Isabel Pires
Papagaio não é pipa. Esta
é feita com dois pedaços de varinha de bambu atravessados, a intervalos
regulares, sobre outra vareta maior. Forra-se com o papel de seda, com um dedo
de margem, apenas as duas partes superiores, deixando aberta a terça parte de
baixo. O papagaio é um quadrado inteiriço, todo forrado. Ambos têm rabiola.
Sabe fazer rabiola?
O menino sabia. Esticava
a linha sobre a mesa e ia fazendo os laços, colocando dentro deles as tirinhas
da seda recortada com uma tesourinha meio cega. Uma tirinha preta, outra vermelha,
outra preta, outra vermelha. Uma rabiola pro Flamengo. Outra pro Fluminense.
Fazer pipa e papagaio tinha ciência, medida certa das coisas. A rabiola, por
exemplo. Não podia ser muito grande. Senão rodava. E a pipa perdia altura,
embicava, caía. Cerol não pode. A linha de carretel, contornando todos os lados
da pipa, é enrolada em garrafas plásticas. Algumas meninas ajudavam. Menos
passar cola, que achavam nojento.
Crianças. Pão doce e maçã
eram a base por excelência de sua alimentação, complementada por pirulito, pipoca,
chicletes. Pipa, bola, praia e bicicleta em abundância. E sorvete. Crianças
deviam ser proibidas de ficarem doentes. O menino foi levado para o hospital
para curar o dodói que iria sarar logo logo. Mandaram-no soprar um balão gozado
e ele adormeceu.
O menino – chamava-se Julinho
– sonhou que voava bem alto. Sentia o vento forte batendo-lhe no rosto, cabelos
e braços, enquanto uma vertigem tomava conta dele. Aos poucos, percebeu que
estava agarrado a uma pipa gigante toda colorida com todos os tons de cores.
Ela dava volteios no ar. Girava girava girava e ficava toda branca. Depois, um
raio de sol a atravessava, aquecendo-a, e ela voltava a ficar colorida de novo,
parecendo um arco-íris. A rabiola, imensa, descrevia círculos no ar, girando sobre
si mesma. A pipa ameaçava embicar e cair. Ele segurava firme, equilibrando-se
nas varetas de bambu, mas a perícia de quem controlava a pipa, lá embaixo, era
tamanha, que ela sempre ganhava altura. E subia novamente. E novamente voava
voava voava. O mundo, apenas uma mancha azulada. Numa dessas manobras
mirabolantes, o menino aproveitou para olhar para baixo. E viu, plantado na
areia grossa da praia, um garoto de sua idade, manejando com destreza a linha
de carretel esticada ao vento. O garoto usava um short igualzinho a um que ele
tinha. E seu cabelo, meio comprido, batia-lhe nos olhos, tal como o de Julinho.
Era Julinho. Do seio da imensa pipa colorida, Julinho viu-se lá embaixo, na
areia da praia.
Nisto, acordou. Um tubo
de plástico, fino, enfiado no dorso de uma das mãos, levava para dentro de seu
corpo um líquido transparente que saía de uma garrafa plástica, pendurada de
cabeça para baixo no alto de um cabide de ferro ao lado da cama. Ele mal podia
mover o pescoço, cheio de esparadrapos na nuca. A enfermeira que veio dar-lhe
os comprimidos e tomar-lhe a temperatura sorria um sorriso azul e dourado,
macio como nuvem. Quando sair daqui vou poder soltar pipa? Claro que sim que
sim sim sim sim
Um mês depois ele voltou
ao hospital. Desta vez, ficou isolado numa espécie de cabine durante três dias.
Quando a enfermeira de sorriso azul e dourado perguntou-lhe como estava, ele
disse que sentia uma dor de barriga esquisita. Ao voltar para casa, percebeu
que os primos menores sumiram de lá. Os maiores lhe dirigiam um olhar trágico,
misto de pavor e piedade. Os adultos disfarçavam. A tia Clara, grávida de oito
meses, não foi visitá-lo. Mas mandou-lhe barras de chocolate e um álbum de
figurinhas. Progressivamente, sua rotina mudara. Os deveres de casa quase não
lhe eram mais cobrados. Mês seguinte, o bebê da tia Clara nasceu e só ele não
foi conhecê-lo. Dois meses depois, a rotina do menino mudou definitivamente. Em
vez de escola, hospital. No lugar dos deveres, aqueles tubos, e injeções e
comprimidos. E a enfermeira Regina, de sorriso azul e dourado, substituiu de
vez a professora Vera, que tomava as lições com uma cantilena meio monótona
meio estridente.
O pai de Julinho levou-o
ao barbeiro e mandou que o homem passasse a máquina zero na cabeça do filho.
Havia dado peste de piolho na escola no prédio no bairro na cidade no mundo.
Julinho ganhou um boné novo, azul-marinho e vermelho, que ele usava com a aba
virada para trás.
Pai, vamos fazer uma
pipa? Só se for do Vasco. Julinho condescendeu. Havia sobrado muita seda preta
e branca. Uns retalhos vermelhos completaram a cruz intrépida de Vasco da Gama.
Cortaram tudo com a tesourinha que a mãe mandara afiar no chaveiro da esquina.
A ficha começou a cair certo
dia em que Julinho viu o pai, de raiva, dar um chute com toda força na bola. A
bola atravessou o ar e espatifou o bibelô de porcelana que enfeitava a estante
da mãe, do outro lado da sala. Julinho olhou para a mãe, que acabara de entrar.
E viu-lhe os lábios muito colados, os olhos imensamente abertos e marejados.
Enxugando umas lágrimas furtivas com as pontas dos dedos, a mãe de Julinho
retirou-se, sem palavras, e foi trancar-se no quarto. O pai ia saindo,
apressado, quando Julinho segurou-o. Pai? O homem voltou-se, sem chão. Eu vou
morrer, pai? O pai de Julinho, quarenta anos recém completados, caiu num choro
estrangulado que parecia não ter fim. Foi Julinho quem o consolou, com as
mesmas palavras que ouvia de Regina, a enfermeira de sorriso azul dourado:
— Seja
forte garoto, seja forte.
***
Nenhum comentário:
Postar um comentário