segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Pirâmide

Isabel Pires

Isso aqui tá uma chatice. E tenho a piramidal ideia de ir visitar o anão verde, que me olha antigo e sorri para mim cor-de-vômito. E os seus dentes são amarelos, pontiagudos, e têm alguma coisa de errado que eu não consigo captar o que seja. Mas é tremendo o esforço que a gente faz para viver, aguentando os engulhos que nos sobem à garganta e lá ficam entalados. A gente acaba calejando e, por isso, a visão do anão verde sorrateiro e sorridente já não nos provoca mais nenhuma emoção. Distraio a atenção dele. Mas o anão verde percebe e bate palminhas, tentando me capturar. 

Foi assim quando ele bateu na porta e eu pensei que era o anão verde, insistindo em me perseguir. Mas era um rapaz alto, muito alto, e todo dourado. Sorriu para mim cor-de-alegria e tão delicadamente que eu quase chorei de verdade. E de repente eu e ele, o moço dourado, a gente tava sentado nas almofadas da sala, vendo desenho na tevê e tomando chocolate quente, pois estava muito frio e dias frios são próprios para isso. 

Pois aí, minha panterinha começou a rosnar e assustou o moço dourado que se pôs de pé rapidinho e foi embora, sem dizer a que veio. O dia estava muito frio, mas minha pantera negra precisava tomar banho e eu fui banhá-la, depois que o moço dourado foi embora. Esfreguei bastante xampu cremoso e brilhante no pelo dela, e o pelo negro dela ficou cremoso e brilhante, mas com um cheiro assim meio esquisito, que não sei não. Acho que vou trocar a marca do xampu. 

Mas é tudo tão simples e natural, que até aquele rapaz do apartamento em cima do meu achou que era mais fácil sair para a rua pulando da janela do que descendo pelo elevador ou mesmo pelas escadas. Acho que ele esqueceu das outras janelas debaixo da janela dele. Mas não tem importância, lá embaixo já está tudo limpo. O novo síndico é realmente muito zeloso. 

O cheiro de dama-da-noite estava no ar e era uma noite quente de verão. Tão quente, que as pessoas nas ruas tinham o cuidado para não se esbarrarem, confundindo os seus suores e os seus sonhos pegajosos de tão libidinosos nessa noite quente e cheirando a dama-da-noite. Mas isso é outra história, nessa aqui é tudo limpo e asseado. 

E por isso eu não conto o que estava escrito atrás da porta do banheiro sobre Deus. Quer dizer, estava escrito sobre Deus atrás da porta do banheiro, sei lá. Os crentes iam se escandalizar. Os católicos, não. Há muito tempo que eles não mais se escandalizam. Mas eu não conto, não conto, não conto. 

E ele soprou – eu já disse que ele tinha soprado? Pois soprou toda a cinza do cinzeiro e a cinza ficou espalhada, sentida de fazer dó. E depois alguém pisou por todo o lugar e não mais se podia distinguir a cinza amassada, apenas na sola dos sapatos de quem a amassou. Mas quem mesmo fez isso? 

O sorvete começou a derreter e começou a ficar sem graça e sem açúcar e sem nada. E eu comecei a ficar triste por causa disto e comecei a pensar numa ideia piramidal, mas tinha muito tempo que todas minhas ideias piramidais tinham me abandonado, e a única ideiazinha mais ou menos que tive foi ligar para ele. Mas o telefone deu “fora de área ou desligado. Tente mais tarde”. Aí, quando a gente senta e fica séria, começa a dar rugas no nosso rosto e começam a dizer que o tempo está marcando a nossa cara. Mas não é o tempo, e sim o vento, a água, o sabão que a gente usa. E o batom, a sombra, a máscara. Quando me dei conta, a solução era pegar carona numa nuvem e sair por aí, por cima dos mares do sul. Mas não tinha nuvem no céu, nem mesmo um fiapozinho.

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