terça-feira, 29 de outubro de 2024

O viajante

 Isabel Pires

O fio de aço do pensamento cortando implacável, penetrando na carne cada vez mais fundo, rasgando músculos e nervos até atingir aquele ponto onde não há mais matéria, até atingir o espírito, incomodando-o, obrigando-o a desalojar-se do fundo escuro onde se refugiou. A lâmina afiada continuando a devastação impiedosa, deixando um rastro de sangue, chagas expostas, feridas há muito esquecidas, como folhas secas na margem do caminho. Folhas secas e empoeiradas, rolando esquecidas e perdidas por estradas tortuosas. O viajante curva sua fadiga e recolhe as folhas secas, desamassando-as, refrescando-as, reavivando-as. Respingando-lhes água. Água? Sangue vermelho, fresco. Jorra aos borbotões das próprias folhas torturadas. Oh, melhor deixá-las reverberando sem razão, esquecidas de si mesmo, até que virem pó, trituradas naturalmente pelo tempo. Mas sangram cada vez mais, se renovando no próprio sangue, cada vez mais frescas, mais vivas, mais expostas. Chagas que não encontram consolo. Nem sequer piedade.

A lâmina é impiedosa e penetra cada vez mais fundo, varando a ferida, cutucando-a, removendo-lhe as cascas que a recobrem tão artificialmente, denunciando-a. Aqui debaixo há uma chaga mal curada que esconde uma fonte inesgotável de dores.

Havia escárnio naquele riso, justamente o mais amado, o pensado com mais cuidado. A boca se movendo numa expressão de desprezo, se retorcendo de escárnio. Ah, dói. O riso frio rasga a pele, queima, dilacera. E zomba da ferida recém aberta. Mais tarde, ainda sobrevivem os últimos ecos daquele riso exuberante de sarcasmo. Ouvindo-os, acordes adormecidos subitamente despertos, os olhos queimam, ardem. As pálpebras piscam freneticamente, num ritmo louco. Batem, batem, em chamas, flamejantes. E começam finalmente os primeiros pingos quentes de lágrimas, pesados como os primeiros pingos de chuva, numa tempestade de verão. Troveja dentro do peito. As lágrimas escorrem finalmente abundantes, finalmente libertas, mas ainda quentes, por sobre o rosto intumescido. Aos poucos, porém, o horizonte se desanuvia. Não há mais tempestade. O vento bate no rosto, refrescando-o, purificando-o. E novamente as chagas são folhas secas, esquecidas à beira do caminho. 

O viajante retoma a jornada, reconciliado com seu destino.

***

O homem nu

Isabel Pires

Olha no relógio: quase onze horas da manhã. Aula infindável. O seminário se arrasta, monótono. A professora, impaciente com a apatia da turma, tenta despertar o interesse dos alunos com métodos coercitivos.

– Se ninguém quiser continuar o assunto que eu coloquei em discussão, vou ter que tomar uma medida muito séria.

Silêncio. A professora percorre com o olhar a sala, de ponta-a-ponta. Rostos sérios e graves, na maioria jovens, muito jovens.

– Afinal, vocês leram ou não o texto?

– Pro-fes-sora, o-olha, eu acho, eu acho que a questão

porcaria, por que não paro de gaguejar? Todo mundo deve estar me olhando e com vontade de estourar de rir. Na minha cara. Só porque eu gaguejo quando vou falar em público. A culpa é da professora. Autoritária. Nem parece que dá aula para universitários. E essa sala? Tem gente demais. Uns apáticos. E quando alguém resolve abrir a boca, ficam olhando com esse ar de superioridade de quem sabe tudo mas não está afim de falar. Porcaria. Por que é que eu tinha de abrir a boca? Antes ficar quieto, como esse bando de apáticos. O horário já está acabando mesmo

Enquanto fala para a assistência – metade das cadeiras ocupadas, a outra metade vazia –, ele gesticula. Esbarra o braço na pilha de livros sobre a carteira. Dois livros despencam no chão.

– Obrigado – recebe os livros apressadamente, que a jovem a seu lado entrega, com gestos calmos, tranquilos.

e ainda sorri, a cretina. Vê que estou nervoso e sorri. Quem ela pensa que é, com essa autossuficiência toda? Queria ver ela colocar em discussão o assunto que eu levantei. Cretina, convencida

Concentra-se no caderno aberto à frente. Folhas e folhas preenchidas de esquemas, resumos, lembretes, notas. Fixa as linhas simétricas, onde os garranchos das letras se equilibram. Sempre paralelas, nunca incomodam umas às outras, as linhas do caderno. Como os móveis do seu quarto. O quarto.

porcaria, quando tou estudando trancado no quarto, não tem nada disso. Sei perfeitamente o que eu vou falar no seminário, e quando chega o seminário, é essa gagueira toda. Porcaria

(Trancado no quarto, discorre sobre Comte, Marx, Maquiavel, além de temas atuais: a situação do índio no Brasil, o feminismo na América Latina, a crescente violência urbana, o eterno conflito no Oriente Médio. Dá voltas pelo recinto. A cama e o guarda-roupa pomposamente aguardam o pronunciamento. O orador se volta, faz uma reverência – sorriso para o criado-mudo – e prossegue a fala: “Segundo a teoria marxista, o conceito de classe social é um conceito que...”. O discurso vara a noite. De vez em quando, toma um gole de água – a garganta seca. Consulta o despertador – único ouvinte desatento, sempre irrequieto com seu tique-taque, mas não suficiente para interromper a palestra. Tão tarde? Enfia-se debaixo das cobertas, sorrindo ainda para a assistência)

por que as pessoas não são como os guarda-roupas? Ou mesmo como o despertador, que apesar do tique-taque, ainda é bem mais simpático que muita gente por aí?

– Professora, hum, só mais uma coisa, hum. Eu gostaria de voltar ao primeiro item, hum, porque

e esse arranhado na garganta. Estou rouco, completamente rouco. Agora que esses palhaços vão rebentar de rir de mim. Será que eu gripei? Hum, hum, alguém aí tem pastilha de hortelã? Nem que tivessem, não dariam. Uns egoístas, eu sei

Continua a gaguejar e, de repente, olha para a lousa atrás da professora. Fixa o olhar no quadrado branco, embutido na parede. A lousa branca. Como nunca reparou nela, nos dias de seminário? Olhando para a imponente lousa branca, ele não gagueja mais. Não há mais ninguém na sala – foram-se embora todos os apáticos. Ele está só, como no seu quarto. Ele e a lousa branca. Ele e o seu mundo. Mundo quadrado, em branco.

Para de falar e, mecanicamente, apoia a palma da mão na face. Continua encarando a lousa branca, agradecido. Seu rosto não queima mais.

A aula chega ao fim. Cadeiras se arrastam – os apáticos ainda estavam aí? O olhar de superioridade agora é seu. Sorriso iluminado. Quase pisca para a lousa branca. Recolhe os objetos e sai despido para o pátio da faculdade. 

***

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Blow up

Isabel Pires

Essa menina que se tirou muito a descolada. É que ia fazer uma viagem. E era tão tão pálida que todo mundo pensou ser ela de São Paulo, a grande capital. E essa menina se chamava A Menina Que Não Gosta de Salada.

Mãezinha dela dizia:

– Menina vem comer, que com essa cor de cera ninguém arranja namorado.

E ela:

Mãe, agora não dá senão perco o avião. Mas olha, prepara uma salada bem bonita pra quando eu voltar. Com alface a valer, espinafre, rúcula, almeirão, agrião e até manjericão. Mas agora me deixa ir. Está quase na hora do check-in.

Porque – depois descobriu-se – essa menina que tinha nome de natureza-morta dizia tudo por disfarce. Suas palavras descoradas, decoradas junto com a gangue, tinha um cheiro de sangue – sendo ela quase uma vampira (e, portanto, não enxergando um palmo adiante do nariz).

Mas a menina que não gostava de salada, que também tinha por nome Blitz, se dizia muito apaixonada. Por um piloto de avião. A mãe porém continuava a dizer-lhe:

– Um pouco de sangue nas faces não vai te deixar feia não. Mas vai tranquila, minha filha, é que eu não entendo pra que tanta correria.

Porque a menina – e isso, é certo, a mãe desconhecia – queria introduzir-se, como um frêmito, na cabine do avião.

Planos sanguinolentos tinha ela nos cabelos rubros balançando o vento. E a mãe, ao saber da notícia que explodiu em curto-circuito nas manchetes do dia, dançava doida. Ensandecida, dizia:

– Nunca mais alface. Deixa isso pra lá. Vou procurar aquela receita de bolo de chocolate com baba de moça, recheio de brigadeiro, enfeitado com cerejas bem vermelhas. Vou fazer mil guloseimas pra quando ela voltar. Lambuzar as mãos de doces, deixa o alface para lá. 

***

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Um nome na palma da mão


Isabel Pires

                                                                                                                                                

O prédio da faculdade era um tanto antigo, não muito confortável, mas ficava num lugar agradável e bastante amplo. Ao lado da salas de aula funcionava a secretaria. Na outra ala ficavam o auditório e os banheiros. No saguão, ao fundo, a biblioteca. No corredor das salas de aula havia várias portas de acesso ao pátio. Este era vastíssimo, com um imenso estacionamento e um lindo jardim cheio de árvores. Lá no fundo ficava a cantina, que funcionava como ponto de encontro dos estudantes durante o intervalo das aulas. E, ao seu lado, a creche. Esta última era a conquista mais importante dos últimos tempos. Servia tanto aos estudantes como aos professores que possuíam filhos pequenos e não tinham com quem os deixar.

Era hora do intervalo. A sala estava praticamente vazia. Apenas Eneida continuava debruçada sobre a carteira, lendo um livro em seu tablet. Um pouco mais atrás, Roberto também estava sentado, mas demonstrando apenas preguiça de se mexer do lugar. Vez ou outra dava uma espiada no celular, mas mesmo isso parecia cansá-lo. Roberto era o engraçadinho da turma, sempre com uma piada pronta, sempre disposto a fazer um bullying básico com alguém. Mas naquele exato instante parecia apenas entediado.

No corredor, próximo à porta e de costas para o interior da sala, alguns estudantes conversavam num semicírculo.

Eneida, muito concentrada na leitura, sobressaltou-se quando sentiu um leve toque no braço. Virou-se e respirou aliviada. Era o Ângelo, que acabara de se sentar numa carteira ao lado.

Oi, tudo bem? - começou ele -. Olha, Eneida, você está muito ocupada?

Bem, mais ou menos. Por quê?

É que eu precisava muito de um favor seu. Mas o que houve? - interrompeu-se ele -. Te assustei? -, perguntou, observando a tensão no rosto da jovem.

Não, não foi nada. É que eu estava um pouco distraída, quero dizer, concentrada demais na leitura, sabe como é... Você me pegou um pouco de surpresa. Não tinha visto você entrar.

Desculpe, Eneida. Mas é que realmente eu precisava de uma mão, entende? Estou com um pouco de pressa e ainda tenho que correr lá na secretaria para resolver um probleminha. Não vai dar pra fazer duas coisas ao mesmo tempo. Então eu pensei, e se a Eneida puder me ajudar?

A carteira em que Eneida se sentava ficava próxima à porta e, enquanto ela conversava com o Ângelo, viu quando as pessoas que estavam no corredor se dispersaram. Deviam estar indo para a cantina tomar o cafezinho do intervalo. No fundo da sala, Roberto deixou momentaneamente de lado a preguiça, e esticava o pescoço em direção ao corredor. Seu rosto era todo curiosidade.

Tudo bem, Ângelo. O que você quer que eu faça? – disse Eneida, já desistindo da leitura e guardando cuidadosamente o tablet em sua mochila.

Eu queria que você pegasse a Yalina na creche pra mim, enquanto eu vou lá na secretaria descascar esse abacaxi que pintou, tudo bem? Depois volto aqui, e pego a Yalina com você.

Yalina era filha do Ângelo. Tinha pouco mais de um ano e ele costumava trazê-la para a faculdade, porque sua mulher viajava a trabalho com bastante frequência e não podia levar a menina. No entanto, ninguém na turma jamais tinha visto a criança.

Eneida concordou, embora achasse um pouco absurdo. Afinal, o Ângelo ia ter mesmo que passar perto da creche, quando fosse retirar o carro do estacionamento. Mas não falou nada.

Está bem. Ia o quê? Como é mesmo o nome dela?

– Y – a – li – na – soletrou Ângelo -. Com ípsolon no começo.

É um pouco difícil. Yalina - repetiu Eneida -. Espera, acho melhor anotar.

Pescou uma caneta esquecida no fundo da mochila e escreveu o nome na palma da mão. “Yalina”. O Ângelo já saía da sala, apressadamente. Da porta, ele acenou para Eneida, que retribuiu o aceno, já se preparando para levantar e ir buscar e a menina.

Quando ia alcançando a porta, Roberto chamou-a.

– Ei, onde é que você vai?

Eneida o encarou. Roberto era decididamente intrometido.

Por quê?

Desculpa, desculpa. É que eu sou muito curioso…

Ah, disso todo mundo sabe - retrucou Eneida -. E daí?

Daí, que eu queria saber com quem você estava falando no corredor esse tempo todo. Não vi ninguém!

Eneida lançou-lhe um olhar bem hostil.

Engraçadinho! - de repente sorriu -. Você é mesmo maluco, Roberto.

Virou-se para sair, mas Roberto a interrompeu novamente.

Espere, você não disse onde está indo.

Não é da sua conta respondeu Eneida -. Você é bem curioso, hein?

E se pôs a andar, mas estacou o passo e virou-se para Roberto.

Tudo bem, vou satisfazer sua curiosidade insaciável… Vou lá na creche.

Ah, na creche... Mamãe.... Você nunca me disse que tinha filho. Como ele se chama?

Eneida balançou a cabeça, em desaprovação, e, sem mais responder, saiu da sala.

Na creche, Eneida precisou se explicar muito, para conseguir que a professora lhe entregasse a filha do Ângelo. Ao voltar à sala de aula, quase esbarrou em Júlia no corredor, que vinha toda afobada.

Nossa, onde você vai com essa pressa toda?

Júlia ajustou os óculos, piscando muito.

As aulas foram suspensas - disse -. Preciso sair correndo, tenho umas coisas pra resolver.

As aulas foram suspensas?! - Eneida estava boquiaberta -. Por quê?

Júlia piscou ainda mais, encarando Eneida.

Ué, você não sabe? Foi por causa do Ângelo. Bom, vou indo. Tá todo mundo lá na cantina, acalmando a Lourdinha. Ela viu tudo, coitada. Mas eu tenho mesmo que ir, desculpa. Ah!... - disse Júlia olhando a criança no colo de Eneida -, linda sua menina! - E foi saindo apressada.

Mas não é minha… Espera…

Eneida deixou cair o braço livre ao longo do corpo, desanimada, enquanto segurava Yalina com o outro braço. Franziu a testa, tentando compreender o monólogo incoerente da outra. Olhou a menina no seu colo. Só então pareceu decidir-se. Saiu disparada em direção à cantina. Havia uma agitação qualquer por lá, Eneida logo percebeu ainda atravessando o pátio. Entrou. As pessoas faziam um círculo meio compacto em torno de Lourdinha, que estava ainda muito nervosa, soluçando bastante. Lágrimas desordenadas escorriam-lhe pelo rosto.

– O que houve? - perguntou a jovem com a criança no colo.

Lourdinha olhou-a e fungou ainda mais. Uma outra jovem virou-se, meio enfastiada com a choradeira da outra, e começou a brincar com a criança que Eneida carregava.

Nossa, que menina mais fofa -, disse alguém.

É, é linda. Mas não é minha filha - foi logo avisando Eneida -. Mas o que que aconteceu?

Então pela vigésima vez, Lourdinha se pôs a contar.

Ah, meu Deus, foi horrível, horrível! - abanava a cabeça, limpando uns restos de lágrimas -. Eu estava saindo mais cedo hoje... Ah! quando eu lembro disso… Eu não devia ter matado aula, mas é que com aquele professor, não dá pra ficar em sala, não dá mesmo!

– Continue - interrompeu Eneida, mais curiosa.

Bom - continuou Lourdinha -, eu já estava saindo, quando vi o carro do Ângelo, lá na rua. Até pensei em pedir uma carona, mas ele parecia louco de pressa. Nem me viu. Atravessou a rua, normalmente, descendo a outra, sabe?

– Sei, sei.

Eneida estava impaciente. Conhecia perfeitamente as duas ruas transversais, movimentadíssimas, que faziam esquina no quarteirão da faculdade.

Pois aí - continuou Lourdinha -, de repente o Ângelo fez aquela loucura. Porque só sendo louco, muito louco mesmo. Eu vi que ia acontecer alguma merda, tive um pressentimento, sabe… Ah, meu Deus!

– Mas o que foi que ele fez, afinal? - Eneida não suportava mais a tensão.

O Ângelo tinha acabado de retirar o carro do estacionamento e já estava saindo da faculdade. Atravessou a rua mais movimentada, descendo a outra para, como de costume, fazer o retorno lá embaixo e pegar a avenida. Mas, ao acabar de atravessar a rua com o carro, pareceu ter se lembrado subitamente de algo e deu marcha a ré, sem olhar para os lados. Um ônibus vinha na transversal. Não estava em alta velocidade, mas pegou Ângelo em cheio, ao volante, de um jeito que o estraçalhou com o impacto. A morte foi instantânea. O carro, bastante danificado, ainda estava no meio da rua. O trânsito havia sido interrompido e a perícia lá estava agora, fazendo o seu trabalho.

Eneida, pálida, parecia prestes a desmaiar. Seu lábio tremia, e alguém tirou-lhe a criança dos braços. Sentaram-na numa cadeira e deram-lhe um pouco de água com açúcar.

O Ângelo?! Mas é incrível! - balbuciou, trêmula -. Eu tinha acabado de falar com ele, lá na sala. Agora mesmo, não faz nem 15 minutos! Ele me pediu para buscar a filha na creche. A Yalina, essa menina linda, é a filha do Ângelo. - Parou, franzindo a testa - Mas que coisa estranha, parece que ele se esqueceu completamente da menina. Tinha combinado de pegar a criança comigo, na sala!

As pessoas em volta olhavam para ela, sem compreender. Súbito, o silêncio se fez intenso. Eneida levantou a cabeça, perplexa.

– Mas o que há? Por que vocês estão me olhando assim?

Foi Roberto quem respondeu, numa cara incrivelmente séria. 

– O acidente aconteceu há mais de uma hora.


***


sábado, 14 de setembro de 2024

Anjos e flores

 Isabel Pires

Ela colhia margaridas

quando eu passei. As margaridas eram

os corações de seus namorados,

que depois se transformavam em ostras

e ela engolia em grupos de dez.

(Carlos Drummond de Andrade,

Registro Civil [trecho])

 

As duas se conheceram numa clara manhã de domingo, enquanto compravam legumes orgânicos numa barraca da feira.

– Prazer. Rosa

– Prazer. Margarida.

E ficaram tão embevecidas de ambas terem nomes de flores que se tornaram amigas. De infância. Telefonavam-se dia sim, no outro também. Trocavam mensagens pré fabricadas, daquele tipo com flores virtuais e música de fundo, essas coisas que amigas de infância fazem desde sempre. Sempre que podiam, faziam algum programinha juntas: shopping, praia, balada. Pouco a pouco, porém, o negro ciúme começou a se infiltrar entre elas, devastando lentamente tão linda amizade: se outra amiga roubava a atenção de alguma delas, Rosa amuava dias e dias seguidos. Ou então era Margarida quem embirrava.

Mas era bom quando faziam as pazes, um verdadeiro céu. Tratavam de passar mais tempo juntas, fazendo-se gentilezas recíprocas, trocavam lembrancinhas por nada. Agora – ou deste sempre – uma não podia mais viver sem a outra.

Mas Rosa precisou viajar, uma viagem demorada, a trabalho, nos cafundós do judas, onde este teria perdido as botas. Dois meses sem ver Margarida.

Margarida quis ir junto, mas como faltar ao próprio trabalho?

Quando Rosa voltou, Margarida parecia diferente.

No shopping lotado, a praça de alimentação exalava balbúrdia e cheiros indefinidos. Margarida lanchava, quando Rosa a avistou, de longe, de mãos dadas com uma amiga.

A amiga de Margarida, grávida, não cabia em si de contente, e a convidava para madrinha do rebento. Um sonho, dizia ela, há tanto tempo sonhado, e agora plenamente realizado.

Quando Rosa aproximou-se, Margarida, soltando discretamente as mãos da amiga, convidou-a a juntar-se a elas, mas Rosa, sem disfarçar a agonia que sentia, se foi, não sem antes olhar bem no fundo dos olhos castanho-escuros de Margarida, para levar consigo um pouco de saudade com que aquecer suas noites geladas.

Nunca mais tinham se visto, quando o acaso, que não tem mais o que fazer, colocou-as frente à frente, num final de tarde úmido e quente. Margarida segurava com uma das mãos a imensa barriga, como fazem as mães desde sempre. Alguma coisa muito terna invadiu o peito de Rosa, derretendo-a toda. Apenas se abraçaram e se beijaram contentes.

Margarida desfiou suas lamentações para a amiga: o pai do bebê, um bancário que ela conhecera sob um sol forte num sábado de praia e muita cerveja, era um rematado canalha. Rosa queria saber mais sobre aquele serzinho que estava vindo. Menina ou menino? Puseram-se a falar de nomes – era preciso, afinal, conversar com a bebê. Vitória, queria Margarida. Regina, palpitou Rosa. Vitória Regina? Ou Regina Vitória. E ficou decidido, num súbito espasmo de espanto e alegria: Vitória Régia seria.

Retornando uma tarde do trabalho, Rosa foi visitar Margarida e Vitória Régia. Quando tocou a campainha, o bancário veio atender, com a pequena Vitória Régia tão aninhada em seus braços, que pareciam entrelaçados desde sempre. Rosa, atrapalhada com a caixa de nhás-bentas que levava, não sabia o que fazer. Margarida veio à porta, recebeu os doces da amiga, devolveu um livro há tanto tempo esquecido e – “Tudo de bom para você!” – fechou a porta, com Rosa despetalada do lado de fora.

O Largo da Carioca fervilhava quando Rosa o atravessou a passos largos, em direção ao banco: aos pés da estátua viva de um anjo, cujas asas purpurinadas rerilhavam ao sol do meio-dia, um casal apresentava, ao som de viola, um repente que falava em mulher-diaba, crianças sem cérebro, políticos corruptos – esses seres que só existem na ficção –, enquanto, do outro lado do largo, uma mulher de longas vestes brancas clamava aos passantes: “Abandonem seus pecados. Deus tem grandes planos para vocês, mas vocês devem abandonar o pecado”. Rosa seguia incólume e atrasada, uma pilha de contas a pagar dentro da bolsa.

No banco, uma fila interminável fazia Rosa desacreditar das pessoas, dos astros, do amor. Subitamente, o acaso: Otávio – era o bancário de Margarida – estava atendendo na fila das prioridades. Rosa decidiu ir falar-lhe. “A senhora é correntista desta agência?”. “Sou a Rosa, não se lembra?”. E como lhe falasse a memória, ela esclareceu: “Um dia, na praia… Você me disse que trabalhava aqui…”.

Dia chuvoso, de shopping lotado. Era preciso levar as crianças para algum lugar. Otávio, Margarida e Vitória Régia, esta última de cavalinho no pescoço do pai, que, decididamente, parecia talhado desde tempos imemoriais para esta função.

Na fila de ingressos para o cinema, Rosa segurava a barriga com uma das mãos – como fazem as mães desde sempre –, enquanto discutia com alguém sobre prioridade, exibindo o barrigão de oito meses.

Ao vê-la, Margarida derreteu-se toda. E então foi sua vez de sentir alguma coisa terna e quente espalhando-se dentro do peito. Posou a mão sobre a barriga de Rosa, que, com olhos úmidos e grandes, fitava a amiga. “Sentiu?”. Um puxão, um chute bem dado. Lá dentro, Gabriel parecia impaciente para saber o que havia do outro lado.

As duas, enlaçadas, tagarelando sobre tudo e sobre nada, entraram esquecidas do mundo no escuro do cinema, enquanto Otávio levava pela mão a pequena Vitória Régia, agarrada num imenso pacote de pipoca quentinha.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

O pagode

 Isabel Pires

 

Dizia que sim, que sim! E sabia perfeitamente que estava mentindo.

— Comprei umas terrinhas. Quero plantar e colher. Não é muita terra, mas é terra boa. É lá onde meu filho vai crescer e tomar banho de rio.

Ela ouvia, olhando longe.

— Você vai lá conhecer, não vai?, perguntou ele, e como ela não respondesse, ele a forçou a olhá-lo, segurando a cabeça dela com ambas as mãos, e sem mais perguntar, disse:

— Você vai lá conhecer.

Ela mexeu um pouco a cabeça, os lábios trancados, pois queria dizer outra coisa. Mas balançou a cabeça afirmativamente. Sim, iria. A pressão das mãos dele na cabeça dela cedeu e ela respirou forte, piscando os olhos. Ele bebeu mais da pinga com mel e ela aproveitou para virar bastante o rosto, observando a turma do pagode, lá na outra mesa, pagodando com todo vigor uma história de feijoada em que entravam orelha e rabo de porco, panela, farinha e pimenta. Ela riu um pouco escancaradamente mas arrependeu-se logo depois, quando se lembrou de que deveria levar tudo muito a sério. Então olhou para ele.

Ele aproximou o rosto demais, quase tocando no dela, e subitamente enfiou os dedos indicadores nos ouvidos dela. Puxou assim o rosto dela para junto do seu e queria morder-lhe os lábios, as maçãs do rosto, os olhos.

Ela mordeu com força o lábio superior dele e ele, magoado, retrocedeu. Bebeu mais. E abaixou a cabeça, entristecido. Ela sorriu por dentro, mas logo depois arrependeu-se. Por que não podia ser sincera com ele? Observou a força bruta que parecia saltar dos músculos do braço do homem à sua frente. E perdoou-se a si mesma. A cabeça dele, porém, era frágil, cheia de sonhos, inocência. Ela sentia-se uma víbora. Quis abraçá-lo. Mas já era tarde.

— Vamos – decidiu ele, numa voz seca.

Levantaram-se e, quem sabe decepcionados consigo mesmos, iniciaram a caminhada para o nada.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Oficina de pipas e papagaios

                                           Isabel Pires

 

Papagaio não é pipa. Esta é feita com dois pedaços de varinha de bambu atravessados, a intervalos regulares, sobre outra vareta maior. Forra-se com o papel de seda, com um dedo de margem, apenas as duas partes superiores, deixando aberta a terça parte de baixo. O papagaio é um quadrado inteiriço, todo forrado. Ambos têm rabiola. Sabe fazer rabiola?

O menino sabia. Esticava a linha sobre a mesa e ia fazendo os laços, colocando dentro deles as tirinhas da seda recortada com uma tesourinha meio cega. Uma tirinha preta, outra vermelha, outra preta, outra vermelha. Uma rabiola pro Flamengo. Outra pro Fluminense. Fazer pipa e papagaio tinha ciência, medida certa das coisas. A rabiola, por exemplo. Não podia ser muito grande. Senão rodava. E a pipa perdia altura, embicava, caía. Cerol não pode. A linha de carretel, contornando todos os lados da pipa, é enrolada em garrafas plásticas. Algumas meninas ajudavam. Menos passar cola, que achavam nojento.

Crianças. Pão doce e maçã eram a base por excelência de sua alimentação, complementada por pirulito, pipoca, chicletes. Pipa, bola, praia e bicicleta em abundância. E sorvete. Crianças deviam ser proibidas de ficarem doentes. O menino foi levado para o hospital para curar o dodói que iria sarar logo logo. Mandaram-no soprar um balão gozado e ele adormeceu.

O menino – chamava-se Julinho – sonhou que voava bem alto. Sentia o vento forte batendo-lhe no rosto, cabelos e braços, enquanto uma vertigem tomava conta dele. Aos poucos, percebeu que estava agarrado a uma pipa gigante toda colorida com todos os tons de cores. Ela dava volteios no ar. Girava girava girava e ficava toda branca. Depois, um raio de sol a atravessava, aquecendo-a, e ela voltava a ficar colorida de novo, parecendo um arco-íris. A rabiola, imensa, descrevia círculos no ar, girando sobre si mesma. A pipa ameaçava embicar e cair. Ele segurava firme, equilibrando-se nas varetas de bambu, mas a perícia de quem controlava a pipa, lá embaixo, era tamanha, que ela sempre ganhava altura. E subia novamente. E novamente voava voava voava. O mundo, apenas uma mancha azulada. Numa dessas manobras mirabolantes, o menino aproveitou para olhar para baixo. E viu, plantado na areia grossa da praia, um garoto de sua idade, manejando com destreza a linha de carretel esticada ao vento. O garoto usava um short igualzinho a um que ele tinha. E seu cabelo, meio comprido, batia-lhe nos olhos, tal como o de Julinho. Era Julinho. Do seio da imensa pipa colorida, Julinho viu-se lá embaixo, na areia da praia.

Nisto, acordou. Um tubo de plástico, fino, enfiado no dorso de uma das mãos, levava para dentro de seu corpo um líquido transparente que saía de uma garrafa plástica, pendurada de cabeça para baixo no alto de um cabide de ferro ao lado da cama. Ele mal podia mover o pescoço, cheio de esparadrapos na nuca. A enfermeira que veio dar-lhe os comprimidos e tomar-lhe a temperatura sorria um sorriso azul e dourado, macio como nuvem. Quando sair daqui vou poder soltar pipa? Claro que sim que sim sim sim sim

Um mês depois ele voltou ao hospital. Desta vez, ficou isolado numa espécie de cabine durante três dias. Quando a enfermeira de sorriso azul e dourado perguntou-lhe como estava, ele disse que sentia uma dor de barriga esquisita. Ao voltar para casa, percebeu que os primos menores sumiram de lá. Os maiores lhe dirigiam um olhar trágico, misto de pavor e piedade. Os adultos disfarçavam. A tia Clara, grávida de oito meses, não foi visitá-lo. Mas mandou-lhe barras de chocolate e um álbum de figurinhas. Progressivamente, sua rotina mudara. Os deveres de casa quase não lhe eram mais cobrados. Mês seguinte, o bebê da tia Clara nasceu e só ele não foi conhecê-lo. Dois meses depois, a rotina do menino mudou definitivamente. Em vez de escola, hospital. No lugar dos deveres, aqueles tubos, e injeções e comprimidos. E a enfermeira Regina, de sorriso azul e dourado, substituiu de vez a professora Vera, que tomava as lições com uma cantilena meio monótona meio estridente.

O pai de Julinho levou-o ao barbeiro e mandou que o homem passasse a máquina zero na cabeça do filho. Havia dado peste de piolho na escola no prédio no bairro na cidade no mundo. Julinho ganhou um boné novo, azul-marinho e vermelho, que ele usava com a aba virada para trás.

Pai, vamos fazer uma pipa? Só se for do Vasco. Julinho condescendeu. Havia sobrado muita seda preta e branca. Uns retalhos vermelhos completaram a cruz intrépida de Vasco da Gama. Cortaram tudo com a tesourinha que a mãe mandara afiar no chaveiro da esquina.

A ficha começou a cair certo dia em que Julinho viu o pai, de raiva, dar um chute com toda força na bola. A bola atravessou o ar e espatifou o bibelô de porcelana que enfeitava a estante da mãe, do outro lado da sala. Julinho olhou para a mãe, que acabara de entrar. E viu-lhe os lábios muito colados, os olhos imensamente abertos e marejados. Enxugando umas lágrimas furtivas com as pontas dos dedos, a mãe de Julinho retirou-se, sem palavras, e foi trancar-se no quarto. O pai ia saindo, apressado, quando Julinho segurou-o. Pai? O homem voltou-se, sem chão. Eu vou morrer, pai? O pai de Julinho, quarenta anos recém completados, caiu num choro estrangulado que parecia não ter fim. Foi Julinho quem o consolou, com as mesmas palavras que ouvia de Regina, a enfermeira de sorriso azul dourado:

Seja forte garoto, seja forte.

 

***

 

 

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Pirâmide

Isabel Pires

Isso aqui tá uma chatice. E tenho a piramidal ideia de ir visitar o anão verde, que me olha antigo e sorri para mim cor-de-vômito. E os seus dentes são amarelos, pontiagudos, e têm alguma coisa de errado que eu não consigo captar o que seja. Mas é tremendo o esforço que a gente faz para viver, aguentando os engulhos que nos sobem à garganta e lá ficam entalados. A gente acaba calejando e, por isso, a visão do anão verde sorrateiro e sorridente já não nos provoca mais nenhuma emoção. Distraio a atenção dele. Mas o anão verde percebe e bate palminhas, tentando me capturar. 

Foi assim quando ele bateu na porta e eu pensei que era o anão verde, insistindo em me perseguir. Mas era um rapaz alto, muito alto, e todo dourado. Sorriu para mim cor-de-alegria e tão delicadamente que eu quase chorei de verdade. E de repente eu e ele, o moço dourado, a gente tava sentado nas almofadas da sala, vendo desenho na tevê e tomando chocolate quente, pois estava muito frio e dias frios são próprios para isso. 

Pois aí, minha panterinha começou a rosnar e assustou o moço dourado que se pôs de pé rapidinho e foi embora, sem dizer a que veio. O dia estava muito frio, mas minha pantera negra precisava tomar banho e eu fui banhá-la, depois que o moço dourado foi embora. Esfreguei bastante xampu cremoso e brilhante no pelo dela, e o pelo negro dela ficou cremoso e brilhante, mas com um cheiro assim meio esquisito, que não sei não. Acho que vou trocar a marca do xampu. 

Mas é tudo tão simples e natural, que até aquele rapaz do apartamento em cima do meu achou que era mais fácil sair para a rua pulando da janela do que descendo pelo elevador ou mesmo pelas escadas. Acho que ele esqueceu das outras janelas debaixo da janela dele. Mas não tem importância, lá embaixo já está tudo limpo. O novo síndico é realmente muito zeloso. 

O cheiro de dama-da-noite estava no ar e era uma noite quente de verão. Tão quente, que as pessoas nas ruas tinham o cuidado para não se esbarrarem, confundindo os seus suores e os seus sonhos pegajosos de tão libidinosos nessa noite quente e cheirando a dama-da-noite. Mas isso é outra história, nessa aqui é tudo limpo e asseado. 

E por isso eu não conto o que estava escrito atrás da porta do banheiro sobre Deus. Quer dizer, estava escrito sobre Deus atrás da porta do banheiro, sei lá. Os crentes iam se escandalizar. Os católicos, não. Há muito tempo que eles não mais se escandalizam. Mas eu não conto, não conto, não conto. 

E ele soprou – eu já disse que ele tinha soprado? Pois soprou toda a cinza do cinzeiro e a cinza ficou espalhada, sentida de fazer dó. E depois alguém pisou por todo o lugar e não mais se podia distinguir a cinza amassada, apenas na sola dos sapatos de quem a amassou. Mas quem mesmo fez isso? 

O sorvete começou a derreter e começou a ficar sem graça e sem açúcar e sem nada. E eu comecei a ficar triste por causa disto e comecei a pensar numa ideia piramidal, mas tinha muito tempo que todas minhas ideias piramidais tinham me abandonado, e a única ideiazinha mais ou menos que tive foi ligar para ele. Mas o telefone deu “fora de área ou desligado. Tente mais tarde”. Aí, quando a gente senta e fica séria, começa a dar rugas no nosso rosto e começam a dizer que o tempo está marcando a nossa cara. Mas não é o tempo, e sim o vento, a água, o sabão que a gente usa. E o batom, a sombra, a máscara. Quando me dei conta, a solução era pegar carona numa nuvem e sair por aí, por cima dos mares do sul. Mas não tinha nuvem no céu, nem mesmo um fiapozinho.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Bolhas de sabão nas ondas do mar

                                                                                                                                                  Isabel Pires

Um gosto de sal na pele, areia no cabelo. Banho de torneira no quintal. Voltar da praia cansada e deitar no chão, vendo tevê. Fechando os olhos, podia sentir ainda o doce marulhar das ondas, pra baixo, pra cima. Pé no chão, short, cabelo molhado. No meio da rua. Pé sangra, corte fundo, no caco de garrafa atirado por alguém (falta de educação) na rua. Esparadrapo e algodão. Curativo enorme, tomando quase o pé inteiro. Que peninha. E exibia vitoriosa o pé machucado.

Havia dois coqueiros em frente da casa. Não exatamente na rua, nem no jardim, mas no jardim da casa em frente, cobertos até a metade pelo muro que a cercava. A avó na janela do quarto, ouvindo mais o farfalhar do vento nas palhas dos coqueiros, do que vendo-os propriamente. A avó com catarata. A avó sempre na janela do quarto, cantando canções de outro tempo e ouvindo o coqueiro. Ouviria estrelas? Às vezes, no meio do sono, vinha a imagem, sempre a mesma: os coqueiros desabando sobre a casa em frente, esmagando o pintor e sua estranha mulher, que vivia com um lenço molhado atado à testa, matando até o cachorro perdigueiro de focinho cor-de-rosa. Acordava soluçando, suada. Bebia sôfrega a água que a avó trazia.

O gato Dengoso, mistura de angorá com uma raça indefinível. A avó sempre criara gatos. Por que a avó não gostava de cachorros? Dengoso brincava com Pantera, a gata da casa vizinha. Era uma pequena gata amarela, espantadiça, arredia e selvagem. Caçava borboletas no jardim com uma precisão incrível. Saltava de pata aberta, unhas arreganhadas, certeira na vítima.

O pé de mamão-da-Índia no terreiro da casa. Um dia, de tão carregado, o pé de mamão quebrou, e rolou mamão verde pra todo lado, no cimento do terreiro. Dos maiores, a avó fez doce. Dos talos das folhas, foram feitos canudos para soprar bolhas de sabão, na porta da casa. Competição para ver quem soprava a bolha maior, sem arrebentar.

As ondas arrebentando na praia, nas pedras. E deixando um gosto de sal na pele. Areia no cabelo. “Menina, olha esse pé sujo de areia”. O banho na torneira do quintal. Sonolenta, deitava na almofada da sala. Podia sentir o embalo do mar. O formato das ondas na areia. As bolhas espocando no ar.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Vermelho brilhante luar

Isabel Pires

...devagar e a pé. a visitar bodegas reles, lugares bizarros, botequins inconcebíveis

(João do Rio, in A alma encantadora das ruas)

 

Se eu soubesse, não teria desperdiçado as últimas gotas do meu perfume francês. Naquela época, eu ainda me iludia muito com lagostas e mexilhões. Um submundo nas portas dos banheiros sujos, vasos sanitários vomitados, a poça de xixi no chão. Era isso ou os monstros debaixo da cama.

A filosofia de botequim praticada por nietzschianos bêbados dos anos perdidos.

O cabeludo das camisas xadrezes vinha toda quinta-feira, uísque com muito gelo às nove em ponto. Um mal-entendido, e ele sentou-se uma noite à nossa mesa. Minha e do Saulo. Cadeira cativa de terça a domingo. O boteco não abria às segundas-feiras. O cara – era Fernando, seu nome – contava, fumando, muitas piadas. Todas sem graça. Sabe o que é ser o pivô da separação dos pais, causada especificamente por um chute do pai no traseiro da mãe? Pois o filho dele, quatro aninhos de idade, sabia, apesar dos chocolates com figurinhas brilhantes a cada quinze dias. Muito cedo ele aprendera que cóccix é um pequeno osso no final da coluna vertebral. Constava do processo, que as partes liam em voz alta, cada uma por seu turno.

Como se fosse uma questão de lógica, acabamos, eu e o Saulo, trocando a filosofia pela psicologia. Viramos psicólogos de botequim, com direito a analisar as repressões mais recônditas, complexificar freudianamente todos os cigarros que o chutador de cóccix fumava, às quintas-feiras. Às nove em ponto. Também havia Lacan e linguística saussereana aplicada. Voltamos para a filosofia via Horácio. Ele chegava já trincado, a língua enrolada. À meia-luz, a cicatriz no rosto parecia mais visível, resultado de uma queda de cavalo. Horácio foi criado numa fazenda onde tomava filosóficos banhos de rio.

Precisávamos muito de mitos para ordenar o caos de nossos pequenos mundos. Foi quando Saulo conheceu Silvinha e todas as suas tatuagens. Ela estava no quinto aborto, que correspondia, numa oposição sinistramente simétrica, à quinta gravidez de Elenice. O bebê anterior nascera franzino. Ela o pendurava ao seio e sugava por sua vez a espuma branca do colarinho do chope. Os pés dela, inchados, rebentavam pequenas bolhas de pus nos dedos. O médico dissera ser “baixa resistência”.

Começamos a pensar muito seriamente nas segundas-feiras. Então, vieram o bar da Mara, o Nirvana, o Verdeazul, o bar do Lulu. No Das 7 às 7 conhecemos Heitor, que morreu afogado em vodka no mar do Espírito Santo. Estação do Chopp só dava pé de vez em quando. Quem aturava toda aquela feira livre de camisetas silkadas? E também teve o Telaviv.

À essa altura, nos sentíamos, eu e o Saulo, sobreviventes, entre chopes, caldos verdes e porções de fritas. O Heitor parecia ser apenas mais um elo da cadeia de mortes que ameaçava prender-nos a todos, e para a qual alguns de nós, mais imaginosos, concebiam ligações secretas, enredos policiais.

Definitivamente, não. Quê que tinha a ver o Heitor ter abraçado uma onda mortífera com o fato de o Cesinha ter metido o carro e seus vinte e três anos num poste?! Laura, por exemplo. Quê que tinha a ver a overdose dela – dura e roxa, gelada – com o suicídio esquisito da Rose? As duas nem sequer se conheciam...

Era simples, muito simples, super banal. Um círculo amarelo dentro de uma circunferência vermelha, com dois círculos pequenos vermelhos formando os olhos e um feliz traço evidentemente vermelho, acompanhando a circunferência, completava o sorriso do sol.

Com quantos sorrisos de sol se ganha a vida? Pois o Sérgio ganhou a conta da cadeia de lojas Marisol, espalhando sóis sorridentes nos cartazes pela cidade. Um sol brilhou sorrindo vermelho e amarelo no seu pequeno escritório de publicidade. Sérgio, rosa-cruz, metódico e seriíssimo, andava pensado em se casar. Quando a galera quis enlouquecer um pouco mais na Cachoeira das Andorinhas, ele andava muito ocupado. Os preparativos do casamento. Emprestou a barraca para três. Dormiram sete.

Na mesa, fumegante, uma enorme tigela de caldo exageradamente decorada com cebolinhas verdes picadas. Do outro lado, a cara lisa do Edson e seu rosto rosa-bebê. O resto da noite, beijei uma plantação de cebolinhas. O Saulo amuou. Estava ficando possessivo, além do mais. Sérgio e cebolinhas, interessante combinação. Pois ele não ia se casar com aquela moça que ele conhecera na feira? Como era mesmo seu nome?

Certo, esta história não é do tempo dos contos de fadas, inventados especialmente para nos consolar – embora alguns nos aterrorizem, mas isto não vem ao caso. Com dados assim, por demais aleatórios, ninguém conseguirá reconstituir tantos fatos. Por que há fatos para serem reconstituídos, indubitavelmente?

A chorar a minha mãe, chora a dele, foi quando pensei quando brigamos feio. Eu que não ia me trancar no quarto, escutando Pink Floyd, que minha mãe não merecia, disso eu tinha quase certeza. A mãe dele que chorasse, sem economia de água. A chorar minha mãe, chora a dele.

As bochechas do Saulo, infladas para baixo, pareciam arrastar consigo o peso dos seus pensamentos muito negros. Kardecismo, reencarnações e operações espirituais. Mais de uma vez, a família quis interná-lo num hospital psiquiátrico.

Espantar para sempre os monstros de debaixo da cama.

Silvinha no sexto aborto. Filho dele, do Saulo, aquela massa meio mole meio dura, vermelha.

Eu que não ia pra casa com aquele troço vermelho e informe entalado na garganta. Vomitei tudo, chope, caldo verde, fritas, trancada no banheiro.

Quando voltei, Serginho estava lá, discorrendo sobre as vantagens da vida a dois. Foi embora cedo, que agora era homem casado.

O suicídio da Rose não teve mesmo nada a ver com a overdose da Laura, restava mais que provado. As duas nem se conheciam. Embora ambas conhecessem o Sandrinho.

A Rose foi ao casamento do Serginho, não foi? Toda produzida, com aquele vestido de calda de sereia azul claro, parecia Iemanjá. Rose, com seu vestido de Iemanjá-sereia, fazia planos para o futuro, tipo saldar pequenas dívidas, reformar a mobília, criar gatos. Mês seguinte se matou, enrolada num lençol encharcado de gasolina.

Seis meses depois foi a vez do Serginho. A lua, não o sol. A lua veio buscá-lo, foice minguante parada no céu. Um casal de recém-casados bebia vinho e via a lua do telhado do edifício. Noite fria, de julho. Serginho morreu afogado no luar da imensa caixa d’água que abastecia os quinze andares do prédio onde um sol um dia saiu sorrindo de um pequeno escritório de publicidade.