Isabel Pires
Ela colhia
margaridas
quando eu
passei. As margaridas eram
os corações de
seus namorados,
que depois se
transformavam em ostras
e ela engolia em
grupos de dez.
(Carlos
Drummond de Andrade,
Registro Civil [trecho])
As duas se conheceram numa
clara manhã de domingo, enquanto compravam legumes orgânicos numa barraca da
feira.
– Prazer. Rosa
– Prazer. Margarida.
E ficaram tão
embevecidas de ambas terem nomes de flores que se tornaram amigas. De infância.
Telefonavam-se dia sim, no outro também. Trocavam mensagens pré fabricadas,
daquele tipo com flores virtuais e música de fundo, essas coisas que amigas de
infância fazem desde sempre. Sempre que podiam, faziam algum programinha
juntas: shopping, praia, balada. Pouco a pouco, porém, o negro ciúme começou a
se infiltrar entre elas, devastando lentamente tão linda amizade: se outra
amiga roubava a atenção de alguma delas, Rosa amuava dias e dias seguidos. Ou
então era Margarida quem embirrava.
Mas era bom quando
faziam as pazes, um verdadeiro céu. Tratavam de passar mais tempo juntas,
fazendo-se gentilezas recíprocas, trocavam lembrancinhas por nada. Agora – ou
deste sempre – uma não podia mais viver sem a outra.
Mas Rosa precisou
viajar, uma viagem demorada, a trabalho, nos cafundós do judas, onde este teria
perdido as botas. Dois meses sem ver Margarida.
Margarida quis ir junto, mas como faltar ao próprio trabalho?
Quando Rosa voltou,
Margarida parecia diferente.
No shopping lotado, a
praça de alimentação exalava balbúrdia e cheiros indefinidos. Margarida
lanchava, quando Rosa a avistou, de longe, de mãos dadas com uma amiga.
A amiga de Margarida,
grávida, não cabia em si de contente, e a convidava para madrinha do rebento.
Um sonho, dizia ela, há tanto tempo sonhado, e agora plenamente realizado.
Quando Rosa
aproximou-se, Margarida, soltando discretamente as mãos da amiga, convidou-a a
juntar-se a elas, mas Rosa, sem disfarçar a agonia que sentia, se foi, não sem
antes olhar bem no fundo dos olhos castanho-escuros de Margarida, para levar consigo
um pouco de saudade com que aquecer suas noites geladas.
Nunca mais tinham se
visto, quando o acaso, que não tem mais o que fazer, colocou-as frente à
frente, num final de tarde úmido e quente. Margarida segurava com uma das mãos a
imensa barriga, como fazem as mães desde sempre. Alguma coisa muito terna
invadiu o peito de Rosa, derretendo-a toda. Apenas se abraçaram e se beijaram
contentes.
Margarida desfiou suas
lamentações para a amiga: o pai do bebê, um bancário que ela conhecera sob um sol
forte num sábado de praia e muita cerveja, era um rematado canalha. Rosa queria
saber mais sobre aquele serzinho que estava vindo. Menina ou menino? Puseram-se
a falar de nomes – era preciso, afinal, conversar com a bebê. Vitória, queria
Margarida. Regina, palpitou Rosa. Vitória Regina? Ou Regina Vitória. E ficou
decidido, num súbito espasmo de espanto e alegria: Vitória Régia seria.
Retornando uma tarde do
trabalho, Rosa foi visitar Margarida e Vitória Régia. Quando tocou a campainha,
o bancário veio atender, com a pequena Vitória Régia tão aninhada em seus
braços, que pareciam entrelaçados desde sempre. Rosa, atrapalhada com a caixa
de nhás-bentas que levava, não sabia o que fazer. Margarida veio à porta,
recebeu os doces da amiga, devolveu um livro há tanto tempo esquecido e – “Tudo
de bom para você!” – fechou a porta, com Rosa despetalada do lado de fora.
O Largo da Carioca
fervilhava quando Rosa o atravessou a passos largos, em direção ao banco: aos
pés da estátua viva de um anjo, cujas asas purpurinadas rerilhavam ao sol do
meio-dia, um casal apresentava, ao som de viola, um repente que falava em
mulher-diaba, crianças sem cérebro, políticos corruptos – esses seres que só
existem na ficção –, enquanto, do outro lado do largo, uma mulher de longas
vestes brancas clamava aos passantes: “Abandonem seus pecados. Deus tem grandes
planos para vocês, mas vocês devem abandonar o pecado”. Rosa seguia incólume e
atrasada, uma pilha de contas a pagar dentro da bolsa.
No banco, uma fila
interminável fazia Rosa desacreditar das pessoas, dos astros, do amor.
Subitamente, o acaso: Otávio – era o bancário de Margarida – estava atendendo
na fila das prioridades. Rosa decidiu ir falar-lhe. “A senhora é correntista
desta agência?”. “Sou a Rosa, não se lembra?”. E como lhe falasse a memória,
ela esclareceu: “Um dia, na praia… Você me disse que trabalhava aqui…”.
Dia chuvoso, de
shopping lotado. Era preciso levar as crianças para algum lugar. Otávio,
Margarida e Vitória Régia, esta última de cavalinho no pescoço do pai, que,
decididamente, parecia talhado desde tempos imemoriais para esta função.
Na fila de ingressos para
o cinema, Rosa segurava a barriga com uma das mãos – como fazem as mães desde
sempre –, enquanto discutia com alguém sobre prioridade, exibindo o barrigão de
oito meses.
Ao vê-la, Margarida
derreteu-se toda. E então foi sua vez de sentir alguma coisa terna e quente
espalhando-se dentro do peito. Posou a mão sobre a barriga de Rosa, que, com
olhos úmidos e grandes, fitava a amiga. “Sentiu?”. Um puxão, um chute bem dado.
Lá dentro, Gabriel parecia impaciente para saber o que havia do outro lado.
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