Isabel Pires
Isso aqui tá uma chatice. E tenho a piramidal ideia de ir visitar o anão verde,
que me olha antigo e sorri para mim cor-de-vômito. E os seus dentes são
amarelos, pontiagudos, e têm alguma coisa de errado que eu não consigo captar o
que seja. Mas é tremendo o esforço que a gente faz para viver, aguentando os
engulhos que nos sobem à garganta e lá ficam entalados. A gente acaba calejando
e, por isso, a visão do anão verde sorrateiro e sorridente já não
nos provoca mais nenhuma emoção. Distraio a atenção dele. Mas o anão verde
percebe e bate palminhas, tentando me capturar.
Foi assim quando ele bateu na
porta e eu pensei que era o anão verde, insistindo em me perseguir. Mas era um
rapaz alto, muito alto, e todo dourado. Sorriu para mim cor-de-alegria e tão
delicadamente que eu quase chorei de verdade. E de repente eu e ele, o moço
dourado, a gente tava sentado nas almofadas da sala, vendo desenho na tevê e
tomando chocolate quente, pois estava muito frio e dias frios são próprios para
isso.
Pois aí, minha panterinha começou a rosnar e assustou o moço dourado que
se pôs de pé rapidinho e foi embora, sem dizer a que veio. O dia estava muito
frio, mas minha pantera negra precisava tomar banho e eu fui banhá-la, depois
que o moço dourado foi embora. Esfreguei bastante xampu cremoso e brilhante no
pelo dela, e o pelo negro dela ficou cremoso e brilhante, mas com um cheiro
assim meio esquisito, que não sei não. Acho que vou trocar a marca do xampu.
Mas
é tudo tão simples e natural, que até aquele rapaz do apartamento em cima do meu
achou que era mais fácil sair para a rua pulando da janela do que descendo pelo
elevador ou mesmo pelas escadas. Acho que ele esqueceu das outras janelas
debaixo da janela dele. Mas não tem importância, lá embaixo já está tudo limpo.
O novo síndico é realmente muito zeloso.
O cheiro de dama-da-noite estava no ar
e era uma noite quente de verão. Tão quente, que as pessoas nas ruas tinham o
cuidado para não se esbarrarem, confundindo os seus suores e os seus sonhos
pegajosos de tão libidinosos nessa noite quente e cheirando a dama-da-noite. Mas
isso é outra história, nessa aqui é tudo limpo e asseado.
E por isso eu não
conto o que estava escrito atrás da porta do banheiro sobre Deus. Quer dizer,
estava escrito sobre Deus atrás da porta do banheiro, sei lá. Os crentes iam se
escandalizar. Os católicos, não. Há muito tempo que eles não mais se
escandalizam. Mas eu não conto, não conto, não conto.
E ele soprou – eu já disse
que ele tinha soprado? Pois soprou toda a cinza do cinzeiro e a cinza ficou
espalhada, sentida de fazer dó. E depois alguém pisou por todo o lugar e não
mais se podia distinguir a cinza amassada, apenas na sola dos sapatos de quem a
amassou. Mas quem mesmo fez isso?
O sorvete começou a derreter e começou a ficar
sem graça e sem açúcar e sem nada. E eu comecei a ficar triste por causa disto e
comecei a pensar numa ideia piramidal, mas tinha muito tempo que todas minhas
ideias piramidais tinham me abandonado, e a única ideiazinha mais ou menos que
tive foi ligar para ele. Mas o telefone deu “fora de área ou desligado.
Tente mais tarde”. Aí, quando a gente senta e fica séria, começa a dar rugas no
nosso rosto e começam a dizer que o tempo está marcando a nossa cara. Mas não é
o tempo, e sim o vento, a água, o sabão que a gente usa. E o batom, a sombra, a
máscara. Quando me dei conta, a solução era pegar carona numa nuvem e sair por
aí, por cima dos mares do sul. Mas não tinha nuvem no céu, nem mesmo um
fiapozinho.
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