quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Oficina de pipas e papagaios

                                           Isabel Pires

 

Papagaio não é pipa. Esta é feita com dois pedaços de varinha de bambu atravessados, a intervalos regulares, sobre outra vareta maior. Forra-se com o papel de seda, com um dedo de margem, apenas as duas partes superiores, deixando aberta a terça parte de baixo. O papagaio é um quadrado inteiriço, todo forrado. Ambos têm rabiola. Sabe fazer rabiola?

O menino sabia. Esticava a linha sobre a mesa e ia fazendo os laços, colocando dentro deles as tirinhas da seda recortada com uma tesourinha meio cega. Uma tirinha preta, outra vermelha, outra preta, outra vermelha. Uma rabiola pro Flamengo. Outra pro Fluminense. Fazer pipa e papagaio tinha ciência, medida certa das coisas. A rabiola, por exemplo. Não podia ser muito grande. Senão rodava. E a pipa perdia altura, embicava, caía. Cerol não pode. A linha de carretel, contornando todos os lados da pipa, é enrolada em garrafas plásticas. Algumas meninas ajudavam. Menos passar cola, que achavam nojento.

Crianças. Pão doce e maçã eram a base por excelência de sua alimentação, complementada por pirulito, pipoca, chicletes. Pipa, bola, praia e bicicleta em abundância. E sorvete. Crianças deviam ser proibidas de ficarem doentes. O menino foi levado para o hospital para curar o dodói que iria sarar logo logo. Mandaram-no soprar um balão gozado e ele adormeceu.

O menino – chamava-se Julinho – sonhou que voava bem alto. Sentia o vento forte batendo-lhe no rosto, cabelos e braços, enquanto uma vertigem tomava conta dele. Aos poucos, percebeu que estava agarrado a uma pipa gigante toda colorida com todos os tons de cores. Ela dava volteios no ar. Girava girava girava e ficava toda branca. Depois, um raio de sol a atravessava, aquecendo-a, e ela voltava a ficar colorida de novo, parecendo um arco-íris. A rabiola, imensa, descrevia círculos no ar, girando sobre si mesma. A pipa ameaçava embicar e cair. Ele segurava firme, equilibrando-se nas varetas de bambu, mas a perícia de quem controlava a pipa, lá embaixo, era tamanha, que ela sempre ganhava altura. E subia novamente. E novamente voava voava voava. O mundo, apenas uma mancha azulada. Numa dessas manobras mirabolantes, o menino aproveitou para olhar para baixo. E viu, plantado na areia grossa da praia, um garoto de sua idade, manejando com destreza a linha de carretel esticada ao vento. O garoto usava um short igualzinho a um que ele tinha. E seu cabelo, meio comprido, batia-lhe nos olhos, tal como o de Julinho. Era Julinho. Do seio da imensa pipa colorida, Julinho viu-se lá embaixo, na areia da praia.

Nisto, acordou. Um tubo de plástico, fino, enfiado no dorso de uma das mãos, levava para dentro de seu corpo um líquido transparente que saía de uma garrafa plástica, pendurada de cabeça para baixo no alto de um cabide de ferro ao lado da cama. Ele mal podia mover o pescoço, cheio de esparadrapos na nuca. A enfermeira que veio dar-lhe os comprimidos e tomar-lhe a temperatura sorria um sorriso azul e dourado, macio como nuvem. Quando sair daqui vou poder soltar pipa? Claro que sim que sim sim sim sim

Um mês depois ele voltou ao hospital. Desta vez, ficou isolado numa espécie de cabine durante três dias. Quando a enfermeira de sorriso azul e dourado perguntou-lhe como estava, ele disse que sentia uma dor de barriga esquisita. Ao voltar para casa, percebeu que os primos menores sumiram de lá. Os maiores lhe dirigiam um olhar trágico, misto de pavor e piedade. Os adultos disfarçavam. A tia Clara, grávida de oito meses, não foi visitá-lo. Mas mandou-lhe barras de chocolate e um álbum de figurinhas. Progressivamente, sua rotina mudara. Os deveres de casa quase não lhe eram mais cobrados. Mês seguinte, o bebê da tia Clara nasceu e só ele não foi conhecê-lo. Dois meses depois, a rotina do menino mudou definitivamente. Em vez de escola, hospital. No lugar dos deveres, aqueles tubos, e injeções e comprimidos. E a enfermeira Regina, de sorriso azul e dourado, substituiu de vez a professora Vera, que tomava as lições com uma cantilena meio monótona meio estridente.

O pai de Julinho levou-o ao barbeiro e mandou que o homem passasse a máquina zero na cabeça do filho. Havia dado peste de piolho na escola no prédio no bairro na cidade no mundo. Julinho ganhou um boné novo, azul-marinho e vermelho, que ele usava com a aba virada para trás.

Pai, vamos fazer uma pipa? Só se for do Vasco. Julinho condescendeu. Havia sobrado muita seda preta e branca. Uns retalhos vermelhos completaram a cruz intrépida de Vasco da Gama. Cortaram tudo com a tesourinha que a mãe mandara afiar no chaveiro da esquina.

A ficha começou a cair certo dia em que Julinho viu o pai, de raiva, dar um chute com toda força na bola. A bola atravessou o ar e espatifou o bibelô de porcelana que enfeitava a estante da mãe, do outro lado da sala. Julinho olhou para a mãe, que acabara de entrar. E viu-lhe os lábios muito colados, os olhos imensamente abertos e marejados. Enxugando umas lágrimas furtivas com as pontas dos dedos, a mãe de Julinho retirou-se, sem palavras, e foi trancar-se no quarto. O pai ia saindo, apressado, quando Julinho segurou-o. Pai? O homem voltou-se, sem chão. Eu vou morrer, pai? O pai de Julinho, quarenta anos recém completados, caiu num choro estrangulado que parecia não ter fim. Foi Julinho quem o consolou, com as mesmas palavras que ouvia de Regina, a enfermeira de sorriso azul dourado:

Seja forte garoto, seja forte.

 

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