sábado, 14 de setembro de 2024

Anjos e flores

 Isabel Pires

Ela colhia margaridas

quando eu passei. As margaridas eram

os corações de seus namorados,

que depois se transformavam em ostras

e ela engolia em grupos de dez.

(Carlos Drummond de Andrade,

Registro Civil [trecho])

 

As duas se conheceram numa clara manhã de domingo, enquanto compravam legumes orgânicos numa barraca da feira.

– Prazer. Rosa

– Prazer. Margarida.

E ficaram tão embevecidas de ambas terem nomes de flores que se tornaram amigas. De infância. Telefonavam-se dia sim, no outro também. Trocavam mensagens pré fabricadas, daquele tipo com flores virtuais e música de fundo, essas coisas que amigas de infância fazem desde sempre. Sempre que podiam, faziam algum programinha juntas: shopping, praia, balada. Pouco a pouco, porém, o negro ciúme começou a se infiltrar entre elas, devastando lentamente tão linda amizade: se outra amiga roubava a atenção de alguma delas, Rosa amuava dias e dias seguidos. Ou então era Margarida quem embirrava.

Mas era bom quando faziam as pazes, um verdadeiro céu. Tratavam de passar mais tempo juntas, fazendo-se gentilezas recíprocas, trocavam lembrancinhas por nada. Agora – ou deste sempre – uma não podia mais viver sem a outra.

Mas Rosa precisou viajar, uma viagem demorada, a trabalho, nos cafundós do judas, onde este teria perdido as botas. Dois meses sem ver Margarida.

Margarida quis ir junto, mas como faltar ao próprio trabalho?

Quando Rosa voltou, Margarida parecia diferente.

No shopping lotado, a praça de alimentação exalava balbúrdia e cheiros indefinidos. Margarida lanchava, quando Rosa a avistou, de longe, de mãos dadas com uma amiga.

A amiga de Margarida, grávida, não cabia em si de contente, e a convidava para madrinha do rebento. Um sonho, dizia ela, há tanto tempo sonhado, e agora plenamente realizado.

Quando Rosa aproximou-se, Margarida, soltando discretamente as mãos da amiga, convidou-a a juntar-se a elas, mas Rosa, sem disfarçar a agonia que sentia, se foi, não sem antes olhar bem no fundo dos olhos castanho-escuros de Margarida, para levar consigo um pouco de saudade com que aquecer suas noites geladas.

Nunca mais tinham se visto, quando o acaso, que não tem mais o que fazer, colocou-as frente à frente, num final de tarde úmido e quente. Margarida segurava com uma das mãos a imensa barriga, como fazem as mães desde sempre. Alguma coisa muito terna invadiu o peito de Rosa, derretendo-a toda. Apenas se abraçaram e se beijaram contentes.

Margarida desfiou suas lamentações para a amiga: o pai do bebê, um bancário que ela conhecera sob um sol forte num sábado de praia e muita cerveja, era um rematado canalha. Rosa queria saber mais sobre aquele serzinho que estava vindo. Menina ou menino? Puseram-se a falar de nomes – era preciso, afinal, conversar com a bebê. Vitória, queria Margarida. Regina, palpitou Rosa. Vitória Regina? Ou Regina Vitória. E ficou decidido, num súbito espasmo de espanto e alegria: Vitória Régia seria.

Retornando uma tarde do trabalho, Rosa foi visitar Margarida e Vitória Régia. Quando tocou a campainha, o bancário veio atender, com a pequena Vitória Régia tão aninhada em seus braços, que pareciam entrelaçados desde sempre. Rosa, atrapalhada com a caixa de nhás-bentas que levava, não sabia o que fazer. Margarida veio à porta, recebeu os doces da amiga, devolveu um livro há tanto tempo esquecido e – “Tudo de bom para você!” – fechou a porta, com Rosa despetalada do lado de fora.

O Largo da Carioca fervilhava quando Rosa o atravessou a passos largos, em direção ao banco: aos pés da estátua viva de um anjo, cujas asas purpurinadas rerilhavam ao sol do meio-dia, um casal apresentava, ao som de viola, um repente que falava em mulher-diaba, crianças sem cérebro, políticos corruptos – esses seres que só existem na ficção –, enquanto, do outro lado do largo, uma mulher de longas vestes brancas clamava aos passantes: “Abandonem seus pecados. Deus tem grandes planos para vocês, mas vocês devem abandonar o pecado”. Rosa seguia incólume e atrasada, uma pilha de contas a pagar dentro da bolsa.

No banco, uma fila interminável fazia Rosa desacreditar das pessoas, dos astros, do amor. Subitamente, o acaso: Otávio – era o bancário de Margarida – estava atendendo na fila das prioridades. Rosa decidiu ir falar-lhe. “A senhora é correntista desta agência?”. “Sou a Rosa, não se lembra?”. E como lhe falasse a memória, ela esclareceu: “Um dia, na praia… Você me disse que trabalhava aqui…”.

Dia chuvoso, de shopping lotado. Era preciso levar as crianças para algum lugar. Otávio, Margarida e Vitória Régia, esta última de cavalinho no pescoço do pai, que, decididamente, parecia talhado desde tempos imemoriais para esta função.

Na fila de ingressos para o cinema, Rosa segurava a barriga com uma das mãos – como fazem as mães desde sempre –, enquanto discutia com alguém sobre prioridade, exibindo o barrigão de oito meses.

Ao vê-la, Margarida derreteu-se toda. E então foi sua vez de sentir alguma coisa terna e quente espalhando-se dentro do peito. Posou a mão sobre a barriga de Rosa, que, com olhos úmidos e grandes, fitava a amiga. “Sentiu?”. Um puxão, um chute bem dado. Lá dentro, Gabriel parecia impaciente para saber o que havia do outro lado.

As duas, enlaçadas, tagarelando sobre tudo e sobre nada, entraram esquecidas do mundo no escuro do cinema, enquanto Otávio levava pela mão a pequena Vitória Régia, agarrada num imenso pacote de pipoca quentinha.

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