei perfeitamente
o que eu vou falar no seminário, e quando chega o seminário, é essa gagueira
toda. Porcaria
(Trancado no quarto,
discorre sobre Comte, Marx, Maquiavel, além de temas atuais: a situação do
índio no Brasil, o feminismo na América Latina, a crescente violência urbana, o eterno conflito no Oriente Médio. Dá voltas pelo recinto. A cama
e o guarda-roupa pomposamente aguardam o pronunciamento. O orador se volta, faz
uma reverência – sorriso para o criado-mudo – e prossegue a fala: “Segundo a
teoria marxista, o conceito de classe social é um conceito que...”. O discurso
vara a noite. De vez em quando, toma um gole de água – a garganta seca.
Consulta o despertador – único ouvinte desatento, sempre irrequieto com seu
tique-taque, mas não suficiente para interromper a palestra. Tão tarde? Enfia-se
debaixo das cobertas, sorrindo ainda para a assistência)
por
que as pessoas não são como os guarda-roupas? Ou mesmo como o despertador, que
apesar do tique-taque, ainda é bem mais simpático que muita gente por aí?
– Professora, hum, só
mais uma coisa, hum. Eu gostaria de voltar ao primeiro item, hum, porque
e
esse arranhado na garganta. Estou rouco, completamente rouco. Agora que esses
palhaços vão rebentar de rir de mim. Será que eu gripei? Hum, hum, alguém aí
tem pastilha de hortelã? Nem que tivessem, não dariam. Uns egoístas, eu sei
Continua a gaguejar e,
de repente, olha para a lousa atrás da professora. Fixa o olhar no quadrado branco,
embutido na parede. A lousa branca. Como nunca reparou nela, nos dias de
seminário? Olhando para a imponente lousa branca, ele não gagueja mais. Não há mais
ninguém na sala – foram-se embora todos os apáticos. Ele está só, como no seu
quarto. Ele e a lousa branca. Ele e o seu mundo. Mundo quadrado, em branco.
Para de falar e, mecanicamente, apoia a palma da mão na face. Continua encarando a lousa branca, agradecido. Seu rosto não queima mais.
A aula chega ao fim. Cadeiras se arrastam – os apáticos ainda estavam aí? O olhar de superioridade agora é seu. Sorriso iluminado. Quase pisca para a lousa branca. Recolhe os objetos e sai despido para o pátio da faculdade.
***
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